Algo chamou-me a atenção sobre a atual crise política em Moçambique. Havia algo de extraordinário: dois poderes que vão além da força política... o poder temporal e o poder espiritual em conflito. Como nos antigos reinados, em que ambos conviviam numa dança ora harmoniosa, ora perigosa, aqui ressurgem em antagonismo, como se fossem forças destinadas a disputar o mesmo altar.
Nietzsche diria que este confronto é a manifestação última da tragédia humana, o eterno retorno de uma luta ancestral entre os valores da Terra e os valores do Céu. O poder temporal – vestido de cargos, estratégias e pragmatismos – tenta afirmar-se como o único maestro do destino coletivo. Esse é o papel assumido pela FRELIMO, liderada por Filipe Nyusi, mas em torno do partido emerge também Chapo, como um herdeiro e guardião de uma máquina política que há décadas define os rumos do país. Representa o pragmatismo da Realpolitik: a estabilidade obtida pelo controle, pela negociação com aliados estratégicos e pela força.
Por outro lado, o poder espiritual – enraizado na fé, na moral e na transcendência – encontra no discurso e na figura de Venâncio Mondlane um novo profeta. Ele aparece como o mensageiro de um Moçambique redimido, falando não apenas à mente, mas principalmente à alma dos desiludidos. Enquanto Chapo promete uma salvação terrena através do progresso econômico e das reformas institucionais, Mondlane invoca a promessa de uma justiça divina e histórica que transcende os jogos de poder. O povo, exausto de décadas de promessas políticas e econômicas, encontra no discurso de Mondlane um apelo quase messiânico: a fé não como resignação, mas como uma arma de transformação.
No entanto, como ensinou Maquiavel em O Príncipe, "os santos que não pegaram em armas morreram." O pragmatismo do poder temporal sabe que palavras e orações sozinhas não derrubam muros, nem constroem pontes. Chapo, como a encarnação da força política, conhece bem esse princípio. Ele representa a arte de manter o poder, ainda que com sacrifícios. Sua liderança é moldada por alianças de conveniência, promessas de desenvolvimento e pela capacidade de usar a força quando necessário. Em contraste, Mondlane, ao emergir como uma figura espiritual que desafia diretamente o status quo, caminha sobre uma linha tênue entre inspirar e ser esmagado.
Essa tensão entre os dois poderes não é nova. Carl Schmitt, ao falar sobre soberania, explicou que o verdadeiro soberano é aquele que decide sobre o estado de exceção. Em Moçambique, a FRELIMO é quem sempre definiu as regras do jogo, quem declarou o que era ou não legítimo, o que era possível ou impossível. Mondlane, no entanto, desafia essa soberania ao se colocar como uma voz que transcende o sistema político e que apela diretamente às massas. Seu poder não vem do estado, mas da legitimidade que a fé e o desespero popular podem conceder.
O paradoxo é claro: o mesmo poder espiritual que prega a resignação diante do sofrimento é também o que, em momentos cruciais, incendeia as massas para se levantarem. Mondlane, como líder espiritual e político, torna-se uma figura quase nietzschiana – não alguém que clama pela destruição, mas pela superação de um estado de coisas que ele vê como corrompido e decadente.
As consequências disso já começam a se desenhar. A fé cega pode converter-se em uma força política imprevisível, enquanto a Realpolitik de Chapo tenta conter a tempestade com promessas e demonstrações de força. O povo, dividido entre a esperança e o medo, transforma-se no verdadeiro campo de batalha. As ruas de Maputo e outras cidades ecoam murmúrios que podem, a qualquer momento, se transformar em cânticos de resistência ou em súplicas por paz.
O que Moçambique nos ensina é que esse conflito entre o sagrado e o profano é uma metáfora para a luta universal entre poder e sentido. Como diria Maquiavel, "os santos que não pegaram em armas morreram." O futuro dirá se o povo moçambicano escolherá lutar ou esperar, resistir ou se resignar. Será o fim ou a esperança?
E talvez, em meio ao caos, reste apenas a pergunta bíblica: "Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra?"
*Ivanick Lopandza é um jovem intelectual, poeta e activista social santomense, com ADN paternal congolês, membro fundador do colectivo Ilha dos Poetas Vivos em São Tomé no ano de 2022, com seus companheiros santomenses Marty Pereira, Remy Diogo e moçambicano MiltoNeladas (Milton Machel). Autor de livros de poesia, Ivanick é também bloguista, curando seu blogue Lopandzart.