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segunda-feira, 10 julho 2023 11:00

A demissão do povo

Escrito por

Helio Guiliche

O povo foi demitido!!!

 

O povo foi demitido do seu papel de fiscalizador. Foi demitido de monitorar, de reclamar, de pedir para ter dignidade mínima.

 

Foi demitido de ser parte integrante do processo de governação da coisa pública. De ser um agente de participação, transformação e de mudança.

 

É triste, mas é a verdade. Chegamos a um estado de lamentação, consternação e lamuria em que o tanto fez é igual ao tanto faz. E agora parece que tudo é “swa fana” – na língua ronga – é mesma coisa.

 

O cansaço tomou conta; a frustração generalizou-se e a descrença tornou-se o respirar deste povo sonhador e lutador.

 

Como e quando isso aconteceu? De quem é a culpa? E como nos permitimos descer o penhasco desta forma, chegar quase no fundo sem estrondo, mas com impacto?

 

Na minha jovem trajectória, não tenho memória anterior de estar e participar em conversas várias, com diversas franjas sociais, e com alguma preocupação notar que o pulsar da apropriação nacionalista e patriótica esta em queda acentuada (não trago aqui nenhum barómetro capaz de servir como evidencia). As várias premissas foram paulatinamente me conduzindo a afirmar que o povo foi sendo demitido das suas tarefas principais.

 

O povo já sofrido e cioso de alguma mudança estrutural e estruturante, foi dando votos e confiança e, foi acreditando de forma cega na tão propalada mudança. Acreditou que a situação que vivia – boa ou má – era parte de um processo e de uma conjuntura histórica, política, económica e social, ou seja, era parte do processo de construção de um país novo.  Alias, muitos de nós nascemos e crescemos sob a atmosfera de uma narrativa segundo a qual estamos num processo de construção e afirmação da nossa identidade enquanto povo. Processo este complexo e demorado que vai desde a conquista da tão sonhada e almejada independência aos nossos dias.

 

Um processo, diga-se, em que a tese principal era a expulsão do colono e da sua máquina opressora que chicoteava, humilhava, segregava e desumanizava o homem negro (moçambicano neste caso). A antítese era o direito a autodeterminação, o direito a liberdade de decidir os destinos do país.

 

A mítica noite de 25 de Junho de 1975 foi mais do que uma reunião de moçambicanos e moçambicanas no Estádio Machava. Foi o renascer e um inaugurar de uma página que se sabia de antemão nada fácil, mas desejável e necessária.

 

O povo enfrentou uma longa noite escura com os 16 anos da guerra civil – uma longa noite de horrores e dissabores. O mesmo povo chorou de alegria quando, em Roma se assinou o fim das hostilidades com um abraço fraterno entre dois irmãos outrora desavindos. Esse mesmo povo se fez as urnas de forma altamente patriótica e organizada para celebrar e contribuir para o lançamento das fundações basilares da nossa frágil e incipiente democracia.

 

De lá para cá, vimos de tudo um pouco; desde o empoderamento a marginalização do povo. O povo foi-se imunizando de esperanças, e se mascarando de crenças. Foi também se maquilhando de um cansaço disfarçado de força. Era importante estar alinhado e acreditar que o futuro e a mudança estava a chegar. Futuro este que até chegou – mas para alguns – novas elites emergiram e novas formas de exploração do homem pelo homem onde nacionais exploram e subjugam nacionais. Sedimentamos uma nova colonização com timbre local protagonizada por burgueses nacionais.


Entre avanços e retrocessos, vitorias e derrotas, júbilo e frustrações – um fenómeno ganhou forma – O Povo foi demitido!!!

 

A pobreza generalizou, as assimetrias agudizaram, a corrupção institucionalizou-se, as liberdades reduziram-se, o espaço cívico afunilou-se, e o povo começou a sentir-se estranho na sua própria terra.

 

A redistribuição da riqueza foi se tornando cada vez mais desigual; educação foi sendo paulatinamente escangalhada, saúde mais precária, emprego cada vez mais elitista, infraestruturas degradadas e inviáveis, transporte público paupérrimo, segurança publica caótica, raptos, crime, assaltos, etc. Alguns dos factos que trago para justificar a demissão do maior e mais valioso recurso de qualquer país.

 

E quem assinou a carta de demissão do povo? Que consequências essa demissão pode trazer?

 

Há quem diga em jeito de gozo: melhor mudar de país.

 

Há que questiona: Será que ainda somos um país?

 

Há quem indaga sobre o país e o legado que deixaremos às gerações vindouras; sobre o legado histórico e político, sobre a nossa soberania e sobre os limites do nosso endividamento.

 

Há quem prefere simplesmente olhar e calar.

 

Eu, na altura era Ministro para os Assuntos do Povo (ainda que sem despacho). Tinha um dossier muito vasto e complexo por analisar. Confesso que foi difícil ajuizar e tomar uma decisão que fosse de encontro com aquilo que havia sido exposto.

 

Precisava agir com sabedoria. E quando me preparava para assinar a carta que recebera do povo (do povo que também represento e sou parte), o sono acabou e o sonho terminou.

Sir Motors

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