O sol nasceu tímido e as nuvens decidiriam cobrir o céu, fazendo antever uma segunda-feira cinzenta, na capital moçambicana. Assim começava o dia 21 de Outubro de 2024, data em que estava agendada, em todo o país, uma marcha de repúdio ao assassinato de Elvino Dias e Paulo Guambe, mandatários do candidato presidencial Venâncio Mondlane e PODEMOS, respectivamente, ocorrido na noite da última sexta-feira, em Maputo.
De uma marcha pacífica, convocada na passada quarta-feira pelo candidato a Presidente da República, Venâncio António Bila Mondlane, e reafirmada no sábado, muito cedo se revelou num verdadeiro foco para tumultos, tendo a Polícia da República de Moçambique (PRM), através da Unidade de Intervenção Rápida (UIR), como protagonista.
Logo nas primeiras horas do dia, a PRM destacou seu batalhão antimotim para o local, junto com os seus blindados (mais de três viaturas), gás lacrimogéneo, helicóptero e cães-polícia, no lugar de enviar uma equipa de protecção, tal como recomenda a legislação para este tipo de eventos.
Anacleto Armando, residente no bairro da Munhuana, nos subúrbios de Maputo, conta que chegou ao local da concentração (o mesmo lugar onde foram brutal e covardemente assassinados Elvino Dias e Paulo Guambe) por volta das 08h00 e, logo à chegada, deparou-se com um contingente policial “preparado para guerra”.
“Quando começamos a nos juntar em grupo, a Polícia começou a atirar gás lacrimogéneo e nem nos deu espaço de nos organizarmos. Ninguém provocou a Polícia, ela é que começou a dispersar-nos com gás lacrimogéneo”, narra Armando, em conversa com “Carta”.
Empunhando uma bandeira da República de Moçambique, Anacleto Armando defende não ter entendido a atitude da Polícia que, aliás, chegou a atirar gás lacrimogéneo para o local onde o candidato presidencial estava a conceder uma entrevista aos jornalistas. Pelo menos três jornalistas ficaram feridos no incidente, filmado em directo pela estação portuguesa RTP.
“Era suposto realizarmos uma marcha pacífica, sem nenhum vandalismo, em protesto contra os resultados eleitorais e em repúdio ao assassinato de Elvino Dias e Paulo Guambe. Mas, estranhamente, a Polícia já estava aqui armada até aos dentes”, afirma Anacleto Armando.
Por isso, o jovem, de 25 anos de idade, não tem dúvidas de que se trata de um atentado ao Estado de Direito Democrático. “Isto é um atentado ao Estado de Direito Democrático, nós estamos aqui para exercer um direito que nos é dado pela Constituição da República. Isto é uma prova de que estamos num Estado tirano, que não quer preservar os direitos de todos os cidadãos. Estávamos para marchar, mas fomos reprimidos com gás lacrimogéneo, o mesmo que podia ser usado para outros fins”, defendeu a fonte, sublinhando que o aparato policial podia estar a salvar vidas em Cabo Delgado, onde os terroristas semeiam luto há sete anos.
No entanto, garante que não irá recuar. “Não vamos recuar, vamos até ao fim. A Polícia não tem armamento suficiente para nos manter aqui até anoitecer. Vamos continuar aqui até anoitecer”, atirou.
Entretanto, contrariamente as suas promessas de não recuar, Anacleto Armando e mais uma dezena de jovens fugiram do local da entrevista (Avenida Joaquim Chissano, esquina com Acordos de Lusaka), segundos depois, ao ver um carro blindado aproximar-se do local, lançando gás lacrimogéneo de forma indiscriminada.
Quem também aponta a Polícia como responsável pelos tumultos desta segunda-feira, na Cidade de Maputo, é Alberto José, um jovem residente no bairro do Boquisso, uma zona de expansão do Município da Matola, província de Maputo.
Alberto José afirma ter encontrado a UIR já posicionada na Praça da OMM, local escolhido para concentração dos manifestantes. “Saí de casa para me juntar à marcha, uma vez que se disse que seria uma manifestação pacífica contra a má governação no nosso país. Mas, a minha chegada, por volta das 8h00, a Polícia já estava a disparar para as pessoas sem nenhum motivo”, conta a fonte, limpando o rosto com um pano molhado para reduzir os impactos do gás lacrimogéneo.
“Ao invés de persuadir a população para não aderir à marcha, a polícia está a disparar e isso é um dos motivos que leva as pessoas a destruir bens públicos”, acrescenta, garantindo que saiu de Boquisso por entender que tinha de demonstrar a sua indignação perante o rumo que o país está a tomar.
“Sou moçambicano e, nessa qualidade, tenho o direito de me manifestar, como também o dever de proteger este país e contribuir para o bem do meu país e este é um dos contributos que estou a dar para o bem do meu país. A Polícia tinha de estar aqui para garantir que a marcha ocorresse de forma ordeira, mas não é o que aconteceu”, sublinha.
A marcha foi impedida antes mesmo de iniciar e o caos tomou conta da Cidade de Maputo. Diversas avenidas da capital do país (com destaque para Milagre Mabote, da Malhangalene, Joaquim Chissano, Acordos de Lusaka, Vladimir Lenine e Rua da Resistência) foram bloqueadas pelos manifestantes, que queimaram pneus e derrubaram contentores de lixo, postes de iluminação e painéis publicitários para impedir o avanço da Polícia.
Igualmente, foram lançadas pedras e garrafas em retaliação ao gás lacrimogéneo, que era lançado de forma indiscriminada pela Polícia. Parte dos casos de maior tensão foi registada nos populosos bairros da Maxaquene, Mafalala, Urbanização, Mavalane, Ferroviário e Polana Caniço, onde os manifestantes literalmente impediram a circulação de pessoas e viaturas. Aliás, há vídeos amadores retratando a vandalização de viaturas particulares em algumas avenidas, com recurso a catanas.
Dados avançados na noite de ontem pelo Hospital Central de Maputo indicam que pelo menos 16 pessoas ficaram feridas na sequência dos tumultos. Entre os feridos, refira-se, há três jornalistas. (A. Maolela)
A cidade de Maputo, especificamente o bairro da Maxaquene, nas proximidades da avenida Vladimir Lenine, enfrentou ontem momentos de terror, com a Polícia disparando balas reais e lançando gás lacrimogéneo, inclusive nas residências, bem como recorrendo a cães para amedrontar a população indefesa.
Veículos Mahindras circulavam de um lado para o outro e disparos de balas verdadeiras eram ouvidos, enquanto barricadas e pneus queimados se espalhavam durante as manifestações de repúdio contra o duplo homicídio dos apoiantes de Venâncio Mondlane e dos resultados das eleições do dia 9 de Outubro.
O cenário caótico persistiu até às primeiras horas da noite no bairro da Maxaquene. A população continuava a incendiar pneus para impedir a passagem dos automobilistas. Desde as primeiras horas do dia, os jovens do bairro demonstravam determinação em não cessar e a Polícia teve de fazer uma permuta: os agentes que estavam de serviço durante a tarde recuaram e, ao cair da noite, outro grupo entrou em acção no local.
Ainda de manhã, blindados rugiam e os agentes da Unidade de Intervenção Rápida (UIR) estavam a atacar a população indefesa de forma indiscriminada. Os populares ganhavam ânimo ao cair da noite, continuando a queimar pneus na avenida Milagre Mabote até ao início das avenidas Joaquim Chissano e Vladimir Lenine.
O comércio neste bairro ficou completamente encerrado e houve também vandalização de algumas infra-estruturas, painéis publicitários e bloqueio de várias vias. Os jovens do bairro iam arremessando pedras e garrafas por cima da Polícia, sem demonstrar nenhum medo. A coragem pairava sobre eles e criava mais raiva da Polícia que ia entrando dentro do bairro a tentar perseguir um por um.
Em termos globais, o bairro da Maxaquene destacou-se ontem em termos de violência e desordem. Havia cenas de postes de energia queimados, garrafas quebradas e arremessadas no meio da estrada, culminando numa escalada de violência sem precedentes, o que fez com que o helicóptero da polícia sobrevoasse continuamente o bairro.
Alguns jovens do bairro foram feridos pela Polícia e alguns jornalistas também sofreram durante escaramuças entre a população e os membros da PRM. Num autêntico filme de terror, a Polícia invadiu alguns becos daquele bairro de lata, onde até crianças não escaparam ao gás lacrimogêneo, provocando desespero em muitas mães que tentavam proteger os seus filhos.
Recorde-se que a Polícia da República de Moçambique já havia lançado um aviso de que havia de abortar qualquer acto de violência que pudesse surgir. Por outro lado, a Comissão Nacional de Eleições tem, até esta quinta-feira, o prazo para anunciar os resultados finais das eleições de 09 de Outubro, contestados pelo candidato presidencial Venâncio Mondlane, que defende ter ganho o escrutínio. (Marta Afonso)
O Hospital Central de Maputo (HCM) informou, esta manhã, que a jovem que estava na boleia do advogado Elvino Dias, assassinado na última sexta-feira, em Maputo, continua viva e poderá ter alta nos próximos dias.
Segundo o director dos Serviços de Urgência do Hospital Central de Maputo, Dino Lopes, a vítima sofreu escoriações e fracturas nos membros superiores. "Desde a sua entrada, realizamos atendimento de urgência, conseguimos estabilizar a paciente, e actualmente ela se encontra estável, consciente e fora de perigo. A jovem deverá receber alta hospitalar ainda esta semana", frisou, escusando-se a dar mais informações por questões que não se dignou a explicar.
Em relação ao estado dos pacientes que deram entrada nas últimas 24 horas, a fonte disse que dos 192 pacientes atendidos naquela unidade sanitária, 16 estavam envolvidos nas manifestações de ontem.
Deste número, cinco permanecem internados com fracturas e traumas, enquanto 11 já receberam alta. Os pacientes chegaram ao Hospital Central de Maputo transferidos de várias unidades de saúde, como o Hospital Geral de Mavalane, Polana Caniço e José Macamo.
O director dos Serviços de Urgência do HCM acrescentou ainda que ainda não foi registada nenhuma morte associada à paralisação de ontem convocada pelo candidato presidencial Venâncio Mondlane. Esclareceu ainda que nenhum agente da polícia deu entrada no hospital vítima dos tumultos de ontem. (Carta)
Várias instituições da cidade e província de Maputo poderão não abrir as portas hoje, segunda-feira, por temerem vandalização e outras situações que possam causar danos. Trata-se de uma medida de precaução na sequência de uma greve geral convocada pelo candidato presidencial Venâncio Mondlane, apoiado pelo partido PODEMOS, para contestar os resultados anunciados pelas Comissões Provinciais de Eleições.
Maior parte das instituições de ensino privado vão interromper as suas atividades, entre as quais, o Colégio Arco-Íris, que emitiu na última quinta-feira uma nota de suspensão de aulas para esta segunda-feira.
Neste âmbito, a instituição orientou os alunos a resolverem as fichas de trabalho em casa durante o período em que as instalações permanecerão fechadas. A Sociedade de Ensino e Investigação (SEI), composta por várias instituições de ensino, como o ISCIM, IPCI, ATLÂNTICO e o IQRA, também anunciou a suspensão temporária das suas actividades para garantir a segurança de todos os membros.
O Instituto Técnico Profissional Samora Machel, no distrito de Marracuene, província de Maputo, também decidiu suspender as suas actividades presenciais esta segunda-feira, devendo as aulas continuar de forma online, por meio de grupos de WhatsApp de cada turma, nos horários específicos. Entretanto, o instituto garante que informará a data da retoma das aulas presenciais no fim da tarde de amanhã.
O Centro Infantil e Externato Confiança na província de Maputo também suspendeu hoje as suas actividades. Serviços de transporte público também haviam anunciado um “recolher” obrigatório dos seus meios circulantes, mas perante pressão política, tiveram de desmentir as suas próprias comunicações.
A Polícia da República de Moçambique (PRM) afirmou, na última sexta-feira, que tomará medidas coercivas para impedir qualquer acto de violência e desordem pública face à convocação de uma paralisação nacional. “Serão tomadas todas as medidas necessárias e justificáveis para rechaçar quaisquer actos de vandalismo e desordem”, disse o porta-voz da PRM, Orlando Modumane. (Marta Afonso)
Mais de 48 horas após o assassinato político do advogado Elvino Dias e do mandatário nacional do PODEMOS, Paulo Guambe, o Presidente da República Filipe Jacinto Nyusi ainda não se pronunciou sobre o sucedido.
Até ao momento, da Presidência da República de Moçambique quem deu a cara foi a Primeira-Dama, Dra. Isaura Nyusi, que através de sua página oficial do Facebook, às 21h30m de domingo (20), manifestou seu repúdio pelo assassinato e consolo às famílias dos malogrados.
“Venho, por este meio, juntar-me às vozes que repudiam, veementemente, o assassinato do jovem Advogado Elvino Dias e do Mandatário Paulo Guambe, ocorrido no dia 19 de Outubro, na Cidade de Maputo.
Estes actos macabros constituem a destruição do amor e da fraternidade, valores e virtudes que devemos transmitir às gerações vindouras. A Família é a base da sociedade e destruir uma família é destruir os alicerces que constroem uma sociedade. Endereço as minhas mais sentidas condolências às famílias enlutadas, e que as Almas dos perecidos descansem em Paz!'”, disse a esposa do Presidente da República.
Daniel Chapo, candidato presidencial e secretário-geral da Frelimo, reagiu na tarde de sábado ao crime, considerando-o como “afronta à democracia” e pediu uma “investigação célere e imparcial” ao duplo homicídio.
Advogado e membro da Ordem dos Advogados de Moçambique (OAM) com carteira suspensa por iniciativa própria, por estar a exercer cargos sénior na esfera do poder político no Estado, Chapo disse que “foi com profunda consternação que recebi a notícia do brutal assassinato do advogado e do mandatário do partido PODEMOS, Elvino Dias e Paulo Guambe, respectivamente, ocorridos na última madrugada.”
"Gostaria de exortar às instituições da Justiça para que conduzam uma investigação célere, imparcial, independente e rigorosa, visando apurar os factos e responsabilizar os autores. A justiça tem de ser feita. Não podemos permitir que exista lugar ao medo num Estado de Direito Democrático”, lê-se no comunicado de Chapo.
A Frelimo, em um comunicado de imprensa sem assinatura de qualquer órgão também se manifestou no sábado contra o assassinato. “Acompanhamos com tristeza e grande choque o assassinato dos cidadãos nacionais Elvino Dias, advogado e Paulo Guambe mandatário do Partido PODEMOS, ocorrido na madrugada de hoje, dia 19 de outubro, na Cidade de Maputo.
A FRELIMO repudia veementemente este acto macabro e exorta a todas as autoridades que façam de tudo ao seu alcance para clarificar este caso. A FRELIMO endereça as mais sentidas condolências às famílias enlutadas”, termina o comunicado da Sede Nacional do partido no poder.
Enquanto isso, o país e o mundo aguardam até ao momento (tarde de segunda-feira) por pronunciamentos de Filipe Jacinto Nyusi, Chefe de Estado e Comandante-em-chefe das Forças de Defesa e Segurança, e ainda presidente da Frelimo, por pelo menos mais dois meses e meio. (Carta)