Nunca antes veio a minha casa pedir sal, ainda por cima a uma hora destas. Na tradição respeitada desde os tempos dos meus ascentrais, e seguida por nós também, não se pede sal ao vizinho quando a noite se materializa. Mas Nhathswa está aqui a pedir esse tempero imprescindível, desculpa vizinho, só agora é que me apercebi que o sal acabou, já com a panela ao lume, e não tenho outra alternativa porque as lojas estão fechadas.
Ora, se as lojas estão encerradas, e esta mulher já tem a panela ao lume, não tenho outra escolha que não seja desobedecer aos ditâmes dos antepassados, mesmo sabendo dos riscos que isso representa. Não sei o que poderá acontecer depois, mas também não posso recusar sal a alguém tão respeitado como Nhathswa. Ela sabe que a atitude que toma, de vir a minha casa numa hora proibida para as suas intenções, é desaconselhada. Eu também sei. Nenhum de nós sabe, porém, sobre quem vai cair o raio depois disto. Mas estamos cientes de que isso pode acontecer.
Eu disse para que ela fosse pessoalmente a cozinha tirar a quantidade desejada. No fundo invadia-me algum remorso, ao mesmo tempo sentia-me incapaz de dizer “não”. Também tinha a sensação de que a vinda de Nhathswa a minha casa transmitia outros sinais que eu não podia perceber. Aliás, já houve tempos em que, sempre que nos encontrássemos por aí, desfiavamos conversa entusiasmada. Porém, ultimamente ela distancia-se. A nossa saudação é fria, sobretudo do lado dela, e eu nunca me preocupei com isso porque sempre acreditei que a vida é feita de ciclos. E ela hoje vem pedir-me sal.
Enquanto Nhathswa ia a cozinha, eu mantive-me na varanda, de pé, pensando, sem olhar para ela, que isto é sinal de mau agoiro. Já ouvi histórias trágicas sobre o sal que não se pode pedir a noite, mesmo assim eu ainda prevarico conscientemente. Se calhar pela magnitude da personalidade desta mulher perante a qual ninguém resistiria. Qualquer ordem que ela emanasse, seria cegamente cumprida. Se calhar seja por isso que estou a cometer um erro grave que pode resultar em danos irreversíveis. Estou hipnotizado!
Nhathswa sai com o sal na mão direita feita concha. Passa por mim e não diz nada, como se estivesse a sair da cubata de um curandeiro onde não se despede, e eu não sou curandeiro. Nem sequer fechou o portão do quintal, que ela própria abriu. E tudo isso pode estar a transmitir-me uma mensagem que eu não consigo decifrar. Seja o que for, acho que o leite está derramado.
Durante a noite, dormindo, parecia que eu estava no paraíso. Via Nhathswa correndo na orla marítima, vestida de branco numa praia desconhecida, cheia da luz do luar. Ela acenava-me, e a mão dela brilhava. Parecia um anjo que ia para casa, pisando levemente a areia branca, e eu sentado também na areia ouvindo a música que as ondas tocavam para acompanhar Nhatswa, que agora caminha por sobre as ondas até desaparecer, como Jesus por entre as nuvens, depois de se despedir dos apóstolos em Galileia.
Quando despertei já era madrugada. Ouvi choros de tristeza e de lamentação na casa de Nhathswa, e pensei: já estava escrito!
Está no fim da estrada e mantém a dignidade dos tempos. Não verga. Quanto mais perto da meta, mais pujança na sua personalidade. É como se estivesse num grande estádio a abarrotar, sentido as palmas que a catapultam. Sabe que já não terá mais forças do que estas que estão no limite, por isso usa-as até ao limite. Não recorre aos anabolizantes, os anabolizantes é a música do passado, que repete sem se cansar no seu inacreditável gira-discos, daí a frescura transbordante da Mwali, recolhida numa casa transformada em Meca, onde os amigos vão regularmente para ouvir as histórias de uma era pura, que parece voltar em cada palavra.
Vive na orla do mar, de onde continua a usufruir, como sempre desde a nascença, da pompa de uma paisagem fascinante que se estende a seus pés. Dali ela acompanha o movimento dos pescadores, que muitas vezes voltam com os cestos vazios, depois de longas horas puxando as redes de emalhar ou de arrasto, ou ainda das mulheres, que ao cair da noite descem com as pequenas redes de pesca de camarão, e regressam também derrotadas, sem nada. Mas há muitos momentos também, que Mwali testemunha o festejar da faina farta.
Ela é a nossa secerdotisa, colocada no lugar de sumo pontífice, posto conquistado pelas “homilias” inacabáveis que inocula para que, segundo ela própria, pelo menos nos recordemos da existência do Criador do Céu e da Terra. E dos Homens. Mas Mwali por vezes exagera, se calhar levada pelas emoções de um ambiente borbulhante, que nos espicaça a querer voltar sem cessar, num ciclo vicioso, para aquele lugar que nos entusiasma. Citou, numa das recentes ocasiões, sem saber que provocaria um efervescente debate, uma vez que está habituada a ser ouvida sem grandes questionamentos quando evoca a bíblia, uma passagem que nos pareceu ser um contra-senso.
Normalmente nunca temos o livro Sagrado por sobre a mesa, para aferir o que vamos ouvindo da Mwali. O que ela diz é por demais caudaloso, tão profuso que nos limitamos a abanar a cabeça em sinal de consentimento, como vassalos, virando goela à baixo, de vez em quando, uma cachaçazita sempre disponível, para aclarar a mente. Mas nesse dia as coisas mudaram de rumo. Segundo Mwali, no Salmos, cap. 21, David diz o seguinte: “o que me magoa, é que o Altíssimo já não é o mesmo”. Perante esta afirmação, um dos companheiros virou-se para Mwali e disse, isso não é verdade! Não sou leitor da bíblia mas Deus sempre foi o mesmo desde que existe, quem não é o mesmo somos nós. Deus não é metamorfo.
No lugar de o ambiente gelar, uma vez que a “raínha” era posta em causa pela primeira vez, a “afronta” tornou-se motivo para voltarmos a encher os copos e desligar o gira-discos que tocava, em disco de vinil, a música de Percy Sledge, When a man loves a woman. Pedimos a bíblia, e Mwali disse que não tinha bíblia, porém - como nos afiançava - o que ela dizia era a pura verdade, e que se quisessemos nos certificar disso, então podemos ir consultar nas nossas casas. E é o que vamos fazer, enquanto aguardamos o próximo enconto que já está a criar emormes expectativas.
Ir ao mercado da Mafurreira nas manhãs fazer compras, já se tornou um vício, e isso dá-me um enorme prazer. É um exercício quase de instinto, que me restabelece as emoções, e ajuda-me a não sentir o escorrer do tempo, que por vezes demora passar sobretudo quando estou sozinho, sem que esteja a escrever, ou a dedilhar a guitarra emprestada. É também uma dádiva, no sentido de que regresso sempre à casa com a alma cheia, pelas conversas esporádicas que vou ter aqui e ali, com as vendedeiras que, ao verem-me, vão dizer logo, sorrindo, pari yangu! (amigo!). E eu exulto pela saudação tão sincera. Simples. Profunda.
Ainda ontem desci àquele lugar que também é meu. Ou seja, eu sou uma das pétalas desta flor cheia de feridas que podem estar a gangrenar. Flor é todo o mercado, que mesmo sendo pequeno na sua geografia, é o maior da cidade de Inhambane. Pétalas são estas mulheres cujo sonho metamorfoseou-se para dar lugar ao conformismo e a incerteza. Elas já não esperam, são aquelas por quem as crianças esperam em casa com a barriga vazia. Uma barriga que pode não ser saciada porque ninguém comprou nada. O marisco apodreceu.
Mas todo este cenário parece sombrio, pois se não fosse, então teriamos ali uma tagarelice de não acabar, e isso não está a acontecer. Há um silêncio dorido, cheio de desesperança, porque ninguém compra nada. Elas já perceberam que não há dinheiro. Ninguém o tem. Porém, não saiem das bancas, onde ruminam todos os dias os seus desesperos. Perderam a vontade de apelar aos potenciais clientes – que vão passando - para comprar qualquer coisa. Ninguém as liga. E não encontram outra saída que não seja a de aceitar a humilhação de estar ali a boair.
Ontem eu queria comprar alface para acompanhar o meu chá. Contei rigorosamente as moedas, e o valor servia “in extremis” para as minhas necessidades limitadas, que se resumem na alface, tomate, cebola e pão. As outras propostas estavam longe de mim, não que eu não goste de um bom camarão, de uma boa lula e das garoupinhas brilhantes que me enchem os olhos nesta banca à minha frente. Mas não há nada a fazer, com o bolso descompensado, senão apenas sonhar com as referidas garoupinhas grelhadas, acompanhadas com batata cozida, pimento assado na brasa e etc.. Porém, todo este meu derretimento não passa da imaginação. Aliás, a aquisição daquele tipo de peixe, é uma empreitada para grandes engenheiros, e eu sou apenas um mirone, que vai enchendo o estômago de baba.
Ela olha para mim, sem parar de sacudir as moscas que vão sobreavoando o peixe acabadinho de sair do mar e diz, patrão, compra garoupa, é fresca! Na verdade é uma tentação irresistível, todavia distante para as minhas capacidades. Aliás, foi por conhecer as fraquezas da minha tesouraia, que nem sequer perguntei o preço. Limitei-me a imitar o macaco que, de tanto insistir em saltar par arrancar as uvas, sem nada conseguir, acabou dizendo que não as arrancou porque estavam podres, e eu disse a senhora que não como garoupa.
Chama-se Lundunu, um maconde aportado em Inhambane nos finais de 1974, logo depois da assinatura dos Acordos de Lusaka, aos quais seguiu-se a independência de Moçambique no dia 25 de Junho de 1975. Já não ostenta a marca da tatuagem incrustada no rosto, desenhada a frio com recurso a incisão por objectos cortantes, e se calhar é a idade que foi apagando esses sinais da crueldade. Mesmo assim, ainda há resquícios numa face violada para sempre, porque a navalha penetrou de tal maneira que o seu rasto será indelével.
Nunca saíu daqui, desde que chegou com uma AKM à tiracolo, gritando, abaixo o colonialismo! Nesse tempo, Lundunu era um homem engajado, pronto a dar tudo, incluindo a juventude que ainda lhe sobrava, depois da longa noite nas matas. Tinha imensas dificuldades de articular a língua portuguesa, mas isso não era importante. O que contava era a euforia, o fascínio de estar na cidade sob o brilho do néon, contrariamente às florestas, onde a luz era emanada pelos pirilampos, e pelo encandescender das balas.
Mora na periferia da urbe, numa casa que não mereceria a um combatente da libertação de um povo que não é feliz. Mesmo que eu tivesse uma mansão, diz Lundunu, não sentiria prazer, pois, o mote da minha luta é a felicidade de todos. Será um absurdo e inútil todo o sacrifício que fizemos, se no lugar de provermos pão à mesa de todos, buscámo-lo para o nosso egoismo e ganância. Então não valeu nada a nossa epopeia!
Lundunu é um homem frustrado, no sentido de que agora percebe que tudo o que fizeram, e tudo o que disseram nos comícios, diluiu-se. Ele próprio considera-se escória, levado num camião basculante e entregue aos catadores de lixo, depois de ter feito parte da tripulação, durante anos e anos. Não tem nada que lhe dê o orgulho de ter erguido a plataforma da liberdade, juntamente com os mesmos camaradas que hoje lhe olham com desdém, a não ser o manancial de histórias de nunca acabar, que conta com rigozijo nas bebedeiras sem fim.
No fundo, Lundunu já não espera nada. É uma pessoa resignada, que se entristece pela mentira dos seus camaradas, pela falsidade de dizerem uma coisa à luz do dia, e fazerem outra coisa no escuro. Nós não lutamos para isto, di-lo desesperado enquanto puxa sofregadamente o charuto de tabaco puro trazido de Murrombene. O que me dói ainda mais é que somos indignos dos nossos filhos, não são eles que aprendem a roubar, somos nós que os ensinamos. Somos nós que os mostramos o caminho da desonestidade. Abaixo o colonialismo!
O colonialismo a que Lundunu se refere não é o ora português. Esse já foi desmantelado. Lundunu chora lágrimas profundas ao dizer que estamos a nos colonizar entre nós, sem vergonha de nos apresentarmos perante os que se riem da nossa incapacidade de construir um Moçambique próspero para todos. Lundunu diz mais, estamos a nos ridicularizar aos olhos do Mundo. E enquanto os jovens, que já estão embebedados pela necessidade desenfreda de amealhar dinheiro sujo, não mudarem o seu próprio rumo, então ninguém sabe para onde vamos.
Os velhos mais conhecidos da cidade de Inhambane sucumbiram ao tempo. Já não nos cuzamos com eles nas ruas, ou nos mercados, onde os cumprimentávamos, e deles recebíamos em troca ou o sorriso, ou a frieza cínica de quem já não espera nada, ou melhor, tem como passo seguinte a inevitável morte, para que a lei da vida se cumpra. São raríssimos, quase inexistentes, os casos de pessoas idosas com a espinha penosamente vergada e descompensada, andando por aí, obrigando a que o suporte do corpo careça de bengala. Eles já não se acham nos bancos da marginal – onde jamais estiveram - de uma cidade que se recusa às transformações.
A urbe é dos jovens - alguns definhando à custa da bebida da frustração - e dos poucos idosos que vão perdendo o entusiasmo. Aliás, estamos num lugar onde as probabilidades de voltarmos a ter anciãos que se vão arrastar até a loucura por velhice, são por demais ténues. Os sexagenários que andam por aqui, provavelmente não atingirão a meta. Cairão a meio da pista, e a evidência dessa fraqueza está nas queixas constantes. Há sempre um lugar que lhes dói. Mas a dor que mais os fustiga é a do espírito. Perderam a esperança, e têm medo do escuro.
Porém, não obstante este cenário de penumbra, que interfere fortemente nos sexagenários que também podem ser os últimos, sobressai um homem que se recusa a degenerar. Na verdade ele está na corda bamba. Não pode cair nem para um lado, nem para o outro. Então o que ele faz, é cingir o lombo para se manter por de cima da calçada, fazendo um jogo de cintura para continuar vivo. E uma das formas que encontrou para fazer esse exercício, é passear regularmente nas ruas do seu quarteirão, onde saúda a toda gente.
Dizem, os que lhe conhecem, e os que lhe vaticinam o futuro sem saberem muito dele, que este é o último símio da cidade. Ele pode estar onde há muita gente, mas nota-se facilmente que está sozinho. É um homem solitário. Saúda as pessoas mas não abre alas para a conversa. Tem um sorriso jovial, que nos mostra duas filas de dentes que parecem de um jovem. É um indivíduo que apesar de estar a caminho do centenário, ainda mantem a espinha dorsal na vertical. Não precisa de cajado como Moisés, na pastorícia do gado do seu sogro, Jetro. E o que mais espanta, é a memória de elefante que se descobre nos poucos contactos verbais que oferece aos privilegiados que chegam perto dele.
É um animal elegido, de rara preciosidade, cujos filhos morreram todos por velhice, e enterrados no cemitério familiar que fica à ilharga da casa modesta onde mora o admirável velho. Muitos netos dele também despiram a carne, alguns por entrega inveterada ao álcool, e ele resiste tenazmente aos temporais. Não cai, nem mesmo perante os terramotos mais violentos que fustigaram a terra ao longo dos tempos. Ele restabelece-se sempre.
No fundo é uma pessoa que pode ter cartas importantes escondidas na memória, e nas mãos. Ninguém lhe conhece o segredo de tamanha longevidade, no meio de guerras inúmeras onde muitos foram abatidos, sendo o únco da sua geração que ainda respira. E ele vai continuar a viver no subúrbio até ao fim. É lá onde nasceu e que se sente bem, ao ponto de dizer aos netos e bisnetos e tetranetos, não quero lágrimas no meu funeral.
Acabo de escutar “A lirandzu”, interpretada por Mingas, e, mais do que a voz que me embevece, está a magistral guitarra a solo nas mãos de Sox, que me arrepia. Não é a primeira vez que oiço este trabalho, mas hoje faço-o numa circunstância particular, sob o silêncio imposto pela incerteza do virus, e assim o volume tem que ser o mais baixo possível, de modo a que possa ouvir os pássaros cantando lá fora, fazendo côro.
Na verdade foi um acaso ouvir “A Lirandzu”. O António Jamal é que me proporcionou essa viagem temporal, onde as coisas fluem sem cobrança, e foi bom, pois esta melodia vem esbater os sentimentos escurecidos, que o tédio muitas vezes cria. É por isso que estou aqui, no meu quarto, ouvindo Rádio de forma desinteressada. Captando com a memória, as palavras também desinteressadas, do Jamal, que comunica em mangas de camisa.
António Jamal parece-me um locutor que vai para frente de costas. Ele não consegue trabalhar sem o passado, que é o seu real fundamento. Sem o passado, Jamal não será nada. Se calhar é por isso que vou elegê-lo como um dos poucos radialistas da minha preferência. E hoje estou com ele, outra vez, neste silêncio imposto pelo virus inesperado.
No fundo o silêncio é uma terapia, mas assim é demais. Muito demais. O silêncio não pode ser uma obrigatoriedade, porque desta forma ele torna-se uma clausura. Até de lá de fora, já não me chega a vocalização das crianças a voltarem da escola, alegres por retornarem à casa onde lhes espera o convívio. E as crianças, como se sabe, são uma das faixas mais lindas do disco de vinil, que é o próprio silêncio. Elas são a molécola central do amor. E só há amor onde há o silêncio.
Mas o silêncio tem que ser livre, rústico, anárquico. Que entra em consonância com a nossa liberdade, e não é este o caso, em que o virus obriga-nos a recolher aos casulos, como lesmas que se escondem nas suas próprias carrapaças, temendo o perigo. Nós também temos medo, como as lesmas. Somos lesmas, com a diferença de que, depois de partirmos, não deixaremos baba. Nem a cinza dos nossos ossos.
Sempre que o visse passar em frente a minha casa, lembrava-me Noa. Levava nas mãos o martelo, o formão, o escopro, o serrote...... e a determinação de construir um barco e pô-lo a boiar. Descia nas manhãs, à doca, e de lá só regressava ao princípio da noite, pelo mesmo caminho, com os mesmos materiais de trabalho, com a mesma verve, e com a mesma ansiedade de ver a nau das suas mãos navegando entre as cidades de Inhambane e Maxixe, transportando passageiros insondáveis.
Eu nunca acreditei naquela saga. Ou seja, jamais um homem sozinho poderá construir uma embarcação das dimensões que ele pretendia, a não ser que este desafio seja assumido por um personagem de ficção, o que não é o caso, a menos que eu estivesse alucinado. Aliás, o único ser que ergueu uma arca inteira sem ajuda de ninguém, é Noa. Porque ele tinha Deus como o Próprio Armador. E este indivíduo que passa sempre por aqui, em frente a minha casa, parece caminhar no escuro. Deve ter armadores invisíveis que se apossaram dele para o atormentar.
Foram anos a fio de trabalho, e a medida que o tempo passava, o meu pessimismo parecia que ia sendo desmentido. Aparentemente! Porque o barco compunha-se, gradualmente, para arrepio de todos. Como é que uma pessoa sozinha, sem ajuda de ninguém, é capaz de protagonizar tamanha proeza! E logo lembrei-me de um homem que, olhando para arca de Noa pronta para a navegação, ridicularizou-a e disse assim, isto não vai a lugar nenhum. E Deus esbofeteou-lhe na boca.
Eu também estou a ser vergastado, não pela Mão de Deus, mas pelos meus próprios pensamentos. Este armador solitário está a avançar, rindo-se silenciosamente de todos aqueles que lhe diziam, você não vai fazer nada sozinho. E ainda lhe diziam mais, isto não é uma almadia!
Mas essas palavras todas, eram o granizo que caía por sobre a plataforma de betão, desfazia-se em pequenos grãos, e a casa continuava firme, ela própria construída em cima das pedras, onde moram as águias. Mesmo assim, eu continuava com as minhas dúvidas. Oscilava entre a possibilidade de tudo aquilo vir a ser real, e o cepticismo. Era como se eu estivesse numa sala de cinema, vendo Marlon Brando, no filme Apocalipse Now, de Francis Coppola.
Todavia, e para que tudo se materializasse, eis que o homem passa num dia desses - em substituição do martelo e do escopro e do formão - com duas enormes latas de tinta e diz-me assim, hoje vou dar a última demão (última pincelada de tinta). Fiquei estarrecido.
“A arca do Noa” está pronta! A notícia corre devastadora em toda a cidade, e ninguém queria acreditar no que ouvia. E segundo se dizia por aqui, ele construíu o barco sozinho, e é bonito. Meu Deus!
Prapara-se o champanhe para a vistoria e consequente aprovação das autoridades marítimas. O dito cujo está confiante como o Noa, que se avulta na proa, desdenhando o dilúvio que vai engolir casas e árvores e montes e montanhas. E o dilúvio é a boca das pessoas. Da minha, também. Pois, o que mata, não é aquilo que entra pela boca, mas o que sai através dela.
Agora só nos resta esperar por aquilo que vai acontecer com o testemunho das gaivotas e dos flamingos e de outros pássaros marinhos, e do próprio mar que estará calmo, dando-nos a sensação de paz. Há uma expectativa envergonhada por tudo o que falamos sem medida, diante do silêncio do homem que construía aquilo que ele pensava ser a própria vida. Um sonho que entretanto foi destruído pelos vistoriadores que não tiveram meias palavras, “este barco tem que ser desconstruído e recomeçado, tem erros graves”.
Raios! O que aconteceu é que a embarcação voltou para a doca, de onde nunca mais saíu. Aliás, foi sendo retirada aos pedaços, para produção de lenha.
Conheço-o há pouco mais de 40 anos. Nessa altura, eu ainda fedelho, ele já corria nos campos com a bola aos pés, driblando os maiores defesas da época, sedento de golo. Era o carrasco dos guarda-redes, que titubeavam ao vê-lo subir como um bisonte, que no lugar de contornar os obstáculos, derruba-os. Mbata Nhalégwè era mais que um jogador normal de futebol, era um actor, um dançarino que em diversas ocasiões do decorrer da partida, confundia-se com um executante de mapiko. Ele era o eixo, sobre o qual gravitava todo o espectáculo.
Mbata Nhalégwè era um remoinho, uma dinamite com o rastilho sempre aceso, e ninguém sabia e nem podia prever quando, como, e em que lugar do campo é que aquele explosivo ia rebentar. Podia ser antes da linha divisória, e essa imprevisibilidade punha o último reduto atarantado. Ninguém tinha a certeza de que estava no lugar apropriado para impedir a caminhada fatal da orca. Pior do que isso, era de consenso que ninguém tinha capacidade para ser o torpedo de um jogador franzino, mas letal em todas as dimensões.
O campo, nos dias em que Mbata Nhalègwè jogava, parecia um espaço de tourada. O toureiro era toda a equipa adversária, e o touro era Mbata Nhalègwè. Era preciso, antes de abatê-lo, fechar-lhe os flancos reais e prováveis, antes que fosse ele a derrubar tudo. Mas todas essas armas, e toda essa empreitada para erguer a muralha, eram por demais fragilizada pelo talento, pela inteligência, e sobretudo pela determinação de um homem que ia ao campo para vencer.
Foram anos sem fim, e Mbata Nhalégwè recusava-se a descer ao sopé, onde nunca viveu. Ele nasceu no cume, aliás foi nesse patamar onde fez tudo, até hoje que já treme nas bases. Mora recolhido na sua modesta casa, cheia da luz do passado no interior, onde brilham as lembranças estampadas nas fotografias e nas medalhas e nos troféus individuais conquistados nas várias lutas em que ele ia à frente, como um pastor de almas. Mbata Nhalégwè era a gazua do seu tempo.
Mesmo assim, com noventa anos comemorados em solidão no último sábado, sem direito a champanhe, ele ainda sonha. Vê-se isso no brilho dos olhos quando fala, como se houvesse um jogo marcado para o próximo domingo, onde receberá os aplausos das massas. Mbata Nhalégwè mantém a esperança de voltar a levantar estádios inteiros com os seus inesperados tiros de canhão. Mas claro, todo este sentimento é um delírio, de alguém que já não sabe muito bem em que tempo está.
A minha exaltação a este lugar é movida pela esplanda. Todo o sentido da cidade parece desaguar alí, a partir de onde, com o termómetro instalado por sobre o tampo da minha mente, meço a temperatura dos transeutes. Poucos. Houve tempos que na verdade este espaço era isso mesmo, o centro de uma vida urbana única, caracterizada pelo silêncio. De dentro do bar vinha o cheiro agradável do café, e impregnava-nos os sentimentos. Embebedava-nos o espírito, espevitava-nos a poesia latente em cada um de nós, de tal forma que, depois de saciarmos a alma, saíamos com a saudade de voltarmos lá outra vez.
O próprio bar, a moda antiga, é o outro lado de um tempo que jamais voltará. As cadeiras giratórias perfiladas no balcão, elas, por si só, convidam-nos ao gozo de sentarmos, e por via desse contacto não resistiremos ao apetite provocado pela garrafeira, ou pelo profundo aroma do café. Mas o que estou aqui a descrever pode ser um devaneio, pois a realidade é uma ferida viva.
Passei desinteressadamente pela esplanada do Hotel Inhambane na última sexta-feira, ao final da tarde, como forma de dar azo a minha liberdade. Vinha a pé, descendo pela “25 de Setembro”, depois de desfrutar do pôr-do-sol, sentado num dos bancos da marginal. Era um espectáculo esplêndido a que acabava de assistir, com o astro-rei a esconder-se lentamente por detrás das plameiras que estão para lá da Maxixe. E eu a ver aquilo tudo como dádiva de Deus. Um privilégio de poucos. É como se estivesse no paraíso em si, onde as canções embevecem-nos a todo o momento. E aqui as canções são interpretadas pelo silêncio.
Na esplanada não está ninguém. O bar está fechado, mesmo para aqueles que querem beber café. Há um êxodo na cidade, e se calhar sou o único andante por aqui, como um louco ao fim da tarde, parafraseando Marcelo Panguana. Seja como for, independentemente do Covid-19, o bar e a esplanada do Hotel Inhambane, já haviam degenerado. O actual gestor colocou colunas de som cá fora, como se estivéssemos no “senta baixo”, quando o que pretendemos ao demandar este acolhimento, é o sossego, o silêncio. A música somos nós. São as nossas palavras. Ou o tilintar das pedras de gelo nos copos de whisky. É isso que buscamos na esplanada do Hotel Inhambane.
É o único lugar que ainda nos pode receber na proporção das etapas antigas da nossa existência. Da nossa história que vai sendo vituperada. Também, paradoxalmente, é o espaço menos frequentado. É como a Praça da Liberdade em Singapura, as pessoas não vão lá, com medo da “secreta”. A esplanada do Hotel Inhambane idem em aspas, é assim, ou quase assim, como a Praça da Liberdade em Singapura. A juventude daqui prefere as barracas, onde a postura urbana é pontapeada. Desta forma eles sentem-se livres.
Aqui ao lado da minha casa mora um homem despromovido a categoria de alcoólatra. Um indivíduo que passa a vida no “Senta-baixo”, onde não pára de contar as mesmas histórias de uma Alemanha Democrática que agora só existe na memória. Repete-as de tal forma que já ninguém as presta atenção. Mas ao que parece, a vida do meu vizinho só fez sentido uma vez, quando ele esteve na Europa nunca antes sonhada, amealhando a provisão para os tempos de estiagem que provavelmente viria enfrentar em Moçambique, sua mátria.
Lembro-me dele quando acabava de chegar, nos princípios da década de noventa, cheio de vigor, inesperadamente repatriado sem nada no regaço, a não ser a moto da marca MZ, uma mulher loira rendida aos encantos do negro, e uns poucos marcos (antiga moeda alemã) que passou a esbanjar em esbórnias sem fim, se calhar sem saber que toda aquela exuberância era falsa, e que a loirinha não iria suportar viver em condições de miséria. Aliás, ele próprio não percebeu de imediato que tinha regressado a miserabilidade, por isso ainda andou por aí, espalhando um charme de nada.
Tinham-lhe dito que regressaria ao trabalho e ao frio da Europa, logo que passasse a tempestada provocada pela derrocada do muro de Berlim, e isso dava-lhe alento. Podia gastar tudo, pois, as mãos para trabalhar estarão sempre prontas para repor o que se tirou do celeiro. Sou jovem e forte, dizia ele, e tenho o amor da minha namorada. Com a força que ela me dá, nada vai abalar a minha alma, nem o meu corpo, nem os meus sonhos.
Porém o que o meu vizinho não sabia, é que o seu destino estava nas mãos de outras pessoas. Algumas delas sem honestidade. Capazes, por isso mesmo, de apagar em definitivo o sol que começou a descer para o poente, no dia em que os barcos de cabotagem atracaram e de lá foram descarregadas as motos e as geleiras e pouco mais, e algum dinheiro no bolso, que nem era nada. Ele não previu a desgraça que lhe esperava, nem pressentiu que todo o amor florindo a sua volta, corporizado pela mulher loira que trazia nos braços, iria cair no escuro. Ela capitulou e deixou o madjerman no meio do oceano, como uma bóia a deriva.
Passam mais de trinta anos, e o meu vizinho continua na longa espera de nada. Aliás, pode ser que esteja a espera de partir profundamente magoado, rumo ao desconhecido, pois já percebeu que da Alemanha, provavelmente não haverá mais sinal. Nem do governo. O Próprio Jehová, segundo diz este homem que vai minguando a cada gole de aguardente, não tem certeza de que algum dia cairão nas nossas mãos, as notas do sangue que vertemos. E se Deus de Jacob e de David e de Abrahama não tem certeza sobre o nosso futuro, isso significa que o diabo já tomou conta de tudo”.
Na verdade o meu vizinho faz-me lembrar um piloto de guerra que, impedido de voar por lhe terem amputado um pé como consequência dos nefastos efeitos da diabetes melittus, ia todos os dias à base para ver os pássaros metálicos em pleno gozo de liberdade. No ar. Sentia como se fosse ele a pilotar, voando como águia, que voa com as suas próprias asas. É como o meu vizinho, fala constantemente de Dresden onde viveu e trabalhou, como se ainda estivesse lá. Está louco!
Basta uma “garrafinha” para toda a Alemanha descer-lhe a memória. Conta com entusiasmo as mesmas histórias já deturpadas pelo tempo e pelo álcool, e ninguém lhe escuta. Mesmo assim não pára, é como se estivesse no palanque, discursando para uma multidão só existente na sua imaginação. E ele tem uma necessidade urgente de delirar, de uivar como um cão selvagem abandonado e despojado de todos os seus haveres, na floresta de pedras pontiagudas. Removeram-lhe o coração!