Director: Marcelo Mosse

Maputo -

Actualizado de Segunda a Sexta

BCI
sábado, 25 janeiro 2025 13:41

Tchambalakati, a metáfora que foi e deixou de ser

Escrito por

Há cinco décadas, assistia-se ao final de um ciclo e ao nascimento de uma nação. O pais reinventava-se sobre o fascínio da revolução e de um progresso assegurado para todos. O delírio atingia operários e camponeses, liberais e intelectuais, forças armadas e milicianos, dos mais cépticos aos mais optimistas. Eram tempos de crenças e de novas semeaduras, marcados por uma onda de libertação, distribuição e busca por justiça social.

 

Os tempos, entretanto, ganharam contornos alternados. Os discursos socialistas e mobilizadores ganharam novas versões e se transformaram em panfletos melodramáticos. Tragicómicos. Os antigos colonizados reconfiguraram suas matrizes e os vilões se alinharam como peças de um tabuleiro de xadrez sem cores. Perderam as ideologias e as manias revolucionárias. As ideologias sobrevivem, agora, feitas ondas sem cristas, de um mundo de notas verdes e de todas as conveniências ideológicas. As assimetrias agigantam-se e descontrolam as estatísticas que, por vezes, mais se confundem com aberrações. Políticos se reinventaram em latifundiários e elites empresariais inevitáveis, enquanto o povo globalizado, com todos os sofrimentos e exclusões, virou essa degradação e desigualdade humana, e expectadores famintos de um mundo que há muito deixou de ser seu.  

 

Francisco Chuquela encontrou uma forma de exorcizar seus fantasmas dos novos e velhos tempos. Rebuscou as vicissitudes e as décadas de hipocrisia da aldeia global, num planeta cada vez mais violento e impróprio para complacências. Seguiu, a rigor, uma tradição literária venerável, na linha e na sombra de alguns dos mais conceituados escritores moçambicanos que adoptaram o mesmo diapasão. Eventualmente, não tenha sido motivado pelas mesmas razões, mas a carência, o sofrimento e a tristeza universalmente sintomáticos. Chuquela começou publicando textos de forma dispersa, permitindo que essas pérolas da escrita fossem, mais tarde e finalmente, reunidas em uma colectânea.

 

Tchambalakati e Outras Crónicas, resgata um género que parece em declínio, por vezes, aparatoso, outras vezes, nem tanto, que é a crónica jornalística. Assim, ele abre completamente o seu peito e a sua alma, mostrando-se honesto e franco, com reflexões, factos, e com a sua visão do mundo de bairro, cidade, país e mundo, instigando, desta forma, ao leitor para que se converta num agente observador, sem que, necessariamente, se acomode. As leituras não devem oferecer respostas, e muito pelo contrário, estas precisam de propiciar, novos questionamentos e muita indignação.

 

O escrever para Chuquela é um pouco mais que um acto de coragem e ousadia. Ele escreve para se aterrorizar e requebrar os poderes instituídos. Trata-se de uma atitude de confronto consigo mesmo, e com o mundo que ele, sozinho, consegue enxergar, porém, diante do qual continua impotente para o alterar e até sugerir novos rumos. Tchambalakati é, então, um questionamento ao estado de arte do nosso país, sociedade, os modelos de desenvolvimento e sustentabilidade e, principalmente, da convivência estrutural pacífica e humanamente aceite.

 

A sua crónica destemida – ora mais directa, ora mais subjectiva – reforça a relevância e o impacto desse género em Moçambique. Só um pais como o nosso oferece tanta matéria prima para escrever sobre a nossa indignação. Como digno sucessor dos gigantes literários, seja assim considerado por Mélio Tinga ou outros, Chuquela insiste, com orgulho, em seguir as pegadas dos embondeiros.

 

Tchambalakati, de Francisco Chuquela, refere-se a uma planta nativa das regiões tropicais da Ásia, também, conhecida como Erva-Príncipe. Sabor e aroma agradáveis, intensamente fresco, com inúmeras propriedades, de entre elas a calmante, a diurética e a antidepressiva. Analogamente, o Tchambalakati, é fundamental no processo de desintoxicação do corpo, auxiliando na eliminação de toxinas e impurezas. A modernidade descobriu a sua eficiência para repelir insectos.

 

Este título do livro de Francisco Chuquela deve ser entendido como uma grande metáfora social: uma sugestão para apreciarmos o chá, mas, fundamentalmente, como um apelo à necessidade de repensarmos a nossa sociedade, a exclusão nas periferias e o descaso ao qual a maioria está sendo relegada. Trata-se de um chamado à desintoxicação dessas impurezas que estão levando as pessoas às ruas e fomentando contestações.

 

Palmilhando seus textos, o autor reforça esse pedido para que o pais aprenda a plantar uma planta tão natural, com esse intuito de que possamos, mais progressivamente, plantar algo mais que repele e expulsa insectos, como ele descreve nos textos Mupswetu’s, e Mbhoromani’s. Estes, segundo o autor, são os que, hoje, ascenderam, são ladrões de luxo, assassinos sofisticados, violadores em posições respeitadas e, como podem imaginar, possuem maiores habilidades de esquivar-se das balas.

 

Então, as crónicas do Tchambalakati são um Moçambique real com as suas disfunções societárias, com os sonhos adormecidos, com as aspirações de todos que almejam um país são e funcionando sem desvios. Um Moçambique que tem de ser menos político e mais social e económico, afectuoso, que não repousa para dar oportunidades aos seus jovens.

 

Se a função da crónica é ressignificar o registro de fatos comuns, feitos em ordem cronológica, então, nosso autor assume que essa crónica assume contornos de género narrativo, reflexivo e episódico. Por conseguinte, ele resgata o flagrante do quotidiano nacional, em seus aspectos pitorescos e inusitados, com certa dose de humor e de reflexão existencial.

 

A obra de Francisco Chuquela contém passagens líricas e comentários de interesse social e a linguagem é, quase sempre, coloquial e irreverente, ou, não fosse ele próprio, um jornalista e observador atento. E, apesar desse viés quotidiano e episódico, o autor foi audaz ao preservar e rever seus escritos por um período de 12 anos. Essa decisão, de congelar no tempo esses registros, revela-se profética à luz das recentes manifestações pós-eleitorais, como acertadamente apontou Mélio Tinga em sua apresentação da obra. Tchambalakati antecipa, de forma inquietante, os acontecimentos que viriam a seguir.

 

Tchambalakati não pode ser olhado apenas através de uma lupa literária, porque não é possível vê-lo assim, à árvore deve ser vista na sua plenitude e esplendor. Julgo ser esse o encanto das crónicas do Chuquela para o leitor. Elas não sobrevoam o subúrbio, elas são o próprio subúrbio; sente-se o medo, o cheiro, o barulho dos bairros, o sangue, o suor, a embriaguez, a dívida, a miséria, o ximovhana e o xilalassane.

 

Chuquela mostra conhecer, profundamente, o que escreve, porque habitou muitos destes lugares, porque passou por estas ruas, porque conheceu os personagens que atravessam cada uma destas crónicas. Em Maxaquene, Mavalane, Polana Caniço, Aeroporto, Xipamanine, entre outros.

 

Neste livro, dois personagens são a expressão de medo para quem reside no subúrbio; Mupswetu, um consumidor calejado de soruma e assaltante temido, que acaba nas mãos da população que executa ela mesma a justiça; o segundo é Mbhoromani, um ladrão, assassino e violador de mulheres e crianças, tido como uma espécie de mito, um fantasma, um xipoco, uma lenda. Um homem que escapava com uma facilidade assombrosa das mãos da polícia, das grades e se esquivava com mestria das balas. Apanhado, foi colocado um pneu e gasolina. Acenderam, mas Mbhoromani não ardia, ria-se. Uns curandeiros apareceram, bateram com força na sua sombra, Mbhoromani não resistiu a tanta dor. Foi assim que acabou por arder.

 

Fora a isso, dois outros temas sensíveis são colocados em hasta pública; o primeiro, a pobreza profunda instalada nos bairros, na sua maioria próximos do centro da cidade de Maputo – desde a estória de um jovem que perde a namorada para um empresário Português, ou a estória de uma avó que tem de colocar o pouco açúcar numa chaleira enorme, para melhor gestão e, por fim, uma criança que aguarda o final do ano para poder tomar um refrigerante.

 

Na crónica “Miséria”, o autor nos traz um olhar ainda mais íntimo sobre a infância em meio à pobreza. Chuquela, habilmente, retracta o impacto da desigualdade na auto-estima e no desenvolvimento das crianças, usando o olhar zombeteiro dos colegas do protagonista como um reflexo da crueldade social. A força deste texto reside na sua capacidade de nos fazer sentir a dor e a vergonha de quem cresce sem os recursos básicos, mas, também, de destacar a força interior daqueles que, mesmo na adversidade, buscam seguir em frente.

 

Chama atenção neste livro, também, o poder criativo na nomenclatura, comum nas zonas suburbanas, a título de exemplo: Lourenço da Silva, que passou a ser conhecido como tio Munene – nome atribuído por pessoas do bairro, por este aceitar os filhos que a esposa o dava, mesmo sendo de uma cor diferente da dele (Munene como quem diz pessoa boa, pessoa de bom coração); Lourenço Vilário Xonguissa, que passou a Massopeni – depois de ter acabado o contrato no Clube Naval, começou a beber de forma desmedida; ou então Thumbu-Rhumbu – designando um homem barrigudo e explorador de mão-de-obra infantil.

 

Este livro é, então, essa difícil conjugação entre a sobrevivência ao tempo e o aspecto diagnóstico associado a uma metáfora que deixou de ser e virou realidade. (X)

Sir Motors

Ler 314 vezes