Tinha a cabeça submersa, como um cágado, no casco da camisola, movimentava-a mas só para os lados. Tinha os óculos poisados sobre a mesa, mas as marcas dos óculos continuavam em seu nariz; e seus olhos mexiam-se a cada instante como pés húmidos arrancados das meias. Os óculos de costas estavam sobre a mesa, um isqueiro descansando o sopro de lume mexia-se o seu gás sobre um maço de cigarros. O homem, de quando em quando, atirava o seu olhar solto das algemas dos óculos sobre a Ria Formosa.
As lanchas arquivadas em filas nas bermas da ria eram como mulheres aninhando-se nos corredores de uma maternidade, os carros comendo-se de impaciência na passadeira para um velho puxado por um cachorro magro, os turistas de calções curtos estendendo suas pernas povoadas por pêlos murchos e outros remastigavam fumo de cigarros de olhos fechados, tudo isso corria no centro de Faro. E o homem continuava ali sentado, sobrepondo os pés, de segundo a segundo, como se ensaiasse passos para caminhar para dentro de si.
Andamos todos com medo de sermos atacados, por isso armei-me de máscara e sentei-me na mesma mesa com o homem; e ele, também, por segurança, manejou o revólver da sua máscara e ficamos um vigiando o outro com medo do ataque; o homem tossiu duas vezes, três vezes e quase os pulmões saiam-lhe pelas fendas do nariz. Como um bom militar de guerra, recuei a cadeira, estiquei os gatilhos elásticos da minha máscara e homem riu-se sem parar. “Esses tipos já começaram a despachar esta porcaria de cigarrilhas”. E a conversa começou. Primeiro foi a recolha obrigatória que recolheu toda a nossa timidez na conversa, depois foi a gripe que adormecia toda a Europa a enfiar-se na mesa; e do nada o homem, equilibrando a máscara no queixo para mais uma cigarrilha, disse-me: “o único imigrante que não é bem-vindo em todo mundo é esta gripe”.
O homem sacudindo a cauda da última cigarrilha, ainda com a boca transbordando de fumo, diz-me: “depois de morto que levem os meus pulmões para a Amazónia; assim o mundo respira muito mais. Podes não acreditar mas tenho os pulmões mais saudáveis do mundo”. Filtrei, com a máscara, um sorriso que o homem não viu, mas apercebeu-se pelas leves deslocações das bochechas. E o homem foi falando sem parar, reclamava da esposa que lhe trocava por um cão. E no meio disso o homem diz que na terra onde cresceu os cães não têm nenhum direito; o único direito que têm, por piedade, é de morrerem apedrejados na rua.
“Eu sou imigrante como tu, imigrante como todos os que saíram da sua terra com um par de calças no cabide da cintura”. Kassoma era o nome do homem. Disse-me que é de Angola e tinha chegado a Portugal porque queria, antes de tudo, fugir da memória pesada do assassino dos pais durante a guerra civil. Um senhor mexeu nas lanchas arquivadas em filas nas bermas da ria e as lanchas agitaram-se, desta vez como mulheres sendo engolidas por porta de uma maternidade. E Kassoma não parava de falar dos seus pais assassinados como cães, na sua terra onde os cães eram apedrejados nas ruas. “Os meus pais foram podados os pescoços com duas baionetas, tu sabes o que é isso? És puto demais para isso”.
Já não tinha mais cigarrilhas, começou a roer as unhas como se quisesse desenterrar uma cigarrilha, agitou o isqueiro. Quando me preparava para uma pergunta qualquer o homem dispara-me: “o que tu queres saber de mim? Tu sabes que sou imigrante, Portugal acolheu-me, apesar de existirem alguns racistas que me chamam macaco, mas eu também fui criança-soldado. É isso que queres saber?”. Quando o homem afundava-se num enorme poço de silêncio eis que um carro, com um cão agitando-se no interior, buzina à nossa mesa; uma senhora branca entorna a cabeça pela janela e Kassoma levanta-se, junta-se aos poucos, mete-se no carro e desaparece.