O facto de haver concorrência para o cargo de Prresidente da República significa o reconhecimento implícito do pluralismo político no país. O pluralismo, na sua essência, não significa que quem pensa diferente é, por inerência, contra os outros. Significa apenas que essa pessoa tem desejos e anseios diferentes, mas que têm o bem comum no centro das suas preocupações. A diferença de opinião é, no fundo, a celebração da força vital que percorre as veias de Moçambique e faz do país um espaço verdadeiramente histórico, isto é um espaço de aprendizagem, de mudança de opinião e de adaptação. É frágil toda a nação que depende da unanimidade para justificar a sua existência.
Levou muito tempo para entendermos a importância do reconhecimento do pluralismo. Na verdade, o reconhecimento é apenas formal. Ainda falta muito para interiorizarmos a sua importância para o devir do país. A forma como a Luta de Libertação foi narrada produziu no imaginário dos principais actores políticos não só a ideia de que a unidade de propósitos era crucial para se lograr a independência como também alimentou o sentimento de que pensar a independência de forma diferente era pôr em causa o próprio projecto de independência. Joana Simeão e Uria Simango são alguns dos exemplos mais destacados de moçambicanos que pagaram com a sua vida o preço dessa narrativa.
A abertura formal do sistema político não mudou significativamente esta maneira de pensar. A polarização criada pelas circunstâncias em que se chegou à abertura do sistema político fez com que todas as forças políticas continuassem a privilegiar uma narrativa política alicerçada na ideia de que quem não está connosco, está contra nós. Parte da criminalização do Estado que caracteriza Moçambique hoje explica-se desta maneira. Foi porque a governação foi cada vez mais vista não apenas como gerir o país, mas sim como gerir o país de modo a impedir que qualquer outra força política algum dia cheirasse o poder. As redes neo-patrimoniais que isso alimentou não tinham necessariamente como objectivo garantir o assalto privado aos recursos públicos. Tinham como objectivo concentrar tudo nas mãos daqueles que se consideravam – na verdade, que se consideram – os únicos com legitimidade para governar o país no melhor interesse de todos.
Daí que parte da sua estratégia política tenha também consistido no enfraquecimento da oposição. O uso consequente da força da lei para limitar os movimentos da oposição, o abuso da maioria parlamentar para ignorar os pontos de vista da oposição, a inviabilização económica e financeira da oposição através da concentração dos recursos do Estado no partido no poder, tudo isto configurou um cenário parecido com uma estratégia consciente de trivialização do pensamento diferente. As únicas concessões feitas foram as que se tornaram necessárias para não levar a oposição – sobretudo a oposição armada – ao abismo do desespero como aconteceu amiúde com o malogrado líder da Renamo.
É neste contexto que o Artigo 74 (Partidos políticos e pluralismo) se reveste de muita importância. Ele contém duas disposições: 1. Os partidos expressam o pluralismo político, concorrem para a formação e manifestação da vontade popular e são instrumento fundamental para a participação democrática dos cidadãos na governação do país; 2. A estrutura interna e o funcionamento dos partidos políticos devem ser democráticos. A primeira disposição constitui não só um reconhecimento do próprio pluralismo como também é uma instrução para que quem governa o faça com atenção para o facto de que as pessoas que nele votaram são apenas uma parte do pensamento diverso que faz o nosso país. A implementação prática dessa instrução consiste em criar condições para que as decisões governamentais beneficiem sempre da assessoria que a crítica que vem da oposição presta. Consiste também na integração da oposição no Estado – não por via de postos diplomáticos – mas sim por via de responsabilidades de gestão de instituições públicas. Acima de tudo, a implementação requer que quem governa abandone o hábito nutrido pela Frelimo de criar grupos de choque na esfera pública, cuja única função é implicar com que diz o que pensa.
Só é guardião da verdade encontrada na constituição quem está aberto ao pensamento diferente e sabe nutri-lo.
É normal pensar que já que uma vez que a ciência produz conhecimento todo o ramo da ciência necessariamente se define pela coisa sobre a qual ele produz conhecimento. Nessa ordem de ideias, a sociologia seria a produção de conhecimento sobre a sociedade. É assim que os sociólogos com falta de tempo – ou imaginação – para explicarem o que fazem descrevem a sua disciplina para os leigos. Mas não é bem assim. Para além de que essa definição seria circular – a sociologia é o estudo das coisas da sociologia... – ela retira à disciplina o mérito de ter tornado visível, através de palavras, algo imanente e que por isso resiste à visibilização. Sociedade não é uma coisa que se pegue com as mãos ou que se sinta duma ou doutra forma. Sociedade é um exercício de imaginação ao qual nos entregamos todos os dias sem disso nos darmos conta, mas sem o qual a nossa existência seria ontologicamente difícil. É uma ficção real.
Quando instituições como o mercado, a política, o judiciário, religião, etc. funcionam de forma estável – como é o caso em países que podemos chamar de “desenvolvidos” – a realidade dessa ficção torna-se mais forte e, curiosamente, permite que as pessoas convivam melhor com essa coisa imanente que se furta à visibilização. Onde as coisas não são assim, a realidade da ficção é mais ténue e, curiosamente, leva as pessoas a investirem mais numa ideia de sociedade concreta que não é o caso. Em Moz, por exemplo, o pressuposto de que a sociedade é algo bem concreto é forte e tem nos privado do recurso à imaginação tão necessária à recuperação da certeza ontológica que precisamos de ter para agirmos com maior segurança dando as coisas por adquirido. Em contextos como os nossos – peço desculpas pela imodéstia – precisamos da sociologia. Precisamos dela não para definir a sociedade, mas sim para a produzir. Sim, a sociologia é que “produz” a sociedade, ela não a estuda.
Há um homem que “produziu” a sociedade moçambicana. Carlos Serra, o primeiro e, se não estiver mal informado, único catedrático de sociologia no País. Devemos a ele a sociedade moçambicana. Ele produziu a sociedade na sua “oficina de sociologia” no Centro de Estudos Africanos como parte duma agenda intelectual alicerçada na descrição minuciosa e aturada daquilo que ele chamou de “crenças anómicas de massas”. Não é possível entender o País que somos sem prestar atenção à maneira criativa como nos apoiamos em crenças, não importa que crença, para constituirmos relações entre nós, incluindo e excluíndo. Parece um espectáculo improvisado em que o director artístico apenas diz algo como “ok, vocês foram enganados por um indivíduo mau, reajam” e logo aí cada um de nós se posiciona, assume o seu papel ao ponto de com ele se confundir e em tudo o que faz ou diz vai construíndo uma teia de relações que se concretiza na reaçcão dos outros. A verdade, a ética ou a moral não são os alicerces dessa teia, pelo menos não no sentido em que eles seriam anteriores à acção, mas sim coisas negociadas no momento pelos intervenientes.
Carlos Serra começou por articular isto em torno da figura de Samora Machel na base do fenómeno ao qual ele deu o nome de “Samorismo”. Prosseguiu com as igrejas pentecostais, os linchamentos, a cólera e os raptos de menores. O pressuposto teórico desta etnografia do quotidiano não foi apenas o prazer de descrever as coisas, mas sim de encontrar um ponto de articulação daquilo que faz de nós moçambicanos e, portanto, diferentes de quem não é. É uma agenda intelectual sem igual em muitos outros países, o que faz com que o tipo de sociologia que Carlos Serra faz seja muito mais do que a simples reprodução e imitação do que os outros lá nas Europas fazem para ser, na verdade, um momento fundador. Há algo de “pós-colonial” nisso, um pós-colonialismo com discernimento e saudável, pois ele não proclama apenas servindo-se dos mesmos recursos retóricos usados pelo “colonial”, no processo homogenizando a Europa e “sua” epistemologia. Ele faz uma sociologia de raiz. Temos sorte, nós os moçambicanos, sobretudo nós os sociólogos, porque temos a oportunidade de nos referirmos a uma sociologia concreta, de nos inspirarmos nela para continuarmos a “produzir” Moçambique. O nome da sociologia moçambicana é Carlos Serra, mas quem a quer conhecer de verdade tem que ler para além das entrelinhas e ter o arrojo de descer às notas de rodapé para onde ele sempre convida os seus leitores a apreciarem como ele raciocina.
Como sociólogo devo muito a ele e como sociólogo moçambicano muito mais ainda. Regressei ao convívio intelectual da sociedade que a sua sociologia produziu pelas mãos de Carlos Serra que nos finais dos anos noventa me convidou a participar num dos ciclos de conferências que ele organizava e que tanto estímulo deu à reflexão académica em ciências sociais na altura. Conhecemo-nos por email debatendo os seus escritos. A sua humildade intelectual formulou o convinte que, mais tarde, me abriu as portas da academia moçambicana – também com o amparo amigo de Severino Ngoenha – e me deu a oportunidade de também contribuir para a formação dum pensamento sociológico moçambicano. O nosso contacto foi forte e intenso durante vários anos de carinho e respeito, mas foi também vítima das redes sociais, afastamo-nos um do outro e – devo confessar a minha vergonha – eu nunca tive a coragem de esclarecer os mal-entendimentos e dizer a ele que há um certo sentido em que a sua agenda intelectual tem sido uma forte fonte de inspiração para mim. Esta é uma maneira de fazer isso.
Quando penso nos desafios da sociologia em Moçambique não o consigo fazer sem articular com a urgência de continuar a pensar o fenómeno das “crenças anómicas de massas”, pois é nele onde eu julgo se esconder o logaritmo que nos permite entender melhor a nossa sociedade. Cabo Delgado, paz definitiva, dívidas ocultas, profetas, “mazameras”, “meios extra-legais”, “trabalho e golfe”, “100 dias”, etc. eu duvido que um sociólogo de verdade possa entender estas coisas todas sem começar primeiro por entender tudo o que há por entender no objecto conceitual que Carlos Serra, bom sociólogo que é, inventou. Moçambique é isso aí e, por isso, espero que os sociólogos moçambicanos, sobretudo os mais jovens, se entreguem à grande tarefa de se juntarem a ele e continuar a construir este edifício cujos alicerces ele colocou.
Nem todos os nossos heróis vão àquela cripta fria quando chega o dia. Alguns, se calhar os mais importantes porque alimentam a nossa mente, estão escondidos em notas de rodapé, algures no Centro de Estudos Africanos ou num apartamento qualquer por aí. Precisam de saber em vida que são herois".
*Este foi escrito e publicado a 20 de Fevereiro, um mês antes da morte de Carlos Serra. Uma derradeira homenagem em vida.