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quinta-feira, 28 outubro 2021 14:55

Ungulani, o irreverente desarrumador de ideias

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De cada vez que me debruço sobre a literatura moçambicana, de forma deliberada ou fortuitamente, parece impossível não mergulhar nesse imaginário de palavras e sons dos mais talentosos escritores moçambicanos e, claro, desse iconoclasta amigo Ungulani. Cultivo uma inqualificável empatia com a maior parte dos escritores da sua geração, também minha, porém, nutro especial e inquebrantável respeito e admiração pelas anteriores gerações de escribas.

 

Revisitando emblemáticos escritos na delícia do conforto de que proporcionam a alma, se tornou quase impossível escalonar as melhores obras, sob o risco de omissão de outras. São todos produto da emancipação deste país, do sonho azul da revolução e dessa esteira literária de combate. De um modo, ou de outro, devemos gratidão aos instauradores da literatura moçambicana, e que a transformaram num movimento único, assumido e memorável. Independente das épocas e períodos históricos, cada uma das gerações impregnou a manipulação da palavra e da imaginação, tatuou a resistência a escritos não panfletários e a renegação do seu próprio destino. Enfim, sem eles, não teríamos embarcado na sobriedade, credibilidade e honestidade. Na libertação do pensamento livre e descomprometido.

 

Cumpliciei com Francisco Cossa, Chico, nome mais familiar, ao longo de décadas. Por vezes, com mais proximidade, noutras, nem por isso. Nada que tenha beliscado esta amizade. Na panóplia de momentos pitorescos, nas tertúlias, no santuário de bebedores, guardamos inesquecíveis e insuperáveis momentos de inigualável convergência. Ele, como Mestre, e eu, como aprendiz. Uma amizade que se reconstruiu em irmandade, com esse implacável recurso à negação da fatalidade e do senso comum. Já nessa altura, ele demonstrava uma capacidade de imaginação e um poder efabulatório muito acima do normal. Estava escrito nas estrelas que ele terminaria escritor.

 

Não tardou que se agigantasse, e se transformasse em Ungulani. O Ba Ka Khossa. Esse trocadilho de nome, que representa um país e suas raízes literárias. Ungulani Ba Ka Khossa, esse talentoso homem de Inhaminga, região central de Moçambique, se assume como moçambicano de todas as províncias. Uma espécie de um gigantesco polvo, cujos tentáculos se confundem com as metástases da cultura de cada grupo étnico. Nesta convocação, o revejo como parte das minhas amizades iniciáticas. Formando como professor de história, com um substracto assente em obras literárias.

 

Ungulani foi céptico sobre os caminhos da literatura moçambicana num dado momento histórico. Sentia descaso com as autoridades, insensibilidade das escolas e instituições gestoras. Entendia que o rumo não seria a poesia fácil, despida de técnicas, rigor, e outros atributos convencionados. Fincava sua fé na prosa e na ficção. Mas, nunca perdeu as esperanças. Hoje, já fala da literatura moçambicana com paixão e optimismo. Poderia ser melhor, mas já sente um reviver do compromisso com o discurso sóbrio, com os escritos inspirados na tradição oral, com a exploração dessa originalidade Bantu e suas múltiplas línguas nacionais. Essas são as marcas que farão a identidade da nova vaga de escritores.

 

Eventualmente, nos conhecemos naquele invulgar movimento, anunciado por Samora Machel, a 8 de Março, que concentrou no Maputo jovens estudantes que se converteram em ousados professores circunstanciais. Anos mais tarde, reencontrei-o, assumindo postura burocrata no ministério da Educação e Cultura. Partilhava a sua sala com Ana Elisa Santana Afonso. Ela seguiu a carreira na UNESCO, Ungulani ficou-se por aqui e com seus livros. Na época, Ungulani e Ana Elisa ajudaram a resolver pepinos de colegas que não souberam ler e nem entender o sistema. A juventude não permitia outros entendimentos da revolução e nem imaginavam os riscos associados ao pensar e sonhar diferente.

 

Anos mais tarde, Ungulani já estava engravidado do consagrado Ualalapi. Esse livro se converteu num dos 100 melhores do século, no continente africano. Merecidamente. Esta foi a obra que exacerbou os entendimentos sobre as lanças dos guerreiros do Império de Gaza. Reavivou Gungunhane, sua astúcia e malícia, explorou o papel de suas esposas. Mas, foi o livro do apocalíptico império de Gaza com suas virtudes e defeitos e personagens que se imortalizaram.

 

Ainda nessa época, ele falava da sua paixão sobre o escritor colombiano Gabriel García Márquez. Essa apreciação pode ter ajudado a reafirmar um laço que estava escrito pelo destino. “Cem anos de solidão” é considerado o maior exemplo do género literário do designado realismo mágico. Gabriel Garcia Márquez retracta, no livro, eventos sobrenaturais, num tom objectivo e pragmático, enquanto, os normais e factos históricos, como pura fantasia.

 

Acredito, firmemente, que Francisco Khossa, o Chico, repensou no apelido Ungulani, como o próprio nome fictício do vilarejo Macondo, do livro de Márquez.  Mas, a Agustina Bessa-Luís e Jorge Amado nunca saíram do seu vocabulário. Para Ungulani, qualquer grande escritor precisa de ser um bom leitor.

 

Ungulani nunca se preocupou em defender a investigação histórica, mas tem na essência o mérito de lhe conferir credibilidade e prazer de leitura dessa narrativa histórica. Como historiador e escritor, Ungulani coloca todo o seu saber naquilo que produz e pretende transmitir, tornando a história em verdadeira representação literária e, ao mesmo tempo, em arte de encenação. Esta é a conclusão de um amigo comum, o Marcelo Panguana.  Mas, o Ungulani encerra, em si mesmo, várias facetas, estórias e personalidades. Um homem inspirado e, insofismavelmente, ligado às grandes leituras da sua época.

 

A crítica literária tem sido muito complacente e assertiva para com o Ungulani. Ba Ka Khossa foi consagrado como contista de reconhecido mérito, amadurecido pela diversidade e abordagem na sua inquestionável produção literária. Ele se transformou em alguém que recorre ao metaforismo e à magia na recriação de personagens. Ungulani fará parte do distinto grupo dos mais nobres escritores do seu tempo, com essa capacidade de reconstruir, como ninguém, a saga que têm sido os anos de conflito armado no país.

 

Ungulani, fazendo alguma justiça é, igualmente, um devoto e apaixonado fiel de Luís Bernardo Honwana. Ele o considera o Pai da literatura moçambicana. Tem as suas razões e não ousamos questionar esta distinção. Aliás, também defende que a charrua é a melhor revista literária do mundo. Assim tem sido Ungulani, um destemido provocador, um desarrumador de ideias e um iconoclasta, como o define Nelson Saúte. Ungulani, enfim, será sempre o símbolo-mor da nossa geração, um desalinhado; alguém que pauta pela sublevação, desapegado dos ditames desta e outras épocas. Permanece alheio às lides do aparelho ideológico e discordante das ideias que reprimem a liberdade de criação.

 

Temos uma particularidade. Amamos o Niassa, a Sibéria moçambicana. Ele, porque passou algum tempo para se auto-educar, e eu porque aprendi a amar a natureza e seus animais. Acreditamos na magia deste pedaço de terra. Um dia, Niassa se converterá no melhor espaço do mundo. Quando não existir mais água, o lago vai matar a sede de toda humanidade e saciar a sua ganância. Até lá, seremos gratos por ter convivido, desfrutado e beneficiado dessa veia literária tão mordaz quanto profícua. (X)

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