Chegamos à ponta de Guilaleni, no arquipélago de Mucucune onde o feitiço ressurgia em todas as noites de corujas, e a indescritível beleza da paisagem desabrochou por completo enchendo-nos os olhos e o espírito. Era como se tivéssemos acabado de chegar ao próprio paraíso, com barcos à vela estendidos pelo mar desde Linga-Linga, passando por Móngwè até Chicuque e Maxixe, terminando no fim do horizonte que será Nhapossa, cuja expressão máxima está numa zona marítima que se ensoberbece chamada Potani. Então todo este maná não pode ser real. É um sonho.
O nosso destino é a península de Miludzi, lugar onde o silêncio remete-nos aos pensamentos mais profundos, sobretudo nas noites e nas madrugadas quando as mulheres, voltando da pesca de arrasto de camarão, tagarelam balelas e riem-se a bandeiras despregadas sem que nenhum outro som, a não ser o dos últimos pirilampos em recolha, interrompa a melodia sincera do riso.
Viajamos num barco à vela baptizado “Nhalégwè”, conduzido por um marinheiro conhecedor dos ventos que sopram de várias direcções e de outros ventos que não se saberá onde nascem. Na verdade ele é um barómetro que vai rivalizar com os cientistas formados em grandes universidades, e a escola dele é o próprio mar. É por isso que nos avisou com segurança, inesperadamente, enquanto contemplávamos a exuberância de toda esta plenitude, wunguta ronga (vem aí o vento norte)!
Saímos da ponte de Inhambane – um património inestimável da cidade – por volta das sete da manhã e, quarenta minutos depois, já estávamos em Guilaleni, um lugar há muito sonhado, e que agora quase o beijo de perto.
Sinto um impulso dentro de mim que me impele a dizer alguma coisa ao marinheiro, a começar talvez por uma pergunta, nem que seja estúpida.
- Você é marinheiro de que zona?
- Sou irmão de Mangoba, teu amigo, você não se lembra de mim?
Compenetrei-me nele, na sua fisionomia, no timbre da voz, e na capacidade de abstração que tem demonstrado desde que começamos a nossa viagem antes inacreditável. Ele tem de facto o sangue de Mangoba, o seu estilo cambaio.
- Já estou a lembrar-me de você!
- Então!
Agora estamos entre Linga-Linga e Móngwè, daqui a pouco chegaremos a Miludzi, onde ninguém me aguarda, onde ninguém, provavelmente, me conhece, mas eu vou! Da mesma forma que já fui a muitos lugares sem que ninguém me aguardasse. É o nome da terra que me move, e as suas histórias de fartura de marisco!
Mas os tempos mudaram. Muito. Lembrei-me, quando cheguei, das perfurantes palavras de Momad Wa Simbo, “Deus diminuíu as bençãos em Mucucune”.
Em Miludzi também, já não há peixe como antigamente, nem lula, nem camarão, nem nada!
Em tempos, algures pelo mundo, conheci um sindicalista e parte, na altura, da oposição em seu país. Pouco tempo depois o seu partido e candidato presidencial ganham as eleições e ele participa na nova estrutura governativa. Em visita ao seu país, passo alguns dias na sua casa protocolar na capital. Um luxo e em bairro nobre.
No final da estadia, o meu anfitrião fez questão de sublinhar de que aquelas condições de vida não correspondiam à realidade dele, apelidando-as de seus ''anos da fantasia''. Contou ainda de que a realidade dele estava em outro local, por acaso longínquo, geograficamente e socialmente, e de que as condições reais da sua vida seriam as que retomaria e com a ajuda da sua nova experiência procuraria contribuir para o progresso da sua cidadezinha.
Ontem lembrei-me deste meu amigo sindicalista, enquanto acompanhava, na TV, a apoteose da recepção no aeroporto à equipe sénior feminina de basquetebol do Clube Ferroviário de Maputo que há dias, em Dakar, Senegal, conquistou pela terceira vez o campeonato africano (de clubes) da modalidade.
Aliás, não é a primeira vez. É sempre assim quando uma equipe nacional, incluindo a selecção, sobretudo da modalidade de basquetebol, ganhe troféus ou faça brilharete além-fronteiras e que me levam a questionar se não seriam essas proezas semelhantes aos ''anos da fantasia'' do meu amigo sindicalista?
Infelizmente, e conforme o combinado, ainda não consegui visitar a terra deste amigo o que me permitiria aferir, ''in loco'', a autenticidade das suas palavras. Mas tenho tido notícias, incluindo as de que a cidadezinha onde voltou a morar, depois que o seu partido e candidato presidencial não conseguiram renovar mais um mandato, está a progredir.
''In loco'', (in)felizmente, conheço a realidade do clube campeão, sobretudo a das condições em que se encontram as suas instalações desportivas na baixa da capital. Por aqui, uma dúvida: terá o Ferroviário dito às suas congéneres, estruturas de gestão regional e mundial da modalidade ou a singulares com quem se tenha cruzado, de que os seus troféus eram apenas os seus ''anos da fantasia'' e em seguida as convidasse a visitar a sua realidade?
Enquanto espera-se que a dúvida desvaneça, e face aos dados, nomeadamente o percurso histórico de conquistas africanas do Ferroviário de Maputo vis-à-vis o percurso histórico da progressiva deterioração e abandono das suas instalações desportivas da baixa da capital, incluindo onde as campeãs treinam, fica a ideia de que o campeão esteja apenas confortável com os seus (já) eternos ῎anos da fantasia῎.
PS: Em jeito de parêntesis: foi recentemente inaugurado um estádio municipal de raiz na autarquia do Ibo, Cabo Delgado, construído com fundos dos Caminhos de Ferro de Moçambique, patrono/proprietário do Ferroviário. Salvo erro, foram perto de 2 milhões de dólares desembolsados. Não sei se estão inclusos os custos com a cerimónia presidencial de inauguração...
Há muito que a Administração do Estado moçambicano investe numa espécie de instituto prático de produção forçada de marginais, pessoas sem pudor, sem respeito pelo Estado e pela sociedade por mecanismos que visam a degradação do desenvolvimento humano, do exercício da cidadania e do espírito do patriotismo em várias dimensões, incluindo no sector da justiça, educação e saúde.
Um desses mecanismos é o notável investimento na cultura de “lambebotismo” e de exaltação incondicional do Partido no poder e da figura do Presidente da República. Através deste mecanismo, transforma-se até significativos quadros da República e académicos de grande relevo em marginais do sistema de governação do dia. Os “lambebotas” mais agressivos chegam a ser os promotores do discurso de ódio e assassinato de carácter de pessoas de bem e críticos da má governação e das injustiças.
Mais grave ainda é que há sinais de que praticam actos preparatórios para a efectiva eliminação física de cidadãos que se acredita estarem a incomodar o sistema de governação. Muitos desses “lambebotas” aceitam a transformação nesse tipo marginais na promessa de ganhar uma posição de revelo nos órgãos ou instituições do Estado, incluindo empresas públicas sob a protecção do Partido no Poder.
Trata-se, pois, de uma “imposição” de meio de sobrevivência humilhante para ter acesso às fontes de riqueza, ou seja, dinheiro e outros bens, entanto que sinais de bem-estar individual.
A criação dos famigerados “esquadrões da morte” é outro mecanismo de produção de marginais, particularmente pela destruição da boa conduta dos agentes da Polícia da República de Moçambique (PRM) e das Forças de Defesa e Segurança (FDS), que se tende a consolidar como uma forma de actuação do Estado para execuções sumárias, torturas e agressão à integridade física dos cidadãos. Tornou-se normal conotarem os agentes da PRM e das FDS como marginais devido à prática frequente de abuso de autoridade e brutalidade policial. Uma verdadeira conduta de marginais por parte de agentes investidos de autoridade estadual.
Outrossim, o recorrente processo sistemático e quase que generalizado da denegação do direito à educação é dos mais praticáveis mecanismos de produção de marginais no País, seja pela destruição ou marginalização do ensino público em benefício das escolas privadas e particulares por serem altamente lucrativas para os seus donos e/ou acionistas do ponto de vista monetário; seja por não pagamento de salários condignos aos professores e garantias de condições apropriadas ou condignas para o processo de ensino e aprendizagem nas escolas públicas; seja por não investimento num sistema de educação de qualidade com material escolar e escolas em quantidade e qualidade necessárias.
Com efeito, actualmente, há muitas crianças e jovens, os chamados vândalos, cujo direito à educação foi-lhes denegado e, consequentemente, relegados à marginalidade, sobretudo, por falta de oportunidades de emprego, condições de vida familiar condigna e devido à fome que lhes foi imposta por essa institucionalização da prática de produção de marginais no País.
A dificuldade no acesso ao emprego, a propositada criação de espaço para o desemprego e não pagamento regular dos salários e subsídios dos funcionários públicos, com destaque para os médicos, enfermeiros, outros profissionais da saúde e professores, são outros mecanismos eficazes de produção de marginais em grande escala que afecta directa e negativamente várias famílias que ficam, por sua vez, marginalizadas e sem oportunidades de fontes de rendimento, do direito ao desenvolvimento e acesso à justiça social. Os funcionários públicos são, assim, remetidos a uma vida de biscates e, na pior das situações, lançados em esquemas de corrupção para a própria sobrevivência.
Em bom rigor, as lideranças do Estado tendem, em várias, situações, a empurrar os funcionários públicos para a prática da corrupção como modo de actuação da Administração Pública, criando várias barreiras, incluindo a excessiva burocracia na tramitação de processos, como forma de fomentar a corrupção e tornar os funcionários públicos em autênticos fora da lei. Isto é, em marginais.
Relativamente ao judiciário, enquanto último reduto dos cidadãos para a materialização da almejada justiça, nota-se, em certas situações, para não generalizar, que os magistrados, tanto judiciais como do Ministério Público, não respeitam o Estado de Direito que se traduz na correcta aplicação da lei, nem respeitam a função jurisdicional que consiste, fundamentalmente, em realizar a justiça e assegurar o respeito pelos direitos e liberdades dos cidadãos.
Os magistrados, mesmo os do topo que deviam ser exemplo de integridade, como os da Procuradoria-Geral da República, do Conselho Constitucional, do Tribunal Administrativo e do Tribunal Supremo, em significativas vezes, comportam-se como marginais, ainda que de elite, na medida em que na tramitação dos chamados “processos quentes” violam o Estado de Direito e os seus deveres profissionais com vista a beneficiar o Poder Político ou interesses da elite política e económica, em detrimento do interesse público, dos direitos humanos e da justiça.
No contexto do actual conflito pós-eleitoral que se vive em Moçambique, é fácil perceber que o mesmo conflito resulta da prática de produção de marginais de elite nos órgãos de justiça eleitoral, no Governo do dia, na PRM e FDS que pela conduta marginal, praticam a fraude eleitoral, brutalizam os cidadãos, na maioria os manifestantes, vítimas da marginalização no acesso ao bem-estar e serviços sociais básicos pela prática recorrente e sistemática da má governação. A profunda fraude eleitoral que se contesta foi originada por marginais, de vários níveis e de diversificados sectores, criados pelo sistema de governação do dia.
Portanto, não é possível a construção do Estado de Direito Democrático e de Justiça Social pelos marginais que não respeitam a integridade e a lei do Estado, de tal maneira que a reconstrução e/ou reforma do Estado moçambicano para a efectiva paz, estabilidade social, económica, política e cultural também depende de um combate sério e eficaz contra o processo da institucionalização da prática de produção de marginais, os fora da lei, que fomentam pobreza, injustiça e que comprometem o futuro das gerações vindouras.
João Nhampossa
Human Rights Lawyer
Advogado e Defensor dos Direitos Humanos
Jurisconsulto em Litigância de Interesse Público
Enquanto reflectia em torno do tema que inspirou o presente texto, não deixava de pensar nos efeitos da sua recepção, não por conter um conteúdo polêmico, e sim, pelo receio de polemizar mais o próprio tema, o papel Vs silêncio dos intelectuais na actual conjuntura social e política moçambicana. Há mais de duas semanas que escrevi, mas não o encaminhei à publicação, pois os receios confundiram-se, de certo, com temores, mas não se traduziram, felizmente, em covardia de quem prefere “ficar no muro” por conta do ambiente social e politicamente polarizado.
Se é verdade que a polarização não constitui um problema em si, a mesma transforma-se num mal social, quando degenera e contamina o espaço público de debate. É como se todos andassem impacientes e com os nervos em franja. Ninguém ouve o que não lhe convier ou não apelar à sua comoção. Simulam-se debates, nos quais assistimos monólogos colectivos (ou polílogonos, como prefere chamar Severino Ngoenha), em que cada grupo se fecha nas suas próprias convicções, e os polos se convertem em inimigos. Lamentavelmente, é nesse estágio em que se encontram muitas democracias ocidentais, numa espiral de progressiva corrosão de seus fundamentos. Ora a crise na qual estamos mergulhados parece conduzir-nos, lentamente, para esse último nível de polarização. Consequentemente, e por conta do “raciocínio motivado”, qualquer colocação directa ou indirectamente ligada aos temas que dividem opiniões, é motivo de aplausos por uns, ódios e apupos por outros. Eu estou ciente de que por mais cuidadoso que seja a minha escrita, a interpretação e os efeitos de sentidos dela decorrentes não dependem de mim; deste texto pode dimanar variadas reações. Ainda assim, prefiro “não adiar mais a palavra”.
Ora, há praticamente dois meses que o país está mergulhado na mais intensa crise pós-eleitoral. Já de tudo um pouco se disse, se escreveu e se falou. Porém, o tema continua a pautar a informação e a agenda nacional. Provavelmente dar-nos-emos conta, findo período, que tenhamos tido mais informação produzida a respeito do fenómeno numa desproporção sideral em relação à própria realidade. É que tal como não se tem precedentes de uma tamanha crise, talvez não se tenha memória de uma profusão de debates na media tradicional e digital, bem como nas colunas de jornais nacionais e internacionais a respeito do fenómeno ora vivido.
Antes de prosseguir, preciso ponderar que como cidadão compreendo e revejo-me nas principais causas que deram origem ao que prefiro designar de revolta popular. E reconhecer isso não significa ser-se da oposição ou da posição, partidário deste ou contra aquele grupo. Sou um simples jovem cidadão moçambicano, cresci numa província historicamente tida como bastião do partido no poder, aquela que personifica(va) todo o tipo de intolerância política, onde os espaços cívicos estão(vam) bastante reduzidos. É o local onde o preço de não ser militante e alinhado se paga(va) caro, às vezes, com a própria vida, como foi do saudoso Anastáncio Matavel. Mas Gaza é, também, bastião da arrogância e prepotência dos seus dirigentes, da impunidade, da miséria, de toda sorte de carências, da falta de oportunidades de trabalho para jovens formados, da exclusão e desigualdades sociais, onde os índices de pobreza e indigência crescem na mesma proporção de certas enfermidades como acontece em quase todo o país.
Então não tem como não me rever em muitos dos dizeres que estão estampados naqueles dísticos. Ao contrário do que certas narrativas pretendem convencer a opinião pública, muitos desses jovens revoltosos agem conscientes e lúcidos e não movidos por estupefacientes como referiu o ministro do interior em rede nacional. É por estarem dotados de lucidez e uma forte consciência política e social – afinal é a existência que determina a consciência e não o contrário – que, saturados, dão peito às balas, reivindicam mudanças.
A improcedente cruzada anti-intelectual: os intelectuais nunca estiveram em silêncio
Paralelamente ao que acontece nas ruas, nas TV’s e nas redes sociais o acontecimento é espaçado por meio da “batalha discursiva”. Ora um dos temas que têm ganho força nos últimos dias tem que ver com os intelectuais, ou melhor, o seu papel na actual conjuntura. Há semanas viralizou um post de um conhecido escritor tecendo uma crítica directa às iniciativas de um conjunto de intelectuais que se reuniu e propôs o Manifesto Cidadão. Não foram poucos que, pela reação, concordaram, julgo eu, com o teor do texto. Já antes, num debate televisivo, um dos membros daquela organização, José Jaime Macuane, também teve que defender a iniciativa, diante de uma intempestiva crítica de um dos seus colegas de painel, o também intelectual Régio Conrado, que levantava questões que diziam respeito, sobretudo, ao alcance da iniciativa. Na sequência, seguiram-se, em diferentes contextos, discussões correlatas – algumas que se confundiam com ataques – galvanizados pela crítica pública, feita por Venâncio Mondlane, numa das suas últimas lives.
Ora tal como referi no limiar do texto, uma das facetas da polarização é o acirramento de posições que resvala na falta de abertura às ideias contrárias, produzindo, não raras vezes, uma “cegueira” deliberada perante os factos. E os factos estão expostos, mas não se resolvem por si. Penso que é sob esse prisma que nascem iniciativas internas de busca por uma solução pacífica e sustentável da crise vigente. Eu encaro iniciativas como Manifesto Cidadão e outras que, eventualmente, possam surgir, como respostas oportunas às críticas em torno das métricas excludentes dos políticos no passado, que envolviam apenas partidos políticos na tentativa de dirimir problemas nacionais, mesmo estando certos que não representam boa parte dos interesses dos moçambicanos. Além do mais, as soluções não passavam por negociatas entre grupos de interesse, por isso que as soluções eram superficiais, com um alcance episódico, uma vez que os problemas continuaram e se agravaram.
Como sociedade, não podemos perpetuar as formas de resolução de conflitos que se mostraram fracassadas no passado e, com efeito, parece-me ser contraproducente ridicularizar iniciativas que pretendem uma discussão abrangente e profunda dos caminhos que, doravante, queremos trilhar sem precisar de derramar mais sangue entre irmãos. Não duvido que a campanha contra a classe intelectual resulte do clima de desconfiança, saturação e oportunismo que caracteriza a sociedade moçambicana contemporânea. Sucede que conhecemos a filiação política de alguns dos intelectuais que fazem parte do Manifesto, mas precisamos reconhecer um pensamento equidistante e equilibrado dos mesmos, mesmo quando a atmosfera política era bastante desfavorável.
Haverá dúvidas da genuína preocupação de intelectuais como Brazão Mazula e Severino Ngoenha? Dos quais se reconhece, em grande parte da sua produção intelectual recente, bem como das suas intervenções públicas, contribuições recalcitrantes sobre os problemas que degeneraram na actual situação em que nos encontramos? Não é excessivo lembrar, no caso de Ngoenha, que, para além da regularidade das suas colocações na media, em muitos dos seus livros, o intelectual já alertava para os perigos da quebra do contracto social. Como hoje, já no passado, junto com José Castiano, foi acusado de busca de protagonismo político directo quando lançou o Manifesto por uma Terceira Via, uma hipótese rechaçada pelos próprios autores no livro. Estes, ancorados no conceito de historicidade, realizam uma síntese da primeira (socialismo) e da segunda (liberalismo), procedendo a um escrutínio crítico das contradições e limitações que caracterizaram as duas primeiras, por um lado, e, por outro, relevando os aspectos positivos nas duas, que podem ser aproveitados em vista de uma Terceira Via.
Há, pois, um diagnóstico dos problemas que conduziram o país ao caos que agora se vive. E o problema não é de hoje: tal como não o é a constatação da progressiva dissolução de valores humanos (Castiano, 2018), em lugar da “roubalheira e malabarismos” nas relações sociais. Não é novidade a denúncia da dólar-cracia (Ngoenha, 2016), que tem (des)configurado os meios de actuação da elite político-empresarial do Estado moçambicano, inclusive de algumas Organizações da Sociedade Civil, ao normalizarem posturas eticamente desviantes e politicamente nocivas ao bem-estar comum. Ainda em 2014, Severino Ngoenha para além de diagnosticar as causas que têm gerado as divisões internas entre os moçambicanos, apontou, como caminho para a superação dos sucessivos conflitos sociais, a necessidade de cultivar-se a tolerância que, no fundo, nunca existiu. É, ao contrário, a intolerância instrumentalizada – um outro corolário da (in)reconciliação, como prefere designar Eduardo Sitoe (2024) –, que mais vingou e estruturou a forma de pensar e agir dos atores políticos nacionais.
Quem deu atenção aos estudos e relatórios de transparência nacional e internacional, alguns produzidos por intelectuais moçambicanos, associados a alguns Centros de Pesquisa e Organizações da Sociedade Civil como CIP e IESE, esta última, por exemplo, que não cessou de partilhar gratuitamente, ao longo dos últimos anos, pesquisas reunidas em 11 volumes intitulados “Desafios para Moçambique”, integrando pesquisadores de diversos campos de conhecimento, que têm empreendido um laborioso trabalho intelectual sobre os problemas, desafios e soluções para Moçambique, nas suas diversas dimensões. Na última coletânea adstrita a 2023 – 2024, só para elucidar, nos primeiros dois capítulos dedicados à política e economia, respectivamente, o leitor é confrontado com abordagens que ressaltam problemas associados ao actual estado de caos, como seja o das consequências sociais e políticas da falta de reconciliação nacional, bem como o das relações e implicações da violência político-eleitoral no enfraquecimento da nossa democracia, da relação das oligarquias nacionais com a guerra de Cabo Delgado, entre outros estudos. Mas quem tem lido. Quem tem levado a sério esses estudos neste país?
Os intelectuais sempre estiveram no silêncio? Como assim?
Quem foram os constituintes do Comité de Conselheiros (CdC) de elaboração da Agenda 2025? Não foram intelectuais de diversos domínios de conhecimento e actuação profissional, protagonistas daquela que pode ser considerada a primeira Agenda Nacional, salvo o equívoco, com a radiografia do estado da nação, visão e estratégias, frutos de um debate amplo, inclusivo e participativo?
Em que medida essas e outras reflexões foram tomadas em conta por aqueles que estão ao leme do Estado, há quase 50 anos? Na verdade, boa parte dessas e outras contribuições soaram como uma vox clamantis in deserto. Hoje esquecemos-nos de que houve vozes que jamais se calaram diante dos sinais de decadência do Estado.
Ainda no passado, se considerarmos que o campo intelectual é composto, entre outros, pelo campo cultural, artístico e literário, devemos, desse modo, recuar para o tempo colonial de modo a dissipar alguns equívocos e reavivar a memória dos moçambicanos – tal como nos lembrou Lourenço Do Rosário, no podcast Gapi – do inesquecível papel das artes e da literatura na “profecia” a determinadas saídas da nossa sociedade. Não foi o barulho das armas que soou primeiro em busca da liberdade, e sim de vozes insubmissas de poetas e escritores que, em sucessivas gerações, denunciaram os males do sistema colonial e vaticinaram uma nação livre, antes de 62 e 64, e continuaram depois da independência, associados a Charrua (1983) e não só. Mas o problema não é e nunca foi o silêncio dos intelectuais, e sim, observa Rosário, “daqueles que detêm o poder”. Pois, conclui: “a maior parte daqueles que detêm o poder assobiam ao lado, não têm o cuidado de respeitar a opinião pública e a opinião dos intelectuais como sendo os melhores conselheiros para corrigir as assimetrias”. Portanto, não há silêncio [dos intelectuais], o que existe é o desencontro entre aqueles que pensam e aconselham e aqueles que devem tomar decisões conducentes à mudança de paradigmas.
Alertou-se, inúmeras vezes, para os riscos do estágio em que vivemos, quando se buscou abafar as manifestações e o debate nacional franco, por meio da repressão e de intimidações. De modo que não deveria ser, de todo, surpreendente este estado de anomia social, na medida em que constatamos, todos, os recuos significativos em termos de ganhos que se esperava que fossem consolidados com o multipartidarismo. Debalde, pois vimos, muitas vezes impávidos, a progressiva degradação do Estado Democrático de Direito. Testemunhamos a saga, nada sutil, do sucateamento da saúde, da educação, da justiça, etc. À vista de todos nós, assistiu-se, por tabela, à perda do contracto social também, conforme referi, denunciado inúmeras vezes por Severino Ngoenha (Os Tempos da Filosofia), e por muitos desses intelectuais que integram o Manifesto Cidadão). Nada disso ocorreu de forma subliminar.
Mas quem acatou?
Quem, pelo menos, refletiu acerca dos fundamentos avançados na proposta do federalismo do então jovem Severino Ngoenha em “Por uma Dimensão Moçambicana da Consciência Histórica, depois refinada filosoficamente em “Das Independências às Liberdades”, ou mais recentemente, quem escutou e analisou as premissas avançadas por Ngoenha ao alvitrar-nos o regresso às ideias de Mondlane, no livro “Mondlane, regresso ao Futuro”? (2019).
Quem deu ouvidos aos comentários incisivos (Pontos de Vista) de Tomás Vieira Mário, que até bem pouco tempo foi uma das primeiras vozes a criticar a postura da PRG e o impacto da mesma na descredibilização e aumento da desconfiança do público com as nossas instituições de justiça, quando esta se mostrou diligente, ao urdir processos cíveis e criminais contra Venâncio Mondlane, e continua muda e cega diante da actuação desproporcional das Forças de Defesa e Segurança contra os revoltosos nas ruas. Quem?
Esquecemo-nos de que, quando não podiam “algemar as palavras” com armas, empreenderam a campanha de assassinato de carácter, que consistiu em demonizar e marginalizar os poucos intelectuais não-alinhados; aqueles que não viam a realidade da mesma forma e desafiaram a orquestra sinfónica do discurso triunfalista e panegírico, sendo rotulados de apóstolos da desgraça, inimigos do progresso, entre outros epítetos que não convém aqui lembrar. Não bastasse, sofisticaram os mecanismos de intimidação e coartação das liberdades, através da violência física precedida por sequestros e raptos.
No entanto, estamos todos acometidos por uma estranha amnésia coletiva! Perdemos a memória da razão que culminou com as pauladas às pernas de José Jaime Macuane e Erecino de Salema?
Apagou-se da memória o que levou ao assassinato bárbaro de Carlos Cardoso, Siba-Siba Macuácua, e num passado não distante, Jilles Cistac, intelectual, constitucionalista e defensor da descentralização.
Quantos exemplos mais poderia elencar para avivar a nossa memória?
O próprio Venâncio Mondlane, enquanto intelectual e analista político que sempre vocalizou os problemas de governação, em meio a uma “cegueira” deliberada e crescente de alguns, não escapou ao cerco dos famigerados grupos de choque como o G40, bem como da media pública nacional, ao serviço do partido que governa. Então esquecemo-nos de tudo isso?!
Pode-se criticar o exercício intelectual, mas não devemos misturar alhos e bugalhos.
Com efeito, há-de se fazer duas ponderações em torno da confusão que se faz entre os que designo de comentadores de TV ao serviço do governo, e de intelectuais que, independentemente, de todo tipo de condicionantes, não se curvaram, pelo menos explicitamente, às tentadoras benesses da cooptação.
Os primeiros constituem uma franja de académicos cooptados, muitos deles, docentes de Universidades – eles precisam de estar associados a alguma Universidade para conferir o ar de intelectualidade nos seus comentários” (cyber-intelectuais, chama-os Ngoenha em “A Terceira Questão”), mas todos sabemos como muitos chegam lá, e que a docência é apenas um meio para se consolidarem nos “mercados de postos”, tal como observou Antônio Cândido (2001), qual efeito de uma matriz de jogo de interesses que desvela, em parte, o ethos das relações entre os tais e as classes dirigentes do país, bem como o fosso da desvinculação social entre os mesmos e a sociedade. Não admira que os analistas de ontem sejam assessores, integrantes de fundos nacionais e deputados de hoje, e os de hoje (os Aníbais da vida e companhia…) serão amanhã (diga-se, nos próximos mandatos).
Entretanto, isso não surpreende, se considerarmos que tão pouco se trata de um fenómeno novo e estrito à realidade moçambicana. Na verdade, as relações entre os intelectuais e as classes dirigentes em Moçambique foram quase sempre definidas nos termos de uma relação entre “posição social” e “estruturas de poder”. Sintomático é a proporção e a indisfarçabilidade com que é feito hoje.
Sabemos que eles agem em estreita comunhão com boa parte da media nacional, que é co-produtora e disseminadora dos discursos da manutenção da legitimidade do Estado em todas as acções dos seus agentes, por mais absurdas que sejam. Avram Noam Chomsky, linguista, filósofo, cientista cognitivo e activista político estadunidense, denunciou veementemente esta subserviência política da media numa obra com um título já por si eloquente: “Media: Propaganda Política e Manipulação” (2024), do resto, com o foco na realidade política dos EUA, mas cujo padrão de actuação parece encontrar similaridades em contextos como o nosso.
Na realidade, nestes últimos dias, temos estado diante do contrabando insidioso de mentiras empilhadas, descaradamente, a quem acompanha seus noticiários e debates promovidos, sobretudo, pelos órgãos públicos de comunicação social. Seu foco é deslegitimar as causas da revolta popular em favor do pânico económico. Por isso que neste conflito, vocalizam apenas interesses da oligarquia que controla a economia e o mercado financeiro. Ainda assim, e mesmo que estejam à margem da realidade por conveniência, sou daqueles que defendem o seu direito de fala até ao limite da tolerância, ou seja, até ao instante em que o debate for pautado por uma racionalidade que exclua a imposição da razão por outros meios que coloquem em causa a coexistência humana, sob pena de a intolerância acabar com a própria tolerância, dirá Karl Popper, no Paradoxo da (in)Tolerância.
O segundo grupo é aquele que, para mim, se enquadra no estatuto de intelectual orgânico de Gramsci (1997), que mesmo sendo parte de uma Formação Discursiva e Ideológica próxima da classe dirigente (parte deles), não se exime da sua vocação idiossincrática de reflectir em torno de questões candentes da nossa sociedade e actua numa práxis que esteja necessariamente atrelada aos problemas sociais vigentes. Ciente dos riscos que correm, esses intelectuais agem sob uma estratégia de transformação histórica em que dê reconhecimento aos dilemas e desafios colectivos. Não se arvoram à velha concepção de arautos da salvação, pois não estão e nem se colocam acima dos outros. É assim que vejo o grupo de intelectuais que se tem esmerado na busca de soluções para a actual crise, através de uma plataforma de diálogo que se quer permanente e consequente como a de Manifesto Cidadão.
Por isso, mesmo que ponderemos os primeiros como intelectuais, não devemos ter a ilusão de esperar uma reação unívoca de toda classe intelectual moçambicana perante os mesmos fenómenos sociais e políticos, por um lado; ilusório seria esperar um campo intelectual livre de interferências políticas, quanto mais numa sociedade como a nossa, profundamente marcada por um processo de formação social atocrático, por outro.
À guisa do fim: não os desencorajemos
É temerária a cruzada anti-intelectual em curso, pois sabemos que os discursos e significados não operam apenas no sentido cognitivo, mas também no normativo, e são passíveis de tradução em ações pelos indivíduos e grupos na luta política, independente mesmo da sua consistência lógica interna, das intenções manifestas ou latentes.
\São injustos os ataques junto daqueles que têm coragem de enfrentar o sistema e os problemas de governação neste país. Tal como referi, podemos criticar a forma, mas não desmerecer as iniciativas em curso, nem fingir amnésia do histórico papel dos nossos intelectuais em favor de causas mais nobres da sociedade moçambicana. Pois tenho comigo que atacar esforços de estabelecimento de uma plataforma representativa de diálogo nacional como a de Manifesto Cidadão é mais do que atacar intelectuais, é queimar as poucas pontes de que dispomos para aproximar os políticos à mesa do diálogo.
Não precisamos de análises profundas para percebermos que, no fundo, não há disjunção alguma entre as reivindicações dos revoltosos com as posições defendidas, não na estrada com dísticos como seria de esperar, mas nas intervenções públicas e não só, de intelectuais como Brazão Mazula, Severino Ngoenha, Tomás Vieira Mário, Tomás Timbane, José Jaime Macuna, Roberto Tibana, este último parte dos sugeridos por VM7 para integrar a mesa de diálogo junto de outras figuras públicas reconhecidas pela sua coragem e defesa dos Direitos Humanos e dos mais desfavorecidos. Posto que, ridicularizar a classe intelectual é ridicularizar a verticalidade e a coragem que sempre caracterizaram um Roberto Tibana, por exemplo, a quem eu muito admiro. Pelo que não encontro razão que justifique os ataques à classe intelectual.
Que as críticas estimulem e não retraiam todos os esforços com vista à refundação do nosso Estado, a partir da oportunidade que nos é gerada pela crise vigente. O grupo que integra o Manifesto Cidadão já estabeleceu uma ponte importante de diálogo entre os representantes dos partidos políticos, talvez precisem de seguir dialogando e inserindo vozes de diversos cantos deste país e, sobretudo, as lideranças que emergem e são reconhecidas entre os revoltosos, pois a esses intelectuais: não basta discorrer apenas sobre o povo, é preciso partilhar espaços de fala. Assim, reduziriam, talvez, o fosso de desconfianças que pairam, tornando o manifesto mais representativo e até polifónico. Porque não?
Por fim, não vejo problemas no protagonismo de intelectuais em meio a crises, mesmo que isso seja confundido com oportunismo. As críticas ao seu protagonismo só revelam mais uma contradição flagrante. Estranho seria o silêncio complacente diante do caos instalado. A história da humanidade está repleta de exemplos em que os intelectuais que tomaram dianteira ou colaboraram com ideias para a superação de crises, conflitos e consumação de revoluções populares. Afinal, foi em meio a convulsões que se consolida o conceito de intelectual moderno. Apesar da ideia de intelectual moderno irromper no século XVIII - na consignada Época das Luzes, época na qual se busca desarraigar do poder absoluto da monarquia e da omnipresença da Igreja – só nos finais do século XIX, com o célebre caso Dreyfus na França (1894-1906), é que se consolida a figura do intelectual comprometido, por exemplo na Europa, o que teve reflexos em muitos outros cantos do mundo. Desde esse período os intelectuais se tornaram num grupo politizado – possivelmente o mais politizado, na perspetiva de Debray (1979) – intervindo em assuntos políticos, participando ativamente na esfera pública, pronunciando-se e combatendo por causas políticas e sociais.
Ora, se toda acção intelectual em curso se mostrar infrutífera, se o conflito não encontrar um quadro regular, nem estabelecer vasos comunicantes, pelo menos não terá sido por apatia ou silêncio da classe intelectual moçambicana. Pois é melhor fazer algo, e ser alvo de críticas por uma acção engaja pelo bem maior do que por inação.
Atacar e desmerecer as actuais iniciativas de intelectuais em busca da paz e estabilidade, é atacar o alvo errado do problema e acirrar mais as divisões internas.
Tenho dito.
O nosso país enfrenta uma doença grave, que afecta a todos, ainda que em proporções diferentes. Essa doença foi identificada há já algum tempo, mas tratada com descaso. Durante décadas, seus primeiros sintomas foram ignorados, permitindo que se enraizasse no tecido social, afectando todos os segmentos de Moçambique. Hoje, ela não distingue entre a alta e a baixa sociedade, abrangendo a todos e colocando o país em estado de alarme, medo e incerteza. Essa enfermidade tem nome: má governação, caracterizada pela corrupção institucionalizada, desigualdades sociais gritantes e exclusão social.
Esse mal foi se instalando de forma lenta, como um câncer que cresceu e começou a fazer suas primeiras vítimas. Suas manifestações iniciais incluem as homenagens pacíficas aquando da morte do rapper Azagaia em 2023, o repúdio aos resultados das eleições legislativas do mesmo ano e, finalmente, a mobilização popular contra o que se considera manipulação eleitoral nas eleições de 2024. Esses eventos não são isolados; reflectem a pobreza generalizada, o desemprego, a precariedade dos serviços de saúde e educação, a insegurança pública, entre outros problemas estruturais. Soma-se a isso a forte repressão policial, com o uso indiscriminado da força contra civis, violência gratuita e o desdém pelos eleitores que confiaram nos governantes.
Milhões de moçambicanos sentem-se traídos por promessas vazias de um “futuro melhor”. Eles acreditaram que “o sol de junho para sempre brilharia” e que “nenhum tirano os escravizaria”. Contudo, viram o sol perder seu brilho e uma nuvem cinzenta anunciar uma nova era. Viram elites predatórias, mascaradas de libertadoras, empobrecerem ainda mais o povo e lhes retirarem aquilo que possuem de mais precioso: sua dignidade.
A frustração, a revolta e o desejo de mudança intensificaram os ânimos, desencadeando protestos que evoluíram para confrontos, saques e destruição. Não foi fruto do acaso. O povo clamava silenciosamente, por alguma dignidade. Pensou-se que as balas e o gás seriam suficientes para calá-lo e confiná-lo à miséria. No entanto, surgiu um novo fenómeno com o qual teremos de lidar: a perda do medo por parte do povo oprimido e a consequente retirada de legitimidade das autoridades e das instituições.
O gatilho social está prestes a disparar, levando-nos, em ritmo acelerado, para o caos total. Há um silêncio ensurdecedor por parte daqueles que deveriam agir para conter essa crise e evitar o caos. Tentativas de escamotear a realidade, discursos de ódio e narrativas que desumanizam o “outro” aprofundam a marcha rumo ao abismo. Falamos de tudo, menos da raiz do problema. Ignoramos os motivos que nos trouxeram até este ponto, onde o luto rima com a indiferença estatal, e as mortes são apenas números e estatísticas diante de discursos que priorizam perdas económicas e materiais.
E depois? Quando mergulharmos no caos, como reconstruiremos a visão de Estado, de Instituições e de defesa e promoção inclusão social?
De um lado, há uma classe saturada, cansada e exausta com anos e, talvez até décadas de uma má governação, que busca a reposição da verdade eleitoral como algum alento e um passo em frente na emancipação do povo, símbolo de justiça social. De outro, há uma elite governante, isolada no cimo das suas torres de marfim, que ignora os clamores populares e acredita ser merecedora de seus privilégios, mesmo que isso custe luto, lágrimas, sangue e vidas humanas. Em nome da ordem pública, essa classe autoriza o uso indiscriminado da força, acreditando poder silenciar o povo com balas e gás.
Chegamos a um ponto em que até as autoridades parecem algo desnorteadas e desorientadas, percebendo que nada é mais forte do que o povo. Antes, supunha-se que seu papel era proteger os cidadãos. Hoje, está claro que esse papel foi subvertido: as armas que deveriam defender o povo são usadas para semear luto em nome da segurança e pacificação do Estado. Esse mesmo Estado, que foi capturado por políticos ambiciosos e gananciosos, que ignoraram os sinais de revolta. Agora, encontram-se encurralados em um ciclo desumano, arrogante e cada vez mais promíscuo.
O povo, por sua vez, avança porque já não tem nada a perder. Uma vez arrancada sua dignidade e violados seus direitos fundamentais, o que resta da vida? É apenas o pulsar de um coração angustiado, um estômago vazio, uma cabeça confusa e pulmões sufocados por gás. O pouco de vida que resta transforma-se em arma para libertar e inspirar os mais jovens, que ainda não podem marchar.
Escrevi, em 2023, o texto “A Demissão do Povo”, no qual afirmei: “O povo foi demitido da sua função de fiscalizador da ação governativa” como que, de um prelúdio se tratasse. Hoje, essa percepção tornou-se ainda mais evidente. O povo sente-se marginalizado, irrelevante e tratado com desprezo pelos líderes que deveriam ser o garante do bem-estar social, da coesão e servir ao bem colectivo. Face a essa exclusão, os movimentos populares mais ou menos estruturados, emergem como o único instrumento para manifestar suas demandas e buscar a transformação tão necessária.
A escrita não deve pretender prever o futuro nem ser um exercício de alarmismo. De certeza não é isso que busco quando escrevo e quando faço minhas absrações. No entanto, o exercício de escrever, nos convida a analisar e reflectir os acontecimentos, passados, presentes até futuros, mesmo que, às vezes, suas interpretações sejam apenas compreensíveis a quem as escreve. Não se trata de um tarot literário, mas de observar a sociedade com lentes socio-antropológicas e uma perspectiva filosófica que transcenda os limites do óbvio.
Tenho receio pelo futuro. A semente do ódio foi plantada, e o terreno para sua germinação é mais do que fértil. Minhas preocupações e meus medos, se agravam ao perceber a apatia e a fraqueza de nossas instituições e daqueles que as dirigem, que parecem atreladas a interesses individuais, e incapazes de promover o diálogo, o entendimento e um meio termo ou superar as adversidades do agora. Essa fragilidade se reflecte no desprezo pelas autoridades e na deterioração do respeito aos símbolos nacionais.
O futuro, exigirá muito mais do que um governo seja ele de esquerda ou de dreita — independentemente de sua orientação ideológica ou partidária. Ele demandará que a sociedade reencontre sua identidade e reinicie o ciclo da reconstrução da moçambicanidade. Será necessário o esforço conjunto de milhões de braços para realizar um profundo trabalho de reconstrução sociológica, psicológica, antropológica, literária, histórica e filosófica. Mais do que narrar os acontecimentos, precisaremos curar as feridas do corpo e da alma, e de seguida desenhar um novo ideal de país.
O barril de pólvora está prestes a explodir, e a chaleira social encontra-se em ebulição. A tampa já está quase saltando. Se não encontrarmos uma válvula de escape, será o vapor que nos queimará sem dó nem piedade.
Na minha recente reflexão, intitulada - “Premissas para um Diálogo Nacional Profícuo”, mencionei que, “ainda não fomos capazes de criar um diálogo consistente, promover o perdão e a reconciliação”. Em vez disso, recorremos a tácticas ilusórias, enganando a nós mesmos e aos outros.
Escrevo estas palavras com um profundo pesar. Para além de Cabo Delgado que sofre com a insurgência, todo Moçambique está em chamas, caminhando para a barbárie. A questão inevitável é: será que precisaremos afundar ainda mais em um banho de sangue para que o luto assuma o controle de nossa história e de nossas vidas?
Finalizo com uma citação de Paulo Coelho: “Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor.” Parafraseando, acrescento em minhas palavras: quando a governação não é inclusiva, orientada a resultados e dialogante, o risco de criar fissuras e fragmentações sociais é imenso. O excluído, então, transforma-se em parte de um problema gerado e perpetuado pela própria má governação.
Disse!!!