AS MÃOS DE DEUS
Para a Mayisha Imara
Mr. Abdullah Ibrahim acena-me
no saguão do aeroporto de Joanesburgo
como se eu fosse um velho conhecido
do District Six na Cidade do Cabo.
Ou se o acaso nos tivesse interposto
numa dessas cidades do seu exílio
com aquele inexpugnável piano
desde que os verdugos do apartheid
fizeram-no proscrito da África do Sul.
Digo à minha filha Mayisha
que estamos diante de um soberbo pianista de jazz
e viro-me para o velho Mestre:
- Mr. Ibrahim
sou moçambicano
e antigo admirador seu.
O pretérito Dollar Brand anui
com aquele seu olhar translúcido
melancólico
e, curvado ao peso dos anos,
inclina-se em generosa mesura
e cumprimentamo-nos de punho cerrado
como comparsas de uma mesma progênie.
Mayisha faz-nos uma fotografia
e Mr. Ibrahim enlaça-me
num benevolente amplexo.
Faço-lhe uma vênia compungido
levo adiante a minha filha pela mão
enquanto o velho pianista se extravia
no azafamado átrio do aeroporto.
Explico à Mayisha
que aquele belo homem
de cabelo grisalho
alto
hierático
é um pródigo músico da Cidade do Cabo
que ela traz por domicílio.
Falo-lhe de Mannenberg
e a luta pela liberdade.
Conto-lhe a história do District Six.
Não me ocorre aludir ao pungente sax tenor
de Basil Coetzee também proscrito.
Ou citar o sopro metropolitano de Kippie Moeketsi.
Falo-lhe de Duke Ellington, pianista.
John Coltrane, saxofonista. Ornette Coleman, também saxofonista.
Todos eles cúmplices de Dollar Brand.
Ou o velho Thelonious no seu trôpego piano.
Ela sabe da minha insânia por Sibongile Khumalo
o meu desvario por Hugh Masekela ou Sipho Gumede.
Falo-lhe destes músicos intrépidos.
Não me atardo no jazz sul-africano.
Poderia falar do precoce Moses Molelekwa
ou do vetusto Jonas Gwangwa.
Retorno ao meu velho amigo
Adolph Johannes Brand
Dollar Brand
Abdullah Ibrahim
e ponho-me a pensar
na mandiga dos seus dedos
ubérrimos
sobre um piano melancólico
quando ele
compassivo prestidigitador
toca com as mãos de Deus.
Nelson Saúte
Joanesburgo, 29/06/2016