O Costa do Sol preencheu, por fim, no pretérito sábado, a vacatura aberta na sequência da partida precoce de Jonas Chitsumba a 28 de Novembro do ano passado, 2022. O perecido era colega na EDM e amigo! Praticamente, ele é que me introduziu na EDM!
Na mensagem fúnebre da Direcção a que Chitsumba estava afecto nos últimos dias da sua vida, podia ler-se: “Como endereçar-te uma mensagem de despedida? Como elaborar um elogio fúnebre? Como te dizer adeus? Se tu estás nos nossos olhos! Nas nossas vistas; na nossa mente; nos nossos corações. Ainda sentimos em nós a tua energia, a tua força, pujança e serenidade, a tua alegria! O teu dinamismo muito contagiante! Nós ainda não aceitamos que partiste. Para nós, tu foste para Temane, em mais uma missão de serviço! Para nós, tu foste a Inhambane ver o andamento do projecto da Central Termo-eléctrica de Temane (CTT), de que eras digno Director e Gestor! Para nós, logo, logo, voltarás e nos insuflarás com o teu dinamismo, com a tua voz sibilante e muito audível! Continuaremos a usufruir da tua presença ruidosa nos corredores e salas da nossa Direcção de Desenvolvimento de Negócios!”
Com a devida vênia, faço minhas estas palavras, integralmente. Como faço minhas também as seguintes, que cito da mesma mensagem: “Custa-nos ouvir, aceitar e acreditar que jamais voltarás de Temane. Se foste inúmeras vezes e voltaste! Foste, voltaste, foste e voltaste! Custa-nos muito encarar que nos deixaste para todo o sempre. Que jamais sentiremos o teu fulgor. Que não mais beneficiaremos dos teus profundos conhecimentos, do teu saber muito alargado; da tua liderança galvanizante e estimulante; da tua grande capacidade de gestão. Que não mais teremos o teu coração humanista entre nós!” E acrescento que, depois de tudo, não mais ouvirei “é isso aí, meu caro Mabunda”, como me dizias sempre, depois de… fosse o que fosse!
Esta, confesso, foi a razão por que, cinco meses após a morte do Chitsumba, não consegui rabiscar nada. Ainda estou à espera do Chitsumba para… mais uma tirada por aí, ou em Vilankulo, ultimamente, ou na Beira, Nampula, ou em Pemba! Mas, o passo dado pelo Clube de Desportos do Costa do Sol - também ele muito incrédulo com o que se passou - deixa muito bem claro que o nosso amigo, irmão e colega partiu definitivamente para o além! E que só temos de aceitar, embora com olhos esbugalhados.
A minha entrada na EDM, em 2006, coincide mais ou menos com a transferência dele de Director Regional Norte para Director de Distribuição (DD) e na sequência disso tinha que viver para Maputo. Como DD, tinha a grande responsabilidade de dinamizar todas as então Áreas de Distribuição (agora Delegações) por todo o país, uma espécie de director nacional. E eu acabava de ser recrutado para… também eu… dinamizar a divulgação das muitas e imensas realizações da Empresa! A proximidade das missões de cada um de nós, se fosse para dar certo, só podia dar em casamento sólido!... e deu!
Entrei em Novembro, mas, já em Dezembro, antes de completar um mês sequer, já lá estava eu com uma missão de jornalistas de vários órgãos de informação nacionais, em digressão pelo país, a visitar os mais vistosos projectos da EDM, com Jonas Chitsumba na liderança da delegação, não só a apresentar-me aos colegas em todas as direcções, mas a abrir todas as portas. Ponto por ponto, ele e o director local é que prestavam os esclarecimentos necessários aos jornalistas. Em cerca de duas semanas, batemos quase todo o país - Pemba, Nampula, Nacala, Quelimane, Beira, Chimoio e Província de Maputo.
Assim começava uma relação de trabalho que foi muito profunda e que deu numa amizade inapagável. Ele, detentor de informação de utilidade pública e eu, divulgador de informação. Muitas mais digressões com jornalistas faríamos ao longo dos seus seis anos como Director de Distribuição e muitas aventuras teríamos... Mas, mais digressões juntos faríamos também por causa dos eventos da Empresa. O modelo de gestão em vigor tinha/tem reuniões nacionais regulares em diferentes pontos do país - reuniões de prestação de contas, reuniões de balanço e reuniões de debates sobre várias outras matérias. Lá estávamos, ou lá nos encontrávamos, trabalhávamos, curtíamos… e mais alguma coisa!
Obviamente que nem só de trabalho vive o homem! Nestas andanças todas pelo país real, muita coisa acontecia, deixando à imaginação do querido leitor! A sua transferência para a direcção das Áreas da Cidade e Província de Maputo, em 2012, apenas refreou a frequência dos contactos, do trabalho em conjunto, das conversas, mas estes continuariam até agora que ele dirigia o projecto da construção da Central Térmica de Temane!
Foi-se um amigo, um amigo dos seus amigos, uma pessoa que nunca andava de testa amarrada, que nunca olvidava o confronto com jornalistas, que nunca se exaltava nas milhentas discussões e debates que mantínhamos, a sós ou com outros presentes, incluindo jornalistas; com um riso (não sorriso) genuíno, estridente, contagiante! Nenhum jornalista desdisse o Chitsumba ao longo desse tempo! Nunca!
Caro Colega, Amigo e Irmão Jonas Ernesto Binda Chitsumba, vá e descanse em paz! Mas viverás para sempre nos nossos corações! - citando de novo a mensagem dos colegas da Direcção de Desenvolvimento de Negócios.
ME Mabunda
“Os homens, estáticos, observavam o préstito que avançava. Os corpos das mulheres, besuntados de óleo de rícino, brilhavam, nus, prendendo os olhares dos homens.
Moças de pomos semiesféricos, túrgidos, inclinando os rostos à admiração dos olhos, cerrando as pálpebras sob o véu do pudor; mulheres de meia idade, de corpos tatuados, ventres flácidos e seios semelhando a barbelas de vacas tísicas; velhas de cútis rugosa e pregueada pelo tempo; mulheres gordas e magras, belas e feias, todas expunham o seu físico com uma impudência sem limites.
Agora, lá longe, nas dunas cujos cimos se desenhavam em contornos suaves como que a traços de bistre, a face da lua poisava branca e redonda, vestindo as dançarinas com clâmides de prata que mal lhes velavam os corpos.”
(Aníbal Aleluia, “Mbelele e outros Contos”.)
Em Gaza, num ano de seca severa e de absoluta desolação, em que se adivinha e teme o apocalipse, com o povo a atribuir o infortúnio da falta de chuva à zanga dos “nguluves”, mesmo quando o “nhamussoro” imolava carneiros e bodes ou sacrificava galinhas, a esconjuração revelava-se sempre improficiente. Os homens pegavam nos seus “xitendes” e faziam malas e rumavam para a terra prometida do Jone e as raparigas deixavam para trás os berimbaus, abandonavam as palhotas e iam para Mafalala ou Estrada Nova comerciar o corpo. Os sobas resolveram mandar consultar “Nengueuassuma” (homem de perna de mosquito), o mais famoso “nhamussoro” em toda a região de Gaza e este não foi de tergiversações, mas sim assertivo: “Ide fazer mbelele...”
“Mbelele e Outros Contos”, que narra, de forma exímia, a ocorrência miraculosa da chuva, na sequência do mbelele, naquelas terras assoladas pelo desfortúnio, é um livro que Aníbal Aleluia escreveu em meados dos anos 50, mas só foi publicado em 1987. Estes belos contos estiveram para ser publicados em 1961 por iniciativa do jornalista Joaquim Correia. Contudo, o autor foi preso em Maio desse infausto ano e a sua mulher relacionou aquela detenção com as suas investidas literárias e pediu o livro de volta. O volume iria permanecer inédito longos proverbiais anos.
Aníbal Aleluia era acusado de ter contactos com Kamuzu Banda, do Malawi, era aviltado como “nacionalista africano”, ou visado por estar mancomunado com Baltazar da Costa na revolta do Norte do Zambeze. Tudo inverdades, patranhas, invencionices de quem o odiava, sobretudo os “bufos de Zóbuè”.
A ligação que, eventualmente, se lhe poderia assacar era aos chamados democratas, sobretudo Santa Rita e Soares de Melo, em cujo escritório trabalharia, vínculo que o levaria a colaborar na publicação “Itinerário”. Santa Rita, Soares de Melo, Ricardo Fernandes, Ovídeo Cordeiro ou Almeida Santos encorajam-lhe a escrever e ele fazia-o com denodo: animava-se por um espírito contestatário e incumbia-se da tarefa de falar de uma comunidade sem cidadania e das suas misérias. Debutaria em 1947 e foi decisivo o estímulo de Cassiano Caldas – figura tutelar para a geração da Noémia de Sousa e do José Craveirinha – que lhe pagava 250 escudos naqueles tempos difíceis. A escrita de intervenção era, por conseguinte, o seu apanágio.
Para além do “Itinerário” colaborou em “O Brado Africano”. Curiosamente, fê-lo na mesma época que Carolina Abranches. Aníbal Aleluia tinha uma rubrica mensal, intitulada “De mês a mês”, na qual se debruçava sobre várias personalidades. Um dia quis escrever sobre Noémia de Sousa, de quem ninguém sabia tratar-se, e resolveu pedir ajuda à Carolina Abranches do “Brado Africano”. Ela respondeu-lhe dizendo que conhecia Noémia de Sousa e sabia que era uma pessoa modesta e que talvez ficasse extremamente melindrada ao saber que iria ser objecto de um artigo no jornal. Aleluia redigiria o seu artigo com os materiais de que dispunha e, só mais tarde, descobriria que Carolina Abranches e Noémia de Sousa eram uma mesma pessoa: Carolina Noémia Abranches de Sousa.
A sua vida foi dura e marcada por adversidades. Não só a agrura da prisão, mas os afrontamentos ou ultrajes que teve que suportar. Certa vez redigiu um texto (“Dignificação do Trabalho”) criticando o salário de fome que era pago aos chamados “indígenas” e denunciando o próprio conceito de trabalho entre os nativos. Enviou-o para a publicação na qual colaborava. Não foi publicado. Quem dirigia o jornal mandou-o para o caixote de lixo e com o mesmo título redigiu um outro texto que estava nos antípodas daquele feito por Aleluia e que era um verdadeiro ditirambo às políticas laboral e salarial do regime. Não muito tempo depois o tal cavalheiro seria nomeado conselheiro de uma instituição em Portugal.
No tempo em que Aníbal Aleluia colaborava para o “Itinerário” e/ou “O Brado Africano”, nos anos 50, despontavam alguns dos nomes fundadores da literatura moçambicana. Ele acompanhava discretamente a sua produção, sobretudo a dos poetas: Noémia de Sousa, José Craveirinha, Rui Knopfli, Ruy Guerra, Fonseca Amaral ou até Santos Abranches (que teve um papel crucial na época).
Uma pérfida personagem, de seu epíteto Parafuso, que se comprazia em usar o pseudo linguajar negro, que racicamente classificava de “pretoguês”, fazendo, assim, pouco dos pretos, adquirira notoriedade. Aleluia sentir-se-ia vexado por essa personagem e rejeitava, por assim dizer, aquele tipo de narrativa. Noémia de Sousa, também, haveria de falar-me da espécie que lhe causara tal Parafuso e de objectar por completo aquele tipo de linguajar para caracterizar os moçambicanos.
Aníbal Aleluia falava, nos seus artigos, da injustiça social, da discriminação racial, proclamava a necessidade de se dignificarem os moçambicanos, advogando a premência de lhes serem facultados recursos para se desonerarem do sadismo social de que eram vítimas e no qual estavam atolados. Este era o escopo da sua escrita.
Como somos um país que não preza a memória, mas sim faz descaso do passado e do que realmente importa, estes artigos que mereceriam uma edição cuidada e uma atenção crítica dos nossos acadêmicos, não concitaram, até hoje, o entusiasmo indispensável para saírem do sepulcro dos jornais. A despeito, as nossas universidades afadigam-se a arrazoar, com volúpia, sobre questiúnculas e se deleitam com a enxúndia dos dias.
Henrique Aníbal Aleluia nascera a 30 de Agosto de 1921 na Península de Linga-Linga em Inhambane e era oriundo de uma família de antigos construtores de barcos. Carpinteiro, marçano, enfermeiro, professor, solicitador, auxiliar de veterinária, funcionário administrativo, calcorreara o país, sobretudo como enfermeiro, do extremo norte litoral em Palma, em Cabo Delgado, às províncias de Nampula, Tete, Manica, Gaza, Inhambane e Maputo. A sua permanência em Zóbuè foi indubitavelmente marcante. Os seus contos testemunham o seu conhecimento do país.
Teria sido um repto do seu amigo António Caetano Fernandes que o levaria a escrever ficção. Havia quem asseverasse, à época, na “Elo”, que existia um substracto orgânico que incapacitava o nativo de fazer ficção e a recusa de Aníbal Aleluia de a praticar seria então prova bastante. O autor, que vivia no Zóbuè, na zona europeia de inspecção de combate à tripanossomíase, encontrando-se, por essa razão isolado e com tempo que lhe enfastiava, resolveu contraditar aquele anátema.
Houve quem visse, nos seus textos literários, exposição dos segredos que seriam sagrados para os naturais. E houve quem o acusasse de “denegrir a comunidade africana”, o que lhe valeu impropérios, por vezes, violentos. Aleluia procurava tão somente “revelar facetas da vida e dos sentidos dos grupos menos evoluídos da minha terra com os olhos de dentro, fazer uma observação centrífuga da alma da minha gente”.
Guardados na gaveta durante décadas haveriam de ser publicados em finais dos anos 80 quando o autor tinha 67 anos. Talvez por isso, Aníbal Aleluia não se considerasse escritor: “Um homem que se estreia próximo dos 70 não pode ser de esperanças nem de mudanças”.
Recordo-me da sua extraordinária elegância, do seu formalismo, do seu rebuscado vocabulário e da sua retórica enformada, da sua conversa culta e inteligente, do seu asco à indigência e à mediocridade, do seu vasto percurso e do seu pecúlio. Da sua probidade. Da sua solidão. Da sua profunda solidão. Sobretudo recordo-me do facto de ser um homem marcado pela dureza da vida, pela tristeza, pelas provações, pelos tormentos, pelas aflições.
Ainda que fosse corrosivo ou incisivo na crítica e irónico e alegórico nas invectivas, fazia-o com galhardia. Aníbal Aleluia não se furtava a uma boa polémica. Gostava de alegar, de citar, de demonstrar, de pretextar. Denotava uma grande cultura literária. Aliás, quando frequentou a Escola de Professores devorava 10 romances por mês e era lendária a sua avidez pela leitura.
Aníbal Aleluia usou diversos pseudónimos na sua vasta actividade jornalística e literária: Roberto Amado, Augusto António ou Bin Adam. Colaborou, para além do “Itinerário” e “O Brado Africano”, em: “Voz Africana”, “Boletim Médico do Sul do Save”, “Almanaque de Moçambique”, “Elo”, “D´Aquém e D´Além Mar”, “Vértice”, “Notícias”, “Voz de Moçambique”, “Tempo” e “Charrua”. Não será de todo um disparate dizer que ele pertenceu ao movimento da “Charrua” ao lado dos jovens iconoclastas que o promoveram. Um dos seus integrantes, Ungulani Ba Ka Khosa, que um dia disse que esta era a melhor revista do mundo (uma “boutade”, certamente) quando se refere à “Charrua” nomeia, entre os seus constituintes, Aníbal Aleluia.
Aleluia sonhava escrever um ambicioso romance. A ideia central do livro defendia a “tese” de que o nacionalismo (ou o proto-nacionalismo, se se quiser) não nascera no Sul, mas brotara no Centro e Norte do País. Para o autor o berço da resistência não era Gaza, mas sim Angoche, entre o tempo de Mogossurima, no século XVIII até aos tempos de Farelay no limiar do século XX, quando os sultões cótis, de origem quiloana, opuseram o Crescente à Cruz.
A sua contumácia irá render-lhe dissabores também nos anos ulteriores à independência. Tendo uma posição equidistante politicamente, não se comprometendo com o regime, exercendo aliás sobre este um espírito crítico, acerbo muitas vezes, cedo viu os prosélitos e defensores do antigo regime se transfigurarem em revolucionários inequívocos. O que lhe causava urticária.
Era crítico firme das exorbitâncias da revolução, como a operação produção e de outros exageros e desregramentos que se praticavam. Foi contra o banimento da educação moral e via, como consequência, uma sociedade que resvalava para a imoralidade. Repugnava-lhe a lei da chicotada. Indignou-se quando um causídico, em plena Assembleia Popular, defende tal lei e foi ovacionado pelos deputados. Censurava o facto de, na administração pública, a inteligência e a competência se subjugarem aos interesses políticos que, a seu ver, não concorriam para o desenvolvimento equilibrado da sociedade.
Preso no tempo colonial, não faltou quem o quisesse ver proscrito no tempo subsecutivo. “Pertenço à primeira leva – caça grossa para a Pide, reaccionário para a Frelimo”, dizia sem acrimónia, mas profundamente desgostoso. Não praticava nenhum júbilo quanto ao futuro. Muito ácido nas suas análises, não se animava com aquilo que a efervescência política então produzia. Numa entrevista a Michel Laban terminava o seu juízo sublinhando: “Quero com isto significar que considero inquietante o futuro deste país”.
Aníbal Aleluia sentir-se-ia sempre marginalizado, quase sempre omitido. Tivera uma vida vivida sempre com dificuldades, atribulações, agruras. Em Agosto de 1990, quando o entrevistei para o livro “Os Habitantes da Memória”, quis, entre outras coisas, saber se ele, à beira dos 70, escreveria um livro de memórias. Não enjeitava de todo a ideia, contudo realçava o facto de que o seu “testemunho acordaria em algumas pessoas recordações amargas”. Foi quando me disse uma frase que eu nunca mais haveria esquecer: “Tenho um hábito que atrai empatias incómodas”. Usei-a para título.
A 21 de Janeiro de 1993 redigiu o prefácio para a sua novela “O Gajo e os Outros”. Esta é a sua derradeira efeméride literária. Pediu a Calane da Silva que lhe aduzisse um posfácio. A 13 de Maio, regressado de Inhambane, liga a Calane para saber do texto. Combinam um encontro no dia seguinte para que este lhe entregasse o texto. Esse encontro não acontecerá. Henrique Aníbal Aleluia morrera nessa madrugada, 14 de Maio de 1993, passam hoje 30 anos. O livro sairia em edição póstuma no mesmo ano com a chancela da AEMO. Era a obra subsequente a “Mbelele e Outros Contos”. Em 2011 a AEMO publica, postumamente, os seus Contos do Fantástico:
“Na Península de Linga-Linga onde nasci – cunha de palmares encravada entre o Índico, a nascente, e a baía de Inhambane, a poente, seis léguas a Sul do Trópico de Capricórnio , cobrindo perto de quarenta e cinco quilómetros quadrados, com centenas de fogos distribuídos por seis ou sete clãs – conheci um único nhanga, dos de tocar batuque, cantar e dançar.
Deixe a Península, infante, para ir estudar em Inhambane primeiro, seguindo depois para Morrumbene e acabando em Furvela.
Quatro anos depois, voltei à Península onde apenas me detive por ano e meio, aprendiz de carpinteiro barçal (sic) na pequena oficina de meu pai. Depois que parti dali, nunca mais voltei a morar na Península.
Cruzei então esta terra de lés a lés. Pelo litoral, conheço Moçambique do Cais de Maputo ao rio Rovuma (que atravessei). Para o interior atingi as regiões serranas do Alto Tete, pois vivo no Zóbuè. Com esta vida de nómada fui-me empobrecendo cada vez mais materialmente, enquanto enriquecia no conhecimento das nossas microetnias.”
(Aníbal Aleluia, “Contos do Fantástico”.)
Henrique Aníbal Aleluia: aqui o lembro hoje neste breve preito e neste país onde se pratica, com complacência, o esquecimento, a deslembrança e o oblívio. Ou neste tempo de desatenção, indiferença, desrespeito, omissão e descaso.
KaMpfumo, 14 de Maio de 2023
Um sénior citadino da capital do país foi interpelado, na esquina das avenidas 24 de Julho e Guerra Popular, por jovens estudantes que discutiam sobre uma obra que decorre bem próximo e em pleno passeio central da Av.24 de Julho.
Pelo que pude apurar os jovens são estudantes de um instituto que leciona matérias sobre transportes e discutiam se a obra acima referida era ou não uma estação (paragem) do BRT (Bus Rapid Transit), o retomado projecto de faixas/corredores exclusivos de transporte público urbano, recentemente anunciado pelo titular do Ministério dos Transportes e Comunicações
Porque o consenso roçava a impossibilidade os jovens decidiram solicitar a opinião do citado citadino, que por ali ganha o pão. Este, um velho ardina e engraxador da esquina, que depois de (supostamente) reflectir – os sinais do exercício não deixavam dúvidas – respondeu com sotaque de José Maria Relvas: “Se é uma estação do BRT? Não, é uma retrete pública!”.
O sotaque e o termo “Retrete Pública” deixaram-me com alguma curiosidade a ponto de deslocar-me até a dita obra a fim de conferir a placa. Entre outros dados, constava que a obra é do Município de Maputo e de que era um sanitário público. Confesso que enquanto aproximava-me da placa rezava para que a obra fosse uma estação-modelo do BRT.
Prontos: a obra é de facto uma “Retrete Pública” localizada no coração da cidade entre quatro faixas de rodagem (duas de cada lado) da movimentada Av. 24 de Julho. Imagino que aliviar por ali o número dois não será fácil. A cada buzinadela, uma interrupção. E esta pode até ser divina e como causa da morte: “Acidente fatal de viação em posição fecal”. Assim constará na certidão de óbito.
Decerto que alguém pensou, alguém decidiu, alguém financiou e a obra decorre. Igualmente decorrem inquietações cidadãs quer sobre a localização e segurança quer as de ordem estética, sociológica e antropológica, quer ainda da ligação desta obra com o BRT, uma vez que se encontra postada no percurso de uma potencial via BRT.
Em retirada, solene e fúnebre do local, e diante dos jovens estudantes, que se haviam também aproximado da placa, disse-os de que temia que esta retrete pública fosse o retrato público do destino a ser dado ao projecto do BRT. Na verdade, o endereço final de anteriores projectos similares e afins.
Por ora, e a fechar, que se espere pelo dia da inauguração, principalmente pelos discursos e outros actos da ocasião, um momento que aguardo ansioso, pois nunca vi e não sei como é que se inaugura um sanitário público, sobretudo quando a M… já está, previamente, feita.
Nando Menete publica às segundas-feiras.
As quatro bandas já não são as mesmas, jamais voltarão ser. Surgiram do ponto mais alto da música, de onde não haverá mais montanha para subir, ou seja, depois do topo só existe o cosmos e na verdade eles gravitavam no espaço pós-atmosférico. São conjuntos mundiais cujo suporte que tinham, era a própria música que lhes catapultava aos palcos a partir de onde, feitos comportas, abriam-se como os astros que vão dar luz às massas que não se cansavam de os seguir.
Era a crença, mais do que a fé, que movia os seus propósitos. Tudo aquilo, a avalanche das músicas que ofereciam em grandes espectáculos com as pessoas em delírio, se calhar era uma utopia. Nenhum deles tinha ido frequentar as grandes escolas de música e o que faziam nem parecia empírico, mas convocava os estudiosos dos conservatórios.
Moçambique tinha representantes dos quais se vai orgulhar por todo o sempre. Os fervorosos aplausos em cada espectáculo era o testemunho disso, eram muito fortes as ondas, tão fortes que inesperadamente começaram a soçobrar com a morte de Pedro Langa e depois de Zeca Alage, fazendo com que o Gorowane tremesse nas bases, deixando Roberto Chitsondzo a lutar como pode para não deixar derrubar esse baluarte. Mas a mesma luta, sem ser inglória, só pode nos trazer as memórias de um tempo de glória.
Alambique esvaziou-se num momento em que ressurgia, alimentando-nos a esperança de voltar a ver nas praças e nos anfiteatros, um conjunto musical de elite. Antes eram auto-didactas, tocando música de fina estirpe e, agora que foram à escola, ansiávamos ouvir deles “outras coisas”, porém a morte estragou tudo. Levou, da mesma forma como o fez no Gorowane, duas pedras angulares, Hortêncio Langa e Adérito Gomate, deixando Arão Lithsuri desamparado, mesmo assim podendo continuar noutra jangada, conhecidas que são os seus atributos.
Eyuphuru é uma palavra emakwa que significa remoínho. E não temos dúvidas de que eles eram de facto esse vento em rodopio. Mas também como é que a banda podia durar se a vigência dos remoínhos é de pouco mandato? Saíu Gimo Remane para outras terras, ficando Zena Bacar que depois de algum tempo perdeu a vida. Em combate. Então a caminhada do grupo estava comprometida, e hoje o que nos consola é a memória de um vento que soprou à volta do seu próprio eixo ao mais alto nível.
Apesar de todos eles serem bons, mas o Kapa Dêch era conhecido por esses dois, Tony Django e Riberto Isaías. Com eles é que fazia sentido a catadupa inteira. A sua categoria foi demonstrada logo no primeiro album, Kathume, feito de cristais. Depois veio o desfiar de um manancial pensado e ponderado, num rio abundante que podia ter ainda muito leito a seguir. Porém, durante o percurso caíu o Tony no cume, onde a sua alma levita. Roberto vai se lembrar sempre dos momentos em que os dois, ele e o Tony, eram as estrelas que seriam celebradas em qualquer parte do mundo.
“Do trabalho realizado, constatou-se existirem evidências que indiciam ilícito eleitoral. Como medida imediata, foram rescendidos os contratos com os três envolvidos e aberto um processo-crime e, neste âmbito, o Ministério Público vai fazer o seu trabalho”
Luís Cavalo, Director Provincial do STAE, in Carta de Moçambique
“Segundo o Instituto Nacional de Estatística, o recenseamento eleitoral irá abranger perto de 9.9 milhões de cidadãos e perto de 2.8 milhões são das províncias da Zambézia e de Nampula, curiosamente, locais onde se registam os ilícitos eleitorais até aqui publicitados. Isto é preocupante por duas razões: uma, porque a não se parar com estes actos, poderemos vir a ter eleições problemáticas do ponto de vista de liberdade de escolha, de justiça eleitoral e de transparência dos vencedores. Entretanto, existe um dado a não menosprezar: os vencedores destas autarquias estarão melhor posicionados para as eleições gerais para as Presidenciais, Assembleia da República e Provinciais de 2024. Vamos a tempo, unamo-nos por eleições Justas e Livres!”
AB
O recenseamento eleitoral de raiz para as sextas eleições autárquicas de 2023, nas sessenta e cinco Autarquias locais, que decorre de 23 de Abril a 03 de Junho, está a registar muitos ilícitos eleitorais que já levaram à rescisão de contrato com pelo menos um Director Distrital, um Supervisor e um Digitador. Estes foram encontrados a fazer o recenseamento fora do território Autárquico, a 40 km de Ribáuè, às 21:00 horas, recordando que o recenseamento eleitoral de raiz deve acontecer no território das 65 Autarquias, das 8:00 horas às 16:00 horas.
Nota importante é que o recenseamento eleitoral, nas 65 Autarquias locais, prevê, de acordo com os dados fornecidos à CNE pelo INE, recensear perto de 9.9 milhões de eleitores, sendo que, destes, 2.8 milhões nas províncias da Zambézia e de Nampula, curiosamente, locais onde estão a ser registados os ilícitos eleitorais e alguma perturbação de ordem pública nos centros de recenseamento, demostração clara de que será nestas Autarquias onde se vai disputar, de forma renhida, a Governação Autárquica. Pode ser também uma amostra dos resultados das eleições gerais de 2024, para a Assembleia da República, Presidenciais e das Assembleias Provinciais.
Um dado interessante a reter neste processo é que as previsões do custo das eleições foram actualizadas em alta, saindo dos 3.2 mil milhões para 14 mil milhões de meticais. Esta actualização, segundo Lucas Manjaze do STAE, resulta da Nova Tabela Salarial para os funcionários do Estado, do custo dos materiais e de novas Autarquias criadas recentemente pelo Governo de Moçambique. São dados que, sem dúvidas, mostram o quão é cara a democracia em Moçambique, quiçá, em todo o mundo, que, segundo os entendidos na matéria, não sendo propriamente um sistema perfeito, é o melhor na actualidade para a escolha e alternância do poder.
Nesta reflexão, pretendo analisar as várias situações que acontecem por quase todo o território nacional, nas zonas autarcizadas e não só, uma vez que o recenseamento eleitoral, de acordo com as informações que circulam, com mais relevância para o caso de Ribáuè, estão a acontecer em territórios não autarcizados, o que aumenta a preocupação sobre a ordem e a tranquilidade públicas, pois, em muitos casos, são as pessoas singulares que detectam e denunciam esses ilícitos eleitorais. Isso indicia que, caso não sejam tomadas medidas enérgicas contra esse comportamento, poderemos ter eleições autárquicas péssimas, do ponto de vista de transparência e liberdade.
Uma nota curiosa é que as pessoas vêm acusando o Partido Frelimo de “patrocinar” esses ilícitos e, como é público, este Partido, na Província de Nampula, veio a público manifestar o seu desgaste com essas informações, ao mesmo tempo que se distancia desse comportamento de alguns membros do STAE a nível local e Provincial. Ou seja, o Partido Frelimo não tem, em absoluto, nada a ver com as recorrentes denúncias sobre os ilícitos no recenseamento eleitoral, o que pode significar que as pessoas indicadas para representar o STAE, quer localmente ou a nível Provincial, agem por conta e risco pessoal, com o intuito de “mostrar serviço”, o que é de todo mau!
Ora, estamos perante um assunto sério, as pessoas que agem dessa forma devem parar de o fazer, sob pena de criar as perturbações na ordem e tranquilidade públicas nas zonas onde vão decorrer estas eleições. O nosso território precisa de uma Paz social séria e definitiva, precisa de reconciliação no verdadeiro sentido, precisa de tolerância entre os moçambicanos independentemente da sua filiação partidária. Ora, estes ilícitos eleitorais, a continuarem a acontecer, irão, sem dúvidas, dividir moçambicanos pela sua filiação partidária, o que não é desejável. Unamo-nos por eleições, Justas, Livres e Transparentes, isso é possível.
Adelino Buque
Define-se cidadania como a qualidade de um cidadão com um vínculo jurídico, que traduz a condição de um indivíduo enquanto membro de um Estado, constituindo-o como detentor de direitos e obrigações, perante esse mesmo Estado. A cidadania é exercida através da participação na vida pública e política de uma comunidade, (dicionário infopedia).
Moral define-se como um conjunto de valores, individuais ou colectivos, considerados universalmente como norteadores das relações sociais e da conduta dos homens, (dicionário Oxford).
Impostos são os valores que o Estado cobra, pagos pelo cidadão-contribuinte para custear as despesas desse mesmo Estado, em benefício dos cidadãos. Com a cobrança de impostos, o Estado visa diminuir as desigualdades sociais, sendo a tributação uma das ferramentas para a redistribuição de renda.
Desde que existem as civilizações que os cidadãos contribuem através de impostos, taxas e outras diversas formas para garantir a existência do Estado.
Sem o cumprimento dos cidadãos, nenhum Estado poderá subsistir na sua função, afim de atingir a igualdade de oportunidades no acesso à educação, saúde, segurança pública e territorial, pelo que a cidadania e moralidade fiscais são a base da civilização e do desenvolvimento sustentável.
Soberania define-se como o direito de um Estado ter o domínio e poder sobre si, que não e delegável nem renunciável. Sempre ouvi dizer: “quem paga, escolhe a música”. Se o Orçamento Geral do Estado de Moçambique é neste momento constituído aproximadamente com 40% entre ajuda e dívida externa, é caso para perguntar, como podemos ser soberanos?
Uma certa “moda” impregnada pelas agências multilaterais e ONGs veio branquear a economia ilegal, apelidando-a de paralela ou informal (não confundir com o sector familiar), além de atribuir-lhe a indevida dignidade, fazem acreditar que têm direitos como agentes económicos. Como a maioria dos nossos dirigentes dançam a música de quem paga, acabam massacrando os poucos contribuintes que cumprem com os seus deveres (matando a galinha dos ovos d’ouro).
Imoral e insustentável é tolerar e defender ou considerar como parte da “economia” os sistemas paralelos ou ilegais. Estas são algumas das formas que os países que dominam as instituições supostamente multilaterais encontraram pós-colonização, para perpetuar o empobrecimento dos nossos países em seu benefício.
Mais grave é que usam essas mesmas instituições para acusar o nosso Governo de inconformidades fiduciárias e monetária (lavagem de dinheiro). Como é possível combater o contrabando e a fuga ao fisco, quando 60% da nossa economia é ilegal (informal), patrocinada pelas agências de desenvolvimento e cooperação.
Aceitar este tipo de cooperação é uma violação ao juramento que os nossos dirigentes dos três poderes fizeram, aquando da sua tomada de posse, em “cumprir primeiramente com a Constituição da República e demais leis”, fazendo tudo em sua capacidade para preservar a soberania e servir os cidadãos.
Desmotivante é um contribuinte cumprir com as suas obrigações e verificar que o Estado não lhe respeita nem lhe dignifica, distribuindo parte dos seus contributos para o sector ilegal que causa disrupção económica e social, razão pela qual muitos cidadãos e agentes económicos desistem da actividade formal, optando pelos negócios informais ilegais. Porquê?
Porque é muito confortável ser-se informal, ninguém fiscaliza, não há regras, tão pouco leis, até os agentes do Estado mais corruptos não aparecem. Por outro lado, os cidadãos e empresas formais estão registados, localizáveis, alvo fácil para os sanguessugas que não medem a sua agressão, atropelando todos os valores de servidor público e de cidadania.
Mais grave é que o contribuinte que tenta cumprir com as suas obrigações, pagando os seus impostos e taxas, é convidado por agentes tributários a pagar efectivamente menos (com documentos carimbados com o valor oficial) desde que a diferença seja paga em benefício destes agentes corruptos, para não dizer coisa pior. Precisamos de mudar radicalmente a forma como o Governo gere a política tributária.
Precisamos de uma mudança paradigmática da forma como as instituições tributárias fiscais, aduaneira e sociais lidam com os poucos contribuintes, tratando-lhes como criminosos, devendo estes contribuintes estarem constantemente a provar a sua inocência. Mais de 75% das inspecções do sistema tributário visam ameaçar os visados, para alimentar a cadeia de corrupção de cima para baixo, uma cópia ampliadíssima da polícia trânsito.
Se as instituições de anti-corrupção não vêem estes crimes devem fechar as portas, porque estes bandidos não são discretos, nem modestos, actuam com maior descaramento. Para reduzir a corrupção no sistema tributário e aduaneiro, adopte-se modelos digitais de pagamento, de verificação e de inspecções, como acontece no resto do mundo.
Contrate-se empresas privadas para fiscalizar os sistemas contributivos, com benefícios recíprocos sobre a receita adicional. Não pode haver país soberano sem sustentabilidade fiscal, aduaneiro e social. Mais grave ainda é que as vítimas da corrupção tributária (empresas contribuintes) são também vítimas das dívidas, que o Estado não paga às empresas. O Estado é o maior devedor da praça.
Quando o Estado mata as empresas, está a suicidar-se a médio prazo, porque está a destruir a “machamba” que lhe alimenta e que garante a criação de postos de trabalho, estabilidade social e desenvolvimento sustentável. Falamos muito de direitos fundamentais, democracia, eleições, mandatos, para quê?
Se não tivermos cidadãos e soberania, deixamos de existir!
Indivíduos qualificados fiscalmente que não cumprem o seu dever deveriam ter os seus direitos suspensos. Se não contribui para o sistema tributário de forma proporcional não é cidadão! Os agentes tributários corruptos deveriam ser julgados e castigados severamente, como traidores à Pátria.
Nenhuma instituição, incluindo as multinacionais e ONG’s, ou indivíduo deveriam estar isentos da contribuição fiscal proporcional, enquanto o Estado não tiver contas públicas sustentáveis.
Os nossos líderes têm de separar o “trigo do joio” não se deixarem entreter com “faits divers” ou seja, factos diversos, sobre hipotética democracia e direitos fundamentais, quando na verdade os cidadãos supostamente beneficiários quase não existem.
A Luta continua!
Amade Camal