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segunda-feira, 29 novembro 2021 09:13

Não escrevo isto a Calane que dorme no Michafutene…

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A única generosidade mais pura que sempre vi em Calane foi a de dobrar-se; ele tinha uma espécie de guinchos no pescoço que lhe dobravam a cabeça para falar com os mais baixinhos. Não era só o corpo enorme que se dobrava, que descia, eram os seus óculos, o seu cheio, a sua boca entulhada de gotas de saliva e toda a sua humildade. E parece injusto quando o tempo dobra um homem que sempre se dobrou a todos.

 

E ele era também estiloso, não sei porque raio de gentileza o tempo arruma as pessoas estilosas; Calane já tinha o bigode penteado de branco pelo tempo, a tesoura das horas comia-lhe, sem parar, a raiz dos cabelos e o seu bigode com sedas brancas levitava a cada sorriso como capim sendo arrastado por um jacto de vento.

 

Escrevo isto a Calane que sempre andava enterrado em camisa sem gola, com pêlos brancos escalando a camisa e denunciando a ilha do tempo que lhe arrastava a areia do corpo à velhice. Não escrevo isto a Calane do Michafutene, a Calane que se deixa comer pelos vermes da terra como a poeira engole os capítulos dos seus livros e a métrica dos seus poemas nas prateleiras da cidade. A este Calane não escrevo e nunca escreverei.

 

Escrevo a Calane de gancho, elegante, no nariz onde engatava os óculos, a Calane que nunca soube falar devagar, a Calane que afastava os pulmões para falar e parecia que se sufocava quando falava; mas nunca se estrangulou pois era falando que o homem respirava. Escrevo a Calane branco, preto, mulato, indiano, hindu…

 

Não escrevo isto ao estranho Calane que foi tapado a voz e o corpo pelas pás de Michafutene, a Calane que pernoitou de costas sem dizer um poema na morgue do hospital para assustar a morte. Escrevo isto a Calane que não precisa de uma botija de gás para pôr a andar a porcaria da vida; escrevo a um Calane branco, preto, mulato, indiano, hindu, que sempre foi coveiro do medo com a pá da sua poesia. Juro-vos que não escrevo a Calane de Michafutene com flores e vasos no peito.

 

Eu dizia que Calane tinha a habilidade de dobrar o seu enorme corpo para falar com os mais baixinhos, não sabia que ele podia, um dia, curvar o corpo para caber na travessa de uma funerária e terminar no Michafutene como todas as carcaças de ossos que saem das morgues dos hospitais.

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