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quarta-feira, 08 dezembro 2021 14:34

Desafios e Possibilidades para o Alcance de uma Universidade de Excelência: a exposição da utopia

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A 1500 metros de altitude, nos planaltos orientais do Zimbabwe, abaixo do monte Nyangani, nasce o rio Púnguè que, em escadaria, vai descendo das montanhas e depois de 400 km de serpentear, recolhendo águas de mais de cinco correntes afluentes, sedimentos e minérios das terras montanhosas a montante e resquícios valiosos de todas as populações (humana, animal e vegetal) que habitam a sua extensa bacia, vem desaguar calmo na cidade da Beira ao nível das águas do mar.

 

Este rio protagoniza, periodicamente, enchentes gigantescas que causam perdas enormes às populações, mas também sacia a sede de milhões de pessoas em Mutare (no Zimbabwe), Manica, Dondo e Beira, estando o seu nome, por isso, associado a contraditórios sentimentos de alegria e tristeza, seca e cheia, fartura e fome.

 

O seu nome representa um desafio constante ao génio humano moçambicano, na necessidade e esforço para dominar os rios de planície como o Zambeze, o Limpopo, o Púnguè, o Save, o Incomáti, o Licungo e, em pequena medida, o Lúrio; usar a força das suas correntes para energizar o desenvolvimento; acondicionar as suas águas para saciar a sede de pessoas, animais e plantas; fruir da geo-diversidade prazerosa nas suas bacias que são o esteio para milhares de espécies vivas e são o acolhimento propício para turistas e estudiosos da Natureza. Este desafio constante, sempre presente no subconsciente dos moçambicanos talvez tenha sido a motivação para que, das oito universidades públicas existentes em Moçambique, seis tenham nomes de rios moçambicanos (UniRovuma, UniLúrio, UniLicungo, UniZambeze, UniPúnguè e UniSave). 

 

Escrevi as palavras introdutórias deste texto, as que se leem acima, numa comunicação que saiu ao público junto do livro “Desafios e Possibilidades para o Alcance de uma Universidade de Excelência”, a convite da Universidade Púnguè.

 

Organizado pela Professora Doutora Emília Nhalevilo e seus colegas Edson Raso e Obete Madacussengua, trata-se de uma colectânea de catorze artigos ou capítulos de dezoito autores. Ele pretende ser o marco de partida na previsivelmente longa caminhada desta instituição de ensino universitário no país.

 

A mim, coube a parte de leão: a de falar, em jeito de apresentação, do livro escrito por docentes e amigos da UniPúnguè; do nosso livro. Entendi, das palavras do prefaciador, o ilustre Prof. Doutor Lourenço Lindonde, Vice-Reitor da UniPúnguè, que o título do livro provém de um desafio lançado pela Dra. Luísa Diogo, que escolheu este tema para desenvolver a primeira aula inaugural proferida para a comunidade universitária desta universidade, em 2020.

 

Ela desafiava a comunidade universitária da UniPúnguè a reflectir em conjunto, sobre o assunto, como que a sugerir uma bandhla constitutiva da universidade, para pensar sobre o caminho que a mesma deveria seguir, de modo a se tornar diferente de entre as cinco universidades iguais, irmãs, surgidas da reestruturação organizativa da Universidade Pedagógica de Moçambique. O resultado desta reflexão foi uma conferência subordinada a este tema que trouxe a visão colectiva de docentes e investigadores da UniPúnguè, feita a partir de diferentes perspectivas de análise e domínios científicos.

 

Escrever um meta-texto, que é um texto sobre outro texto, é por si só bastante difícil. Agrava-se isto se o autor do tal meta-texto for também participante da elaboração do texto inicial e vem se exacerbar quando o temário é vastíssimo e desafiador, integrando áreas de gestão, inovação, sociologia, teoria da pedagogia, psicologia, apenas para citar algumas áreas científicas que consegui descortinar.

 

Vou me esquivar do embaraço, usando três artimanhas metodológicas:

 

Primeira artimanha: Não irei apresentar de facto o livro. Até porque acho que seria um exercício fastidioso tendo em conta o excelente prefácio elaborado pelo Prof. Lindonde, veterano do ensino superior e da sua gestão em diversos contextos e que, de forma clara, resume a essência dos 14 capítulos que compõem a obra. A alternativa seria conduzir o auditório por uma leitura longa e enfadonha do mesmo prefácio, numa aula sem brilho e num exercício de plágio académico. Por isso e por muitos mais motivos, recomendo desde já, a leitura completa e crítica do livro, a toda a comunidade universitária.

 

Segunda artimanha: irei fugir de qualquer cronologia editorial e de qualquer lógica ordinal que seja, na discussão de temas sobre o livro, puxando para o caos qualquer leitor organizado e que esteja à priori à espera de um sequenciamento cadenciado de matérias, teorias, utopias...

 

Terceira artimanha: decorrendo da veleidade a que me permiti e que foi acima referida, irei apenas seleccionar três aspectos interessantes, retirados de diferentes partes do livro e divagar num comentário ténue acompanhado de algumas visões por eu considerar que constituem, no essencial, o leitmotif que atravessa esta obra longitudinalmente.

 

Assim, seleccionei as seguintes expressões: “Qualidade, Excelência e Inclusão para Transformação”; “Transição Demográfica” e “Universidade e Interversidade”. Desafio os leitores a encontrarem estas combinações de palavras no livro. Pretendo demonstrar que as três são a mesma expressão.

 

“Qualidade, Excelência e Inclusão para Transformação”. Estas palavras que juntas ou à parte aparecem mais de cem vezes no livro são sem dúvida a principal visão, a utopia que a direcção da UniPúnguè e a comunidade universitária pretendem que ilumine os seus caminhos. Nota-se uma certa identidade nos pontos de vista dos autores quanto à necessidade de qualquer universidade no século XXI ter que se moldar dentro destes parâmetros ideológico-programático-administrativos.

 

A existência do CNAQ como autoridade reguladora da qualidade, aqui definida de forma bastante objectiva como sendo o cumprimento de certos critérios e indicadores de desempenho, pode ser vista no mesmo âmbito de colocação de balizas bem tangíveis e mensuráveis a que Emília Nhalevilo chama de “universidades movidas por factores que evoluíram para universidades movidas por eficiência” e que, de alguma maneira resumem, do ponto de vista administrativo, o desiderato de qualidade, àquilo que os ingleses descrevem melhor por compliance.

 

A excelência, do mesmo modo, pode ser vista como um estágio de “qualidade máxima”, passando obrigatoriamente pelas fases mais baixas da busca da qualidade através do cumprimento dos indicadores e sempre almejando um nível mais alto de reconhecimento por algum sistema nacional ou internacional de ranking de universidades. O cliché completo que se usa é o de “centro de excelência” que caracteriza uma universidade ou unidade dentro da universidade exibindo uma organização administrativa excepcional, um desempenho dos recursos humanos formidável, um apetrechamento infraestrutural invejável, um acesso e uso de recursos extraordinário, para além de um reconhecimento transnacional.

 

Conhecem estes superlativos?

 

A inclusão, o termo mais recente neste trinómio, decorre das tendências sociais globais de democratização, reconhecimento das diferenças entre pessoas, participação, liberdade de opinião e etc., que constituem uma conquista do movimento da sociedade civil de todo o mundo e são muito aceites na praxis discursiva política da actualidade, mesmo que ainda representem um desafio para toda a humanidade assumi-las.

 

O segundo grupo de palavras, “Transição Demográfica” representa um conceito ultramoderno pois pode ser extrapolado para uma série de mudanças nos meios e factores de produção que devem ser feitas no âmbito desta mesma transição demográfica.

 

Encerrando em si, strictu sensu, a necessidade de mudança das pessoas que no dia-a-dia entram no campus universitário, na verdade podemos entendê-la como a abertura da universidade para alunos de todas as raças, tribos, géneros, crenças religiosas, posses económicas, portadores de qualquer diferença, acompanhado por uma diversidade e rejuvenescimento da comunidade universitária.

 

O termo da “transição demográfica”, porém, rima com outras “transições” sendo a mais importante delas, a “transição energética”, de que muito se falou muito recentemente em Glasgow na COP, uma reunião mundial sobre o ambiente.  Os desafios para atingir a transição energética para a neutralidade em relação ao carbono, irão implicar não apenas a mudança da matriz energética do ponto de vista de planificação para combustíveis mais limpos, mas também a mudança na filosofia da vida de toda a Humanidade, do padrão de consumo, dos conceitos básicos de riqueza e necessidades básicas, de desenvolvimento, etc.

 

A inércia deste sistema é grande. Esperem encontrar também. Igualmente, grande resistência para a transição demográfica.

 

O terceiro grupo de palavras, é o trocadilho “Universidade e Interversidade”. Ele chama atenção pelo antagonismo do “uni” e “inter”. Se o “uni” quer expressar o facto de as universidades terem que ser instituições monolíticas, com regras de existência bastante rígidas (acreditação, graduação, reconhecimento e validação, peer-review, currículos clássicos, laboratórios típicos, metodologia estanque de ensino), já o “inter” quer significar uma mescla entre instituições que são diferenciáveis (veja o “inter-nacional” é algo entre nações).

 

Esta necessidade de ser universidade e interversidade ao mesmo tempo, igual às outras, mas diferente de todas, local mas global (ou glocal) é abordada com rigor por Diogo, Nhalevilo e Uthui.

 

Diogo chama a atenção para a necessidade de o nome UniPúnguè ter que ultrapassar o nível de um nome (um nome atribui-se) para passar a ser uma marca, pois a marca conquista-se. Nhalevilo chama a atenção à necessidade de as universidades conquistarem a sua relevância junto da sociedade através da inovação e do reconhecimento de que small is beautiful, ou seja, pode-se inovar sem se estar dentro de laboratórios caros e com equipamento de ponta, desde que se preste atenção apenas às necessidades das populações (ao exemplo do inventor africano Mahomed Abba).

 

Numa outra parte, exploram-se os conceitos de diversidade, glocalidade e marca universitária da seguinte maneira (e passo a citar):

 

“A milha extra (extra mile)

 

Na nova imagem corporativa, o logotipo da UniPúnguè destaca a imponência do embondeiro, a firmeza da terra e o profundo azul das águas do rio. A grande árvore simboliza a solidez do conhecimento tradicional e da cultura dos povos destas terras e o dourado da terra – as riquezas do solo e subsolo. Já o leito do rio, desaguando em splash na árvore, desenhando os contornos de um grande livro, é o símbolo inequívoco do conhecimento positivo a ser gerado também pelas culturas, tradições e saberes dos povos que povoam a extensa bacia do Púnguè e têm a sua sobrevivência associada aos caprichos do grande rio.

 

A junção semiótica dos três sinais da natureza simboliza, para mim, a visão partilhada na nova universidade, de trazer o conhecimento tradicional para ajudar na geração de conhecimento universal, sempre de forma aberta (o livro aberto induz a esse sentimento), receptiva e dialógica entre os dois conhecimentos, uma teoria filosófica moderna para o caminho de desenvolvimento a seguir na época da globalização: a glocalidade (Castiano…).

 

A presença de uma estratégia muito clara e destacada neste plano de desenvolvimento institucional, realçando a forma como as ricas culturas dos povos da bacia do rio Púnguè podem ser trazidas para o diálogo privilegiado universitário, com outras muitas culturas mundiais, partilhando um espaço próprio que possibilite seu desenvolvimento, sua afirmação e divulgação, nas diversas áreas de saber como medicina, música, religiosidade e sistema de crenças, língua, história e estórias,  pode constituir o extra mile para este plano e desde já expressar o compromisso da liderança com a glocalidade.”

 

Comprem e leiam o livro!

 

Rogério Uthui

 

3 de Dezembro de 2021

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