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Hélio Guiliche

Hélio Guiliche

É manchete um pouco por todo lado e é inclusivamente o tema mais candente do momento, e com maior incidência nas nossas redes sociais que com velocidade da luz espalham tudo o que é considerado matéria para internautas e consumidores e difusores acríticos de informação – o caso Matalane.

 

Foi noticiado que instruendas do curso de formação de polícias, terão sido abusadas sexualmente pelos respectivos instrutores e que pelo menos 15 delas se encontram grávidas. Este facto gerou uma onda enorme de consternação entre os mais sensíveis a questão do género, ética e deontologia e direitos humanos. Dois grupos de opiniões dominam os debates na imprensa, nas redes sociais e noutros fóruns: uns condenam veementemente as instruendas acusando-as de falta de carácter e de cultura, de ganho fácil e menor esforço durante os treinos. Outros atacam os instrutores considerando-os monstros que envergonham a corporação e o Estado moçambicano.

 

Nisto muita tinta corre e ainda não chegamos ao cerne da questão. As 15 instruendas não devem ser tratadas como números e na verdade não são números, mas entram na grande lista oculta de vítimas de forma silenciosa cede aos prazeres de quem acha que detém poder para atropelar a dignidade humana e subjugar os ditos fracos. A nossa indagação deve buscar as raízes destes comportamentos e tentar perceber o seu caminho para que se tenham fixado como parte da cultura institucional.

 

Este triste caso veio desvelar uma realidade ignorada por muitos. Irei chamar a essa realidade de promoção da mediocridade. Promoção  da mediocridade colide com os esforços que há anos temos estado a lutar para construir instituições fortes, de direito, capazes e transparentes, instituições de respeito e de referência, mas que paradoxalmente caminham para uma gritante desumanização do Homem – no caso vertente este Homem é a mulher que ainda é vista como inferior e objecto de deleite e saciedade de prazer.

 

Não se pode ter instituições fortes quando existem homens fracos e medíocres que promovem o caos. São homens que colocam as relações de poder como base para tirar vantagem de outrem. Julgam-se acima da lei e dos princípios e que impelem a sociedade a aplaudir imoralidade, a coadunar com coisas erradas e a prostrar-se diante de actos abomináveis. As instituições que temos estado a construir são baseadas em leis e protocolos - essas leis e protocolos devem ser cumpridas por cada um de nós. Não se trata de falta de protocolos, nem de leis e muito menos de instrumentos reguladores. Trata-se de uma legitimação tácita e um atropelo sistemático acobertado por um grupo de pessoas que pretende perpetuar tais práticas e minar a imparcialidade a fortificação das instituições.

 

Numa organização que em princípio se guia por leis e procedimentos burocráticos torna a sua administração mais eficiente e eficaz e isso garante racionalidade no trabalho. É consabido que numa organização pública ou privada, o cumprimento normal e continuado dos deveres bem como o exercício de direitos correspondentes é assegurado por um sistema de normas e somente podem prestar serviços aquelas pessoas que segundo as regras gerais estão qualificadas para tal.

 

Estes traços remetem-nos as principais características da teoria da burocracia, cujo fundador foi Max Weber. De acordo com Weber a administração segue princípios baseados em documentos escritos como por exemplo a hierarquia de cargos, as competências de cada funcionário bem como a situação do funcionário de escalão inferior (subordinado). Os funcionários inferiores são controlados pelos funcionários superiores sem que isso constitua “chance” para os superiores se aproveitarem da situação do funcionário de escalão inferior. Max Weber defende ainda que as actividades exercidas pelo subordinado são garantidas por normas estabelecidas num Código de Penal que o defende dentre várias infrações os insultos, maus tratos, assédio sexual e etc. 

 

A nossa indignação não pode se cingir apenas a Matalane, Munguine ou a outros centros de formação, mas sim a vários outros sectores da nossa sociedade como ministérios, escolas, universidades, bancos, e outras instituições públicas e privadas. Os abusos perpetrados pelos instrutores são uma réplica dos abusos que são igualmente praticados contra centenas de mulheres e raparigas nas escolas e universidades apenas a título de exemplo. O pretenso poder que o formador, instrutor e professor tem sobre os formandos faz com que se crie a cultura sexista na nossa sociedade – uma cultura que oprime, humilha e retira valor a mulher e a rapariga.

 

Mais preocupante ainda nessa relação de falso poder e falsa supremacia é a falta de cultura de denúncia e de responsabilização acompanhadas pelo medo exacerbado. Quando essa lucidez e coragem existe, os prevaricadores são protegidos pelos sistemas e em escala a impunidade cresce e a descrença sobre o real aumenta enfraquecendo assim o poder e valor das instituições. Não se trata de falta de aporte legal, muito menos de falta de instrumentos reguladores. Trata-se sim de uma mentalidade promíscua, pequena e oportunista que cria pequenos monstros que criam horrores contra inocentes.

 

Como sociedade somos chamados a reflectir sobre o valor e lugar da moralidade, da ética e da deontologia e sobre limites da concupiscência. Somos chamados a demandar por justiça e exemplar postura das instituições de justiça.

 

Hoje de viva voz, por um lado condenamos e por outro aplaudimos aquilo que julgamos ser politicamente correcto e socialmente aceitável. Sequer nos demos tempo para ficar no lugar do outro e tentar sentir a dor do outro, a dor daquela mulher que procurou formação e foi abusada por aqueles a quem confiou sua formação; a dor daquela mulher que depois de grávida a sociedade lhe chama nomes, isola e exclui. É preciso pensar e agir para que isto não aconteça de novo e que não levemos ao de leve algo tão profundo.

 

Na construção daquilo que queremos como sociedade, estamos a permitir que práticas condenáveis e desprezíveis entrem no nosso modus operandi. O nosso silêncio e consentimento pelo atropelo a lei é uma arma que mata milhares de mulheres e raparigas no nosso país e deixa marcas psicológicas que se manifestarão nas gerações que estão por vir.

 

O Moçambique do amanhã é e está dependente do que fazemos hoje. As mães abusadas, os filhos renegados e as mulheres violadas são a expressão mais sublime daquilo que consentimos com as 15 mulheres de Matalane e com os milhares de raparigas e mulheres espalhadas por todo o país que por conta da realidade adversa não dão rosto aos abusos sofridos.

 

Hélio Guiliche (Filósofo)

 

segunda-feira, 27 julho 2020 07:10

Cabo Delgado – Entre carnificina e a barbárie

É a província que hospeda a terceira maior baía do mundo; Província bafejada por acidentes geográficos únicos e com características morfológicas ímpares; Dona de uma paisagem turística sem igual e de regalar os olhos de qualquer um que a conhece. Rica e diversa culturalmente do planalto à planície, passando pelo vasto litoral maioritariamente virgem.  É também lá onde existem uma das maiores reservas de gás natural do mundo, rubis únicos e outras mais riquezas.

 

Pela riqueza abundante, o antigo Porto Amélia tinha condições para hipoteticamente ser o nosso Cabo da “BOA” Esperança, onde a bênção dos recursos poderia ser traduzida em esperança e prosperidade para a província e para  o país que muito anseia pelo usufruto da sua riqueza.

 

Alguém a chamou de Cabo do Medo pelos horrores que lá se vivem desde 2017 com a incursão de insurgentes que ceifam indiscriminadamente vidas humanas, queimam casas, destroem infraestruturas, plantam pânico e luto nas comunidades e aniquilam sonhos de milhares de moçambicanos incluindo crianças e jovens. De lá para cá, a nossa província se transformou literalmente num campo de guerra – uma guerra inicialmente chamada de sem rosto e agora com rosto e identidade, onde diariamente nos chegam relatos de vidas perdidas, pessoas mutiladas e um futuro uma vez mais adiado não se sabe até quando.

 

A nossa linda província de Cabo Delgado, vive hoje um cenário desolador com ataques vindos de todos os lados e com o cheiro a morte presente em cada passo de cada cidadão. Hoje escrevo sem a habitual paixão e  mergulhado num sentimento de impotência, consternação e angústia por não poder fazer objectivamente nada para mudar o rumo dos acontecimentos naquela parcela do nosso país. Mas com a força e o poder da escrita, espero poder influenciar positivamente a quem for a ler este curto texto de pedido de socorro.

 

Os reais inimigos de Cabo Delgado não são apenas os insurgentes que perpetram actos macabros e vis; Somos nós que de certa forma compactuamos por não dar a devida atenção à barbárie que lá se vive, e de ânimo leve alimentamos um silêncio ensurdecedor. Cabo Delgado demanda uma intervenção coerciva e de força por parte do Estado; precisa de uma mobilização colectiva e de uma intervenção social multissectorial  urgente – e isto passa por repensarmos e reorganizarmos as nossas instituições para que se tornem mais fortes e responsivas. O Estado moçambicano precisa fundar um novo paradigma de defesa e segurança e garantir que a sua soberania seja respeitada.

 

Enquanto os refugiados de Cabo Delgado forem apenas números de pessoas em movimento para alimentar estatísticas dos demógrafos; Enquanto as mortes de inocentes (homens, mulheres, crianças e idosos) significarem uma ínfima e insignificante amostra de um todo que pouco se importa com o valor do outro; Enquanto o desprezo pela vida humana for característico de uma sociedade que se pretende mais humana e solidária mas que no fundo se comporta como egoísta e irracional; Enquanto não se assumir que cada vida que tomba em Cabo Delgado é menos um sonho comum, menos um actor para a concretização dos objectivos que temos como país, as coisas continuarão assim como estão e a chacina continuará.

 

Não vale a pena tentar minorar a situação de guerra que lá se vive, tampouco escondermo-nos em subterfúgios para justificarmos o nosso desejo de pouco ou nada fazermos, e de esperar que os outros o façam por nós. Se o país é de todos nós como se diz, todos devemos fazer parte dos momentos dele – sejam eles bons ou maus. E este é um daqueles momentos em que somos convidados a mostrar a nossa moçambicanidade . Não precisamos ir ao campo de batalha pegar em armas e disparar, nem mesmo em catanas e praticar a barbárie. Precisamos gerar ondas de solidariedade e melhorar a abordagem e começar a olhar para o outro e assumir que o outro é parte de nós. Precisamos como país e como nação fazer com que o nosso grito seja audível cá dentro e pelo mundo fora. Precisamos de um pouco mais de compromisso com a alteridade e um pouco mais de respeito pela dignidade da pessoa humana e pelos direitos humanos que são violados a cada instante.

 

Quando ia escrever o último parágrafo, lembrei-me do refrão de uma canção que se tornou uma célebre referência durante a minha infância - Os meninos de Huambo“Os meninos à volta da fogueira, vão aprender coisas de sonho de verdade; Vão aprender como se ganha uma bandeira; Vão saber o que custou a liberdade”.

 

Lembrei do quão criativa e inspiradora foi e é a canção, mas que infelizmente os meninos e meninas de Quissanga, Montepuez, Macomia, Nangade, Mocímboa da Praia, Palma, Namanhumbir e outros distritos de Cabo Delgado ainda não podem cantar. Os meninos e meninas de Cabo Delgado estão debaixo de um fogo que não aquece, mas queima e estão a aprender coisas de terror, de medo, e não conhecem neste momento o significado nem o valor real da liberdade e ainda correm o risco de ver uma nova bandeira diferente da nossa ser içada. Não são vitimas da colonização mas são uma versão moderna e a personificação de “Os condenados da Terra” de Frantz Fanon.

segunda-feira, 22 junho 2020 06:40

Como entender o fenómeno do racismo hoje?

Os povos outrora colonizados foram vítimas de um processo brutal e desumano arquitetado ao detalhe e implementado impiedosamente pelos colonizadores. Esse processo foi altamente destrutivo e corrosivo tanto física como psicologicamente; Os povos colonizados são até hoje vítimas das mais vis atrocidades perpetradas pelo opressor - as feridas aparentemente sararam mas as cicatrizes são visíveis e ainda doem. A ideia de alguns grupos admitirem ser superiores intelectual, cultural e humanamente e outros inferiores, deixou marcas indeléveis colocou a humanidade numa guerra silenciosa e que custa vidas e retrocessos a dita civilização; Os povos colonizados tem em mãos a decisão sobre o seu presente e seu futuro mas adiam-na sistematicamente por um pretenso medo de serem efetivamente livres e autônomos – há ainda vivos fortes traços da colonização mental na sua acção.

 

O racismo, com a sua prepotência ideológica faz com que alguns se tornem superiores em relação a outros, assentando principalmente na ideia de que as desigualdades entre os humanos estaria fundada na diferença biológica, na natureza e na constituição do ser humano. Esta postura é maioritariamente assumida por pessoas de raça branca que, de forma recorrente fazem uso da sua posição força e condição de suposta  vantagem para ultrajar e subjugar os chamados inferiores.

 

Hodiernamente, novos estudos e novas abordagens tendem a separar conceito de racismo à simples ideia de raça e racialismo. Tendem igualmente a oferecer explicações sobre esta problemática do racismo na sua relação histórica com a escravatura, colonização, descolonização e neo-colonização. Estes conceitos e temas mostram-se sensíveis no seu trato e cada vez mais actuais, e carecem de uma hermenêutica mais detalhada para  ajudar a perceber a real ameaça do racismo nos dias de hoje.

 

A história moderna testemunhou a várias colocações científico-literárias de afirmação e difusão de ideias de superioridade de um grupo auto-denominado superior em relação ao outro por analogia designado de inferior – das teorias do pré-logismo do homem primitivo, passando pelo bom selvagem, até às teorias positivistas de Augusto Comte é notório um esforço titânico e uma luta visceral para depreciar e anular a humanidade do homem negro e consequentemente a sua racionalidade, história e cultura. A bem da verdade é importante que se admita sem ressalvas e que se diga que a ocupação, partilha e exploração de África assentou-se nesses pressupostos de superioridade e numa ideia de necessidade tácita de salvação dos negros africanos, índios da América Latina, indígenas das Índias e aborígenes na Austrália.

 

A escravatura é de longe o mais abominável e hediondo acto praticado pelo Ocidente contra os negros. Os seus efeitos se fazem sentir até hoje e mais do que nunca geram cada vez mais repúdio e descontentamento. Ela foi abolida formalmente, mas são visíveis novas e diversas formas de manifestação da escravatura moderna em vários cantos do mundo.

 

Quando as grandes migrações e viagens históricas aconteceram com o móbil dos descobrimentos e evangelização, e enquanto as migrações em massa tinham o sentido “Norte-Sul”, ou Europa – África como queiramos afirmar, o nome atribuído foi salvação, civilização, filantropia e purificação - e pela bondade, pureza e inocência do africano, este processo foi o menos sangrento e violento possível – as armas e os chicotes funcionaram lado-a-lado com a bíblia e com a doutrina de salvação. O continente negro era uma espécie de El Dourado e um poço de riqueza abundante capaz de alimentar o fulgor da indústria europeia. Contemporaneamente as migrações tomaram outro sentido “Sul-Norte”, ou África – Europa - América, e milhares de imigrantes africanos em busca de melhores condições de vida se fazem viajar ao chamado velho continente. O drama da migração de africanos para a Europa (principalmente usando o norte de África como porta de saída) tem merecido todos os adjectivos pejorativos por parte dos países receptores – E estas adjectivações contém sempre uma grande dose de depreciação racial.

 

Com os avanços tecnológicos vividos nos dois últimos séculos, onde a produção e circulação de conteúdos tiveram um alcance maior,  foi muito mais visível a dura e crua luta do negro  e o drama  por ele enfrentado no mundo com a impetuosidade da escravatura. Este drama é um problema universal e que carece de uma reflexão e intervenção global. Os séc. XX e XXI são indubitavelmente os séculos de afirmação do negro em vários âmbitos e áreas mas esta luta é ameaçada pelo “bicho” do racismo que mina a realização plena do homem negro. São dois séculos em que as lutas dos negros de todo mundo se fizeram sentir de forma mais vibrante com recurso a música, a literatura, ao cinema, ao desporto, a arte, a cultura e à várias outras formas de manifestação artística, intelectual e cultural que alavancaram a marcha de reconhecimento da humanidade do negro – uma marcha diga-se em que tudo o que se pede era o reconhecimento do lugar no negro no mundo e o respeito básico dos direitos do homem.

 

Mas importa referir ainda que os avanços registados nesta secular luta de emancipação e reconhecimento, nem sempre foram reconhecidos pelos perpetradores da violência contra este ser chamado de inferior. O espírito de superioridade ainda não permite que se olhe para o negro como um ser que faz parte do enredo civilizacional. Os ideais proclamados na Revolução Francesa - Liberdade, igualdade e fraternidade – tem um conteúdo estético belo mas não passam de mais um slogan que se distancia da realidade social factual.

 

Quando se pensa que o mundo contemporâneo deu passos rumo a uma maior coexistência entre diferentes grupos de pessoas, religiões, cores, eis que regredimos, e tocamos o ponto mais próximo de uma das premissas kantianas que remetem a uma menor idade racional. 

 

Do brutal assassinato de George Floyd à consternação global

 

O mundo parou com a brutal a morte do afro-americano George Floyd por um policial branco norte-americano. Uma acção desproporcional de uso da força e de desprezo pela vida humana; E que só teve a repercussão que teve porque o registo se tornou viral. Na verdade, aquele é o modus operandi da polícia norte-americana, e aquela é a forma impiedosa como os negros e afrodescendentes  são tratados em vários quadrantes do mundo. O que tornou Floyd um mártir não foi apenas a forma como foi morto, mas sim a frieza de quem o matara e o poder da força de mobilização das redes sociais que em pouco tempo tomaram as dores do negro em escala mundial. George Floyd é apenas mais uma vítima daquilo a que anteriormente chamamos de drama do negro no mundo contemporâneo. É mais uma vítima de todo um sistema ideológico assente em pressuposto de supremacia de um grupo, que colapsou e não se consegue disfarçar de tão poluído e desumanizado que se encontra. Drama porque ao negro não é reconhecida a humanidade nem a dignidade; ao negro é imputada uma série de acusações de má conduta e desvio social,  e pesa sobre ele a herança de todo um jogo depreciativo que o associa ao lado obscuro da história.

 

(In) felizmente, esta e outras mortes serão mediatizadas ao extremo e usadas até de forma política com fins diversos, mas se não paramos para estudar a raiz do problema e atacar as suas causas para podermos desenhar estratégias de mitigação, uma vez mais o esforço será indigno e inglório. As manifestações em todo mundo irão durar o tempo que tiverem que durar; a consciência popular irá emitir vozes de revolta, cansaço e repúdio, e a história irá abrir-se para uma nova fase em que tudo pode ser diferente se e somente se reformas institucionais e curriculares tomarem lugar.

 

O slogan black lives matter (vidas negras importam), tornou-se popular e viral e afirmou-se como slogan de guerra entre os manifestantes de dentro e de fora dos EUA. Particularmente olho com desconfiança para este slogan e tenho as minhas reticências sobre o seu enquadramento. Considero uma mensagem poderosa e ao mesmo tempo frágil nesta luta que se pretende travar contra o racismo. Ao afirmar que vidas negras importam, queremos chamar atenção ao grupo que mais sofre com as atrocidades do racismo, mas caímos inconscientemente num polo exclusivista visto que usa-se precisamente a arma de superioridade do branco para enaltecer o valor da vida negra. É um slogan necessário pela gravidade do assunto mas atropela levemente a globalidade da dignidade da pessoa humana onde se considera que a vida humana na sua essência está acima de todo e qualquer diferencial racial, religioso, cultural e ideológico. Nesta perspectiva, as manifestações que assistimos pelo mundo fora pode ser entendida como a síntese da escravatura, da colonização e de uma descolonização que nunca devolveu a dignidade outrora retirada.

 

Por: Hélio Tiago Guiliche (Filósofo, docente universitário)

África, a história consagrou-te como sendo o “Berço da Humanidade” e, paradoxalmente hoje te consideram “o novo continente”. Mas não é sobre este paradoxo que aqui pretendo dissertar. É a história que testemunhou desde muito cedo a apetência das potências imperialistas ávidas em explorar os seus recursos, o seu povo e toda uma riqueza que humana, cultural e intelectual.

 

É sem sombra de dúvidas um continente bafejado pela existência de enormes quantidades de recursos naturais que foram inicialmente vistos como uma bênção mas que muito cedo se tornaram numa maldição que adia o desenvolvimento pleno do continente. Esta maldição traduzida em guerras, genocídios, corrupção, má governação que perpetua a fome, a miséria, as desigualdades entre o povo e adia o grito de liberdade total e completa que tanto almejamos.

 

Foram mais de 500 anos de uma colonização que quase tudo tirou do chamado “novo continente”. 500 anos de uma epopeia imperialista desenhada e implementada pelo Ocidente e que iniciou com a procura de matéria prima para a incipiente indústria europeia e procura de novos mercados. Com a narrativa das supostas viagens dos descobrimentos a geografia mundial ganhou outra dimensão económica, religiosa, cultural e humana – a hegemonia do norte para o sul foi cimentada e o mundo passou a ser dominado pela palavra civilização que era apanágio do Ocidente imperialista. Seguiu-se ocupação efectiva e partilha de África decidida na célebre Conferência de Berlin onde o continente negro foi dividido em fatias e suas fronteiras redesenhadas ao sabor das potências capitalistas.

 

A ocupação e exploração de África não respeitou a dignidade da pessoa humana – na verdade ela violou os direitos fundamentais do homem e mostrou uma face arrogante e prepotente do homem branco que escravizou e desumanizou o homem negro; Não se preocupou com a cultura, com a religião nem com a ontologia do africano. Diga-se em viva voz que a escravatura foi um dos actos mais vis, desumanos e vergonhosos que o Ocidente carrega consigo até os dias de hoje. Milhões de homens foram levados em navios cargueiros, do seu habitat original e retirados das suas terras com destino incerto dentro do próprio continente negro, para América do Norte, do Sul (concretamente no Brasil), e espalhados pelas Antilhas Francesas e protectorados Ingleses para os campos de cultivo de cacau, cana-de-açucar, borracha, e outras matérias primas para alimentar a indústria e a economia ocidental. 

 

Em nome da civilização, povos foram separados e culturas foram destruídas; novos hábitos, costumes e maneiras foram instituídas – desafiando o africano a negar sua origem, a envergonhar-se da sua cultura e a declinar seus traços identitários; O novo africano deveria ser instruído para poder fazer parte do mundo dito civilizado.

 

A civilização permitiu a instrução, a escolaridade e o acesso a um pensar mais elaborado, mais crítico e reflexivo. Um pensar interventivo, mais comprometido com a causa africana e com o direito a autodeterminação. Surge a primeira nata intelectual de afrodescendentes e africanos da diáspora com ideias claras sobre a libertação e independências de África.

 

Eis que na década 50 dos anos 1900, como corolário da segunda Grande Guerra, assistimos ao retorno dos filhos da terra que ensaiaram os primeiros modelos de independências do continente africano. Ainda que de forma incipiente e tímida, a pesada herança da negritude e do pan-africanismo de primeira geração empurrava a nata pensante à tão sonhada e desejada acção outrora sugerida no célebre Congresso Pan Africano realizado em Manchester em que George Padmore com a famosa afirmação – “É altura de passarmos da teoria à prática”. A partir de 1960 assistimos a uma saga independentista que culminou com a libertação de vários países africanos no jugo colonial, incluindo Moçambique e Angola (duas ex colónias Portuguesas alvo de cobiça durante a Conferência de Berlin e resultado do audacioso Mapa cor rosa).

 

Uma intelectualidade genuinamente africana e altamente comprometida com os ideais do pan-africanismo, da negritude, do renascimento negro e do empoderamento negro, representada por Kwame Nkrummah, Leopold Senghor, Jomo Kenyata, Ahmed Sekou Touré  e mais tarde por Julius Nyerere, Agostinho Neto, Amilcar Cabral, Samora Machel e outros proeminentes lideres,  fez eco ao sonho de Marcus Garvey, Malcom X, Luther King, William Du Bois, Aimé Cesaire e outros notáveis teóricos, e fez-nos acreditar que o sonho da autodeterminação podia ser real. A conquista das independências significou muito para os africanos, e gerou uma euforia e expectativa enorme em torno presente e do futuro.

 

Severino Ngoenha (in Das Independências às Liberdades), num rasgo filosófico-político em que se discorre o processo de legitimação e apropriação da Filosofia pelos africanos tendo como base a racionalidade do africano, passando pelo processo de conquista das independências em África e culminando com uma crítica mais elaborada pela corrente hermenêutica, analisa os ganhos, as perdas e os desafios destas independências. As independências africanas, a meu ver criaram menos liberdade e mais asfixia aos povos. Mudaram-se os actores coloniais e passaram a ser perpetradas atrocidades entre africanos. Vivemos um pouco de tudo, mas não conhecemos o sabor da liberdade.

 

É de todo inegável a dimensão psicológica que a saga independentista da década 60 causou no povo africano; Houve uma exacerbada expectativa em torno dos países recém independentes e ensaios embrionários de autogoverno, autodeterminação e muitas dúvidas sobre a real capacidade dos estados africanos vingarem na ausência do colono. Os perigos do neocolonialismo muito cedo se fizeram visíveis e em poucos anos muitos países africanos estavam sob graves conflitos internos e guerras civis que devastaram sobremaneira a ainda débil estrutura estatal. Os anos que se seguiram as tão almejadas independências, foram anos de solidificação das ideias nacionalistas, mas também foram anos em que assistiram-se a de conflitos internos nos estados, guerras devastadoras, genocídios e destruição sem precedentes.

 

Conquistamos as independências mas não conseguimos construir estados capazes de se auto-governarem. E quando conseguimos ensaiar a ideia de um estado fomos muito cedo abafados e aniquilados.

 

A velha fórmula romana – divide et impera – (dividir para reinar) foi usada para fragmentar ainda mais os estados e abrir as portas ao neocolonialismo na sua versão de ajuda externa e construção da democracia em África. Uma democracia diga-se desajustada ao modelo africano e de certa forma forçada e imposta pelos senhores de Bretton Woods para estados em claras dificuldades económicas. A pressão externa, a situação económica frágil e algumas sanções e interferências externas, abriram uma nova página na relação África e o mundo.

 

Entre o servilismo a Bretton Wood e a nova Rota da Seda

 

Gorada a tentativa de ter independências totais e completas, onde nem politica nem economicamente conseguimos ter uma solidez e robustez que permitisse o crescimento e desenvolvimento alicerçados no sonho integrado do pan-africanismo, pouco ou nada restava a África a não ser aderir às Instituições de Bretton Woods e beneficiar-se de empréstimos financeiros, políticas de restruturação económica, e toda gama de ajuda externa provida pelo Ocidente.

 

Volvido mais de meio século após a conquista das independências, a nova relação entre África e o mundo é basicamente assente na concessão de recursos abundantes em África à multinacionais do ramo extractivo – e África voltara a ser pilhada novamente, mas de forma mais assaz e agora com consentimento dos seus líderes que a pela sua ambição individual e a troco de muito pouco, perpetuam os corredores da corrupção, do nepotismo e da má governação que por cadeia estão atrelados a pobreza extrema, fome generalizada, doenças, péssima qualidade de educação e saúde.

 

África continua a despertar a apetência das multinacionais ocidentais que lucram com a exploração do recursos, fragilizam a nossa economia com falsos incentivos e adiam o “take off” do nosso continente.

 

Com a emergência e afirmação no panorama mundial do gigante asiático – a China – com o seu ambicioso projecto denominado “A Nova Rota da Seda”, África entra uma vez mais na equação. A China está presente nos cinco continentes e investiu cerca de US$ 1,9 trilhão. Isso equivale, por exemplo, a 13 vezes o valor do Plano Marshall, utilizado pelos Estados Unidos na reconstrução da Europa durante a guerra fria.

 

Governos altamente endividados, economias super dependentes da ajuda externa, e estados quase capturados tanto pelo FMI e Banco Mundial, ponderam piscar os olhos a China e entrar na chamada rota, hipotecando uma vez mais os sonhos de milhões de africanos.  O capitalismo selvagem ocidental e o comunismo mascarado de Pequim fazem a partilha dos recursos de África e nós africanos uma vez mais apenas lamentaremos e nos socorreremos na famosa teoria da maldição de recursos.

 

Os recursos em si não são uma maldição mas também não são uma bênção quando mal explorados; Quando explorados de forma não integrada e não planificada eles podem ser a causa de guerras e instabilidade de vária ordem.
No geral os modelos de governação que adoptamos, as políticas económicas e sociais que desenhamos tem se mostrado pouco ajustadas às realidades dos nossos países. 

 

Celebramos mais um aniversário de um continente africano. Mais um aniversário debaixo de lamentações. Mais um aniversário em que os traumas do ontem geraram o medo do hoje se sobrepõem a esperança do amanhã. Em África o amanhã mete medo porque nunca sabemos se ele chegará, e se chegar não sabemos como encará-lo porque não o planificamos. E os anos vão passar, as gerações vão se renovar, mas se a nossa mentalidade continuar a mesma, o nosso continente continuará a ser o que sempre foi – um palco onde todos dançam menos os donos da casa.

 

E chega de procurar culpados lá fora para a nossa fraca prestação. Os culpados somos nós e nós sabemos o que deve ser feito para que África seja aquele lugar em que reine a paz, a prosperidade, a harmonia, onde a autodeterminação é respeitada, onde os valores, as línguas, as tradições, as religiões e todo mosaico étnico e cultural façam parte do rendez-vous das nações.

 

Por Hélio Guiliche (Filósofo _ Docente Universitário)

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