Olá, Pai Natal!!!
Sou eu de novo, mais uma vez cumprindo a tradição da “Carta ao Pai Natal”. É momento em que me torno representante de muitas crianças que acreditam em ti, e também, de alguns adultos que veem em ti aquele velho barbudo que marcou a infância deles, seja na esperança, seja na saudade.
A carta deste ano, Pai Natal, não foge a regra; traz mais reclamações, muitas lamentações e alguns pedidos. Na verdade, as reclamações não são para si, porque és Pai Natal e não político, nem governante. Reclamo para si porque presumo que algumas cartas que te escrevo, são extraviadas e acabam parando em mãos alheias. E, nunca estive tão cioso que essas “mãos alheias” fossem as mãos da elite castrense que governa o nosso país. Pudera eu, fazer um exercício de influência para que esta carta fosse lida na sala oval do Conselho de Ministros ou de algum outro lugar onde a audiência pudesse por um instante, sentir a dor do povo que aqui expresso e manifesto; e que pelo menos, por instantes, se tentasse perceber as metáforas e hipérboles que eu, ainda que sem mandato, trago em nome de uma colectividade sem voz. Imagino, Pai Natal, que depois de terminares a entrega dos presentes aos meninos bem-comportados, maioritariamente das elites e famílias mais ou menos abastadas, tiras um tempo para descansar e avaliar o teu trabalho de espalhar alegria, alento e alguma esperança disfarçada em brinquedos. Imagino também, que te sentas a mesa com gente influente e com poder suficiente para mudar muita coisa. Por acreditar nesse seu círculo privilegiado e poderoso, ainda escrevo, ainda desabafo e, ainda tento ser a voz dos sem voz. E se és Pai Natal de todos, antes és pai de alguém, e é na imagem desse pretenso alguém que te peço que seja portador e mensageiro no clamor das crianças de Moçambique e de todo o povo.
Como deve saber, estamos nas manchetes ao redor do mundo, e pelos piores motivos. O nosso país enfrenta uma crise grave, talvez a pior crise desde o conflito armado dos 16 anos. Essa crise que, mergulhou o país numa atmosfera pesada, que preocupa a todos, convidando à reflexão e tomada de decisões que se esperam urgentes e assertivas.
Pode parecer paradoxal escrever uma carta ao Pai Natal em contexto atípico e num período em que pairam incertezas sobre o presente e futuro do nosso país. Não me lembro de uma quadra festiva tão sem brilho, e sem motivos para celebrar. Parece que o nosso egoísmo, soberba e ganância nos levaram ao fundo do poço e, batemos com algum estrondo.
Pela primeira vez em décadas, teremos de conviver com a ideia de um Natal em que todos menos nós, estamos imbuídos de espírito natalino. Um Natal que será vivido e celebrado pelas telas da televisão e pelas redes sociais. Para alguns, os abastados, os membros da elite castrense, será um período de viagem ao exterior, fingindo que tudo está bem. Pela primeira vez teremos de explicar aos mais novos, que este ano, por motivo, que eles não entenderão, não teremos a tradicional festa de família, nos habituais moldes. As famílias estarão ou confinadas a viver o luto colectivo causado pelas balas, pelo gás e pela força desproporcional vindos de quem nos deveria proteger, ou estarão isoladas e distantes umas das outras porque circular livremente virou apanágio de poucos – quando não são as portagens formais que nos limitam, são as portagens informais e ilegais que nos retiram o direito a livre circulação.
A nossa segurança esta em perigo, e tudo nos remete a ideia de um presente incerto. Em nome da segurança, da lei e ordem, as nossas ruas, estão tomadas por policiais e militares, mas se tornaram mais violentas e assombradas pelas vozes dos que pereceram. Somos constantemente bombardeados com imagens, narrativas, notícias, filmes e toda propaganda típica de um cenário de guerra. Estamos mentalmente exaustos e psicologicamente quebrados com tudo isto.
A carta deste ano pode parecer apenas de lamúrias e desabafos, e, até certo ponto ela é isso mesmo.
Porém, se pudesse pedir algo nesta carta, pediria apenas bom senso Pai Natal. Bom senso por parte daqueles que podem decidir, para façam com sabedoria e devolvam o brilho e a esperança aos milhões de moçambicanos.
No passado, tivemos ocasiões em que durante as festas, faltou mesa farta nas famílias, contudo, nunca faltou paz, harmonia, segurança, fraternidade.
Estou em contrarrelógio, Pai Natal. Tenho muito pouco tempo para concluir a minha carta e enviar aos correios para que ela chegue a tempo. Por favor, não repare na minha caligrafia, nos meus erros e na estrutura pouco elaborada da minha carta Pai Natal (…). É que, a semelhança de muitos outros anos, eu e milhares de crianças deste país, não tivemos acesso ao livro escolar que se pretendia gratuito. Eu e milhões de crianças continuamos a estudar debaixo das árvores, sentadas no chão, ou em blocos improvisados, enquanto a nossa madeira vai para o exterior. Continuamos sem salas de aulas, sem carteiras, sem professores devidamente remunerados. Somos vítimas de um sistema que nos retirou a possibilidade de sonhar com uma formação capaz de transformar as nossas potencialidades em potencialidades do país.
Desculpa a carga emotiva que trago em alguns parágrafos Pai Natal. Enquanto escrevia, imagens tristes surgiram na minha mente tornando impossível segurar as lágrimas e a firmeza da caneta.
Para terminar, Pai Natal, que conste que não irei montar a árvore de Natal na minha casa, e acredita que muitas famílias não irão fazê-lo. Não faz sentido ter uma árvore de Natal reluzente e presentes para poucos, enquanto a grande maioria só conhece a árvore que simboliza a sua sala de aulas. Não faz sentido ter o presépio que anuncia o nascimento do menino Jesus, se a cada esquina vemos sangue de um irmão morto pela saga das balas, pela asfixia do gás, e pela opressão da fome, da indiferença e do desdém.
Vamos juntar cartuchos das balas disparadas, e os bujões de gás arremessados e, fazer um monumento em homenagem a todos que tombaram nesta luta por um Moçambique melhor. Um Moçambique em que não sejamos nunca mais atropelados por BTRs mas, que sejamos construtores de BTRs para atropelar a pobreza, a fome e a miséria que grassam a Pérola do Índico.
O meu pedido para este ano, é por um Moçambique em paz e livre da violência. E, se não for pedir demais, embrulha-o com tolerância, empatia e compaixão. Mas não precisas escalar as nossas janelas, para que não seja considerado um Pai Natal vândalo, arruaceiro e inconsequente; e nem corras o risco de receber uma descarga de uma AK-47.
Um Natal seguro a todos!!!
O nosso país enfrenta uma doença grave, que afecta a todos, ainda que em proporções diferentes. Essa doença foi identificada há já algum tempo, mas tratada com descaso. Durante décadas, seus primeiros sintomas foram ignorados, permitindo que se enraizasse no tecido social, afectando todos os segmentos de Moçambique. Hoje, ela não distingue entre a alta e a baixa sociedade, abrangendo a todos e colocando o país em estado de alarme, medo e incerteza. Essa enfermidade tem nome: má governação, caracterizada pela corrupção institucionalizada, desigualdades sociais gritantes e exclusão social.
Esse mal foi se instalando de forma lenta, como um câncer que cresceu e começou a fazer suas primeiras vítimas. Suas manifestações iniciais incluem as homenagens pacíficas aquando da morte do rapper Azagaia em 2023, o repúdio aos resultados das eleições legislativas do mesmo ano e, finalmente, a mobilização popular contra o que se considera manipulação eleitoral nas eleições de 2024. Esses eventos não são isolados; reflectem a pobreza generalizada, o desemprego, a precariedade dos serviços de saúde e educação, a insegurança pública, entre outros problemas estruturais. Soma-se a isso a forte repressão policial, com o uso indiscriminado da força contra civis, violência gratuita e o desdém pelos eleitores que confiaram nos governantes.
Milhões de moçambicanos sentem-se traídos por promessas vazias de um “futuro melhor”. Eles acreditaram que “o sol de junho para sempre brilharia” e que “nenhum tirano os escravizaria”. Contudo, viram o sol perder seu brilho e uma nuvem cinzenta anunciar uma nova era. Viram elites predatórias, mascaradas de libertadoras, empobrecerem ainda mais o povo e lhes retirarem aquilo que possuem de mais precioso: sua dignidade.
A frustração, a revolta e o desejo de mudança intensificaram os ânimos, desencadeando protestos que evoluíram para confrontos, saques e destruição. Não foi fruto do acaso. O povo clamava silenciosamente, por alguma dignidade. Pensou-se que as balas e o gás seriam suficientes para calá-lo e confiná-lo à miséria. No entanto, surgiu um novo fenómeno com o qual teremos de lidar: a perda do medo por parte do povo oprimido e a consequente retirada de legitimidade das autoridades e das instituições.
O gatilho social está prestes a disparar, levando-nos, em ritmo acelerado, para o caos total. Há um silêncio ensurdecedor por parte daqueles que deveriam agir para conter essa crise e evitar o caos. Tentativas de escamotear a realidade, discursos de ódio e narrativas que desumanizam o “outro” aprofundam a marcha rumo ao abismo. Falamos de tudo, menos da raiz do problema. Ignoramos os motivos que nos trouxeram até este ponto, onde o luto rima com a indiferença estatal, e as mortes são apenas números e estatísticas diante de discursos que priorizam perdas económicas e materiais.
E depois? Quando mergulharmos no caos, como reconstruiremos a visão de Estado, de Instituições e de defesa e promoção inclusão social?
De um lado, há uma classe saturada, cansada e exausta com anos e, talvez até décadas de uma má governação, que busca a reposição da verdade eleitoral como algum alento e um passo em frente na emancipação do povo, símbolo de justiça social. De outro, há uma elite governante, isolada no cimo das suas torres de marfim, que ignora os clamores populares e acredita ser merecedora de seus privilégios, mesmo que isso custe luto, lágrimas, sangue e vidas humanas. Em nome da ordem pública, essa classe autoriza o uso indiscriminado da força, acreditando poder silenciar o povo com balas e gás.
Chegamos a um ponto em que até as autoridades parecem algo desnorteadas e desorientadas, percebendo que nada é mais forte do que o povo. Antes, supunha-se que seu papel era proteger os cidadãos. Hoje, está claro que esse papel foi subvertido: as armas que deveriam defender o povo são usadas para semear luto em nome da segurança e pacificação do Estado. Esse mesmo Estado, que foi capturado por políticos ambiciosos e gananciosos, que ignoraram os sinais de revolta. Agora, encontram-se encurralados em um ciclo desumano, arrogante e cada vez mais promíscuo.
O povo, por sua vez, avança porque já não tem nada a perder. Uma vez arrancada sua dignidade e violados seus direitos fundamentais, o que resta da vida? É apenas o pulsar de um coração angustiado, um estômago vazio, uma cabeça confusa e pulmões sufocados por gás. O pouco de vida que resta transforma-se em arma para libertar e inspirar os mais jovens, que ainda não podem marchar.
Escrevi, em 2023, o texto “A Demissão do Povo”, no qual afirmei: “O povo foi demitido da sua função de fiscalizador da ação governativa” como que, de um prelúdio se tratasse. Hoje, essa percepção tornou-se ainda mais evidente. O povo sente-se marginalizado, irrelevante e tratado com desprezo pelos líderes que deveriam ser o garante do bem-estar social, da coesão e servir ao bem colectivo. Face a essa exclusão, os movimentos populares mais ou menos estruturados, emergem como o único instrumento para manifestar suas demandas e buscar a transformação tão necessária.
A escrita não deve pretender prever o futuro nem ser um exercício de alarmismo. De certeza não é isso que busco quando escrevo e quando faço minhas absrações. No entanto, o exercício de escrever, nos convida a analisar e reflectir os acontecimentos, passados, presentes até futuros, mesmo que, às vezes, suas interpretações sejam apenas compreensíveis a quem as escreve. Não se trata de um tarot literário, mas de observar a sociedade com lentes socio-antropológicas e uma perspectiva filosófica que transcenda os limites do óbvio.
Tenho receio pelo futuro. A semente do ódio foi plantada, e o terreno para sua germinação é mais do que fértil. Minhas preocupações e meus medos, se agravam ao perceber a apatia e a fraqueza de nossas instituições e daqueles que as dirigem, que parecem atreladas a interesses individuais, e incapazes de promover o diálogo, o entendimento e um meio termo ou superar as adversidades do agora. Essa fragilidade se reflecte no desprezo pelas autoridades e na deterioração do respeito aos símbolos nacionais.
O futuro, exigirá muito mais do que um governo seja ele de esquerda ou de dreita — independentemente de sua orientação ideológica ou partidária. Ele demandará que a sociedade reencontre sua identidade e reinicie o ciclo da reconstrução da moçambicanidade. Será necessário o esforço conjunto de milhões de braços para realizar um profundo trabalho de reconstrução sociológica, psicológica, antropológica, literária, histórica e filosófica. Mais do que narrar os acontecimentos, precisaremos curar as feridas do corpo e da alma, e de seguida desenhar um novo ideal de país.
O barril de pólvora está prestes a explodir, e a chaleira social encontra-se em ebulição. A tampa já está quase saltando. Se não encontrarmos uma válvula de escape, será o vapor que nos queimará sem dó nem piedade.
Na minha recente reflexão, intitulada - “Premissas para um Diálogo Nacional Profícuo”, mencionei que, “ainda não fomos capazes de criar um diálogo consistente, promover o perdão e a reconciliação”. Em vez disso, recorremos a tácticas ilusórias, enganando a nós mesmos e aos outros.
Escrevo estas palavras com um profundo pesar. Para além de Cabo Delgado que sofre com a insurgência, todo Moçambique está em chamas, caminhando para a barbárie. A questão inevitável é: será que precisaremos afundar ainda mais em um banho de sangue para que o luto assuma o controle de nossa história e de nossas vidas?
Finalizo com uma citação de Paulo Coelho: “Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor.” Parafraseando, acrescento em minhas palavras: quando a governação não é inclusiva, orientada a resultados e dialogante, o risco de criar fissuras e fragmentações sociais é imenso. O excluído, então, transforma-se em parte de um problema gerado e perpetuado pela própria má governação.
Disse!!!
Tenho estado a pensar nos últimos tempos, e a conversar comigo mesmo e com alguns interlocutores do meu tabuleiro de xadrez, sobre o estágio da nossa governação, no concernente a existência ou não de um programa integrado, integral e compreensivo de governação.
Por governação, entendo, e quero dizer, a maneira ou abordagem que diversas instituições e pessoas da esfera estatal, pública e privada se conectam entre si e com outros actores a nível nacional e internacional para promover o bem-estar social, político, económico, religioso, etc., do país. Gostaria aqui de ressaltar a componente ou dimensão social do bem-estar colectivo, pois entendo que tem sido negligenciada por décadas.
Noto, (talvez erradamente) com alguma, aliás muita preocupação, a falta de clareza e até falta de um programa de governação responsivo e alinhado às demandas sociais. Um programa dialogante e atrelado em premissas do todo. Chamarei a este emaranhado de parágrafos de Pergaminhos: Por uma Epistemologia da Governação.
Pensei em chamar de Tratado Epistemológico para a Governação, mas um tratado, na sua essência e composição exigiria um exercício mais apurado e minucioso para a sua elaboração.
Nestes diálogos com as peças do meu tabuleiro, a primeira coisa que me ocorreu, e que não é novidade nem para o cidadão ordinário, nem para os governantes e tampouco para os estudiosos da governação, foi o facto de termos no país, uma síndrome crónica de descontinuidade processual e ausência de um compromisso tácito com a causa e acção governativa.
Em outras palavras, experimentamos a formação de diferentes governos nas últimas 4 ou 5 décadas (por sinal governos do mesmo partido), facto este que per si poderia ser sinal de alguma estabilidade e continuidade. O denominador comum nessas décadas foi o de cada governo adoptar uma linha discursiva e tentar deixar a sua marca própria, não se importando com as feridas e cicatrizes deixadas.
Ressaltam a priori, o desinvestimento na educação pública - área basilar para o progresso de toda e qualquer sociedade que se pretende próspera; um sistema de saúde moribundo e sem capacidade de acompanhar a situação do país; um sistema judicial com amarras e a reboque do executivo; desigualdades sociais gritantes e um grande fosso entre ricos e pobres - onde produzimos nos últimos tempos, muitos falsos ricos e milhões de pobres verdadeiros - (autênticas elites que se julgam ricas pela simples ideia andarem pelos ares em voos executivos, alguns pagos do erário público, ou por terra com carros de luxo em estradas mal conservadas.
Além deste fosso tremendo, fomos incapazes de produzir um discurso coerente, aglutinador e inter-geracional; também, não fomos capazes, enquanto país e enquanto cidadãos, de criar um distintivo, uma identidade e uma razão para lutarmos juntos. Por conseguinte, o que deveria ser um legado de fim de mandato torna-se, quase sempre, um grande erro e um grande fardo para o povo.
Nestes quase 50 anos entendidos num quadro contextual específico e respeitando as adversidades de cada época e ciclo de governação, tivemos momentos de exaltação e de união enquanto país e povo, todavia paulatinamente fomos permitindo que o espírito individualista, ambicioso e o ganancioso cavassem o sepulcro e enterrassem os nossos sonhos enquanto nação ainda em formação.
A incapacidade de se criar um sonho, matou a capacidade de sonhar um só Moçambique para todos; hoje, nos comportamos como autênticos visitantes e peregrinos no nosso próprio país, sem compromisso e sem interesse no devir; somos hoje, uma sombra da geração independentista que sonhou, lutou e até logrou alguns louros. Somos, tristemente, parte da geração de filhos de Moçambique que se sente traída, frustrada e que deseja emigrar e trabalhar na terra do colono branco que outrora a oprimira, em detrimento do colono preto que outrora a libertara mas que agora a asfixia.
De ciclos em ciclos, assistimos progressivamente a sedimentação e institucionalização da corrupção que escangalha, descaracteriza e putrefaz a nossa máquina estatal, as nossas instituições e os nossos quadros “deformados”.
Nós, enquanto classe académica, temos a nossa responsabilidade nisso, pois nos afastamos da nossa função de pensar, reflectir, criticar e construir novas narrativas, novas realidades e novos sonhos; uns afastaram-se por medo, outros por fome, outros ainda por cobardia e comodismo. Em boa verdade, nos demitidos e “desistimos” deste Moçambique; nós nos permitimos capturar pelas redes de pesca e anzóis que alguém lançou.
O escrito que aqui proponho não tem como objectivo o levantamento de problemas. Esse exercício é recorrente e figura em todos os mapas, planos, directivas, relatórios, reflexões, discursos dos últimos 49 anos.
Falar da paz, reconciliação nacional, luta contra pobreza absoluta, melhoria da educação, da saúde, da nutrição, das infraestruturas, da agricultura, da segurança, do sistema judicial, etc., num quadro de aparente demissão das instituições, soará a uma autêntica bazófia.
Estudar a genealogia da árvore governativa e tentar discutir a raiz dos nossos problemas faz-se necessário e premente antes de todo e qualquer exercício de ordem político, ideológica, doutrinária e partidária. Essa é a raiz que alimenta a espinha dorsal do país e faz correr seiva nos quatro pontos cardinais do Rovuma ao Maputo e do Zumbo ao Índico.
Quer me parecer, muito particularmente, que não é uma questão simplista de termos de problematizar nomes deste ou daquele candidato para nos liderar. É sim uma questão de se lançar uma reflexão nacional verdadeira, e discutir ideias sobre a governação; caminhos para uma boa governação, construção de um ideal nacional com instituições e pessoas fortes. Acima de tudo, precisamos de discernimento e honestidade para assumir que estamos à beira do abismo com eventos como o conflito que grassa Cabo Delgado, pobreza generalizada, corrupção endêmica, segurança pública em colapso, descrédito e descrença do maior e mais valioso recurso do país - o Povo. Último e não menos importante - falta de coragem para dar mote a nova era de reconstrução do país.
A Epistemologia da Governação pressupõe antes de tudo a assunção da crise que insistimos em esconder debaixo do tapete. Não podemos continuar a fingir que estamos bem; ao abono da verdade, até quem governa sabe que não estamos. As narrativas de ontem já não produzem o efeito desejado; é preciso actualizá-las e ajustá-las ao contexto. O povo, a sociedade, os cidadãos em particular são movidos por narrativas, projectos e sonhos e não pela falsa ilusão de riqueza e aparente bem-estar.
Abandonemos a ideia e crença instituída em que os pobres se envergonham de serem pobres e humildes e os ricos orgulham-se da sua soberba, arrogância e prepotência.
Lancemos um diálogo aberto constante entre nós, onde o povo volte a ser centro da ação governativa e, de forma eficaz e realista vejamos reflectidos seus anseios e suas preocupações nos planos de governação.
Planifiquemos de forma inclusiva, com horizontes temporais e espaciais mais realísticos ao invés das falaciosas ilusões de 5-10 anos. Quem vier, ao fim de cada ciclo, de onde vier e como vier, deve assumir uma agenda nacional e um compromisso geracional.
Se depois de quase meio século disto, continuamos a brincar com a vontade do povo, a iludir o povo, e a matar seus mais profundos sonhos de um Moçambique melhor e para todos, que tenhamos coragem para aceitar as consequências deste e de outros actos.
E porque não encerrar com uma citação que muito inspira e que permanece actual em vários contextos: “O que espanta não é a loucura que vivemos, mas a mediocridade dessa loucura. O que nos dói não é o futuro que não conhecemos, mas o presente que não reconhecemos.” – Mia Couto
Por: Hélio Tiago Guiliche (Filósofo)
Quem somos nós?
Somos o povo. O povo deste país baptizado de Pérola do Índico.
Um povo forte, resiliente, porém cansado e talvez agastado com algumas (na verdade, muitas coisas) que não caberão neste manifesto. Somos o povo deste Moçambique que nos foi dado como pátria, e posteriormente nos ensinaram a amá-la.
A nossa formação política é a moçambicanidade que sente todos os dias, de sol a sol, a falta de comida, transporte, medicamentos, livros, escolas, segurança, até começa a faltar algum respeito e dignidade.
É nosso desejo enquanto povo, que o nosso manifesto chegue às mãos daqueles que detém poder e que irão governar o nosso país. No início, chegamos a pensar e a acreditar que o poder reside em nós, mas o tempo tem se encarregado de mostrar que houve uma mudança de direcção, e que, a demissão do povo outrora anunciada, é uma realidade factual. Se não houve total mudança, parece estar em curso e, a passos galopantes.
Pode parecer, à primeira vista, um manifesto romântico, e talvez o seja. Queremos neste curto documento influenciar os políticos do nosso belo e vasto país e aos homens de boa vontade. Fazemos por amor a causa nacional e puro patriotismo; porque temos ainda aquela réstia de esperança; porque vivem e ecoam em nós os ensinamentos do nosso Marechal Samora Moisés Machel.
Na carta apelidada de Carta ao Pai Natal que religiosamente publico no mês de Dezembro, tento lançar um olhar sobre a nossa sociedade, nossa vida política, nossa governação, nossos pecados e nossos legados. E quanto mais cartas escrevo, mais vontade de continuar a minha radiografia social e política. Socorri-me de algumas cartas já publicadas, para emprestar alguns pontos ao nosso manifesto.
Uso aqui, o termo “nosso” ainda que, sem permissão dos cerca de 33 milhões de Moçambicanos que vivem um dia-a-dia caracterizado por lutas frenéticas para vencer a pobreza extrema e carência dos bens mais básicos para uma vida condigna; bens inerentes ao que chamamos de dignidade humana e bem-estar social. Entendo que cada um deles (dos moçambicanos) irá se rever no que aqui apresentamos.
A pobreza ainda grassa o nosso país e são aos milhões os moçambicanos privados do básico e do mínimo nível calórico e proteico necessário para que haja um funcionamento normal e vital – (actualmente consta que cerca de 3,3 M de moçambicanos estão em crise de escassez alimentar e deficiência nutricional). Milhões de moçambicanos que não tem acesso a água potável e ao saneamento seguro; enfim, são mesmo aos milhões que não tem educação formal, serviços básicos de saúde, transporte e muito mais.
O nosso manifesto não é e nem deve ser confundido com um peditório. Não achamos que devemos pedir, o que deveria ser nosso por direito.
É um grito dos menos favorecidos; um grito por mais segurança, mais justiça social, mais redistribuição equitativa da riqueza, e um grito por mais respeito pela pessoa humana.
O período que o país vive, é marcado por uma efervescência política e social típica de época eleitoral – talvez o período mais áureo depois das primeiras eleições que experimentamos enquanto país ensaísta do modelo democrático – falo das eleições de 1994.
A efervescência política é, também, caracterizada pelas movimentações partidárias e dos seus candidatos, seja em ações, seja em intervenções e aparições públicas – e o denominador comum é a conquista do eleitorado e do seu valioso voto. A persuasão e a caça ao voto alias dominam os holofotes e a agenda actual.
Nesta época somos todos povo, entendemos os problemas do povo, vivemos como o povo, compadecemo-nos com o sofrimento do povo, e fingimos entender o que o povo pede.
Mas e depois?
Terminada a azafama, contados os votos e publicados os resultados finais, vivemos mais do mesmo: tomada de posse, formação do governo, distribuição de posições e a corrida desenfreada ao tacho, que parece não ser pouco. Em muito pouco tempo, esquecem-se que pretenderam e quiseram ser povo de ocasião; as andanças e passeatas com povo, são feitas de forma diferente, com cordões militares e escoltas intermináveis. Porque o povo que conferiu poder aos dirigentes, é, já nocivo e pode ser uma ameaça à integridade dos políticos, é imperioso proteger-se dele em nome da segurança, do protocolo e de toda culpa que carregam enquanto gestores da coisa pública. Poderia acrescentar que há medo de aproximação do povo, um medo causado pelo peso na consciência devido a má gestão da coisa pública, corrupção, nepotismo, clientelismo e putrefação da máquina estatal.
Neste vaivém todo, nós “o povo”, com ou sem filiação político-partidária, experimentamos ciclicamente, promessas cuja materialização quase sempre se esbarra numa realidade cada vez mais asfixiante – como algumas vitórias de certos pleitos.
Por um lado, o desejo de ver mudanças na vida da sociedade, aliado a esperança e a fé quase inabalável de fazer desenvolver Moçambique, e por outro, a ideia e desejo de ver alguma alternância governativa, fazem com que se deposite o maior recurso enquanto eleitores (o voto) neste ou naquele candidato. E porque não há almoços grátis, os shows, marchas de campanha, almoços e jantares beneficentes, camisetes, bonés, capulanas, etc., têm um preço: cinco ou mais anos de (des) governo, de neocolonialismo nacional, de exploração do homem pelo homem, de empobrecimento programado e progressivo da sociedade, com a degradação do sistema de educação e destruição do sistema de saúde.
Assim caminharemos rumo a celebração dos cinquenta anos da nossa mítica noite na Machava – o 25 de Junho de 1975.
O nosso manifesto é político, social, económico e acima de tudo humanístico. É de simples compreensão, alcance e materialização. Não obedece a uma estrutura metodológica convencional e não apresenta pontos formais e estilísticos que os partidos políticos concebem depois de longas reuniões de discussão e deliberação. O nosso manifesto não apresenta páginas bonitas, mas espera que se possa traduzir em páginas bonitas para o presente e futuro do nosso país.
Começamos por pedir mais empatia com povo – somos 33 milhões hoje, e amanhã seremos muito mais. Se os modelos governativos, as políticas públicas, leis e instrumentos de governação não levarem em consideração as demandas e as reais necessidades do povo, seremos uma eterna promessa enquanto país. Seremos uma página nos anais da história; um país lembrado como um exemplo perfeito da maldição de recursos, da má governação e da fraca ou inexistente vontade política. Talvez até a literatura futura irá catalogar-nos como um exemplo de despesismo e de produção de novos ricos num contexto extremamente pobre.
O nosso manifesto não pede promessas nem compromissos vazios; pede verdade e responsabilidade; pede que se pense no povo antes de tudo e que se leve o povo para o centro da reflexão. O nosso manifesto diz e acredita que, todos juntos podemos construir um Moçambique forte, próspero e seguro – Um Moçambique em que os seus filhos não sejam forçados a migrar por desgosto e por descontentamento causado pela ausência de oportunidades e pelas más condições criadas ao longo de décadas, por uma governação que tarda em acertar o relógio; Um Moçambique em que àqueles que optem por ficar, não fiquem por falta de alternativas, mas por um desejo de ser mais um braço entre os milhões e uma só força que nos vai ajudar a vencer todas as adversidades.
Não deixemos Moçambique transformado em um meme, numa caricatura e numa sátira.
Por: Hélio Guiliche (Filósofo)
Tem sido assunto candente nos últimos dias, a avalanche crítica por parte de um segmento dos fazedores de difusores de opinião, o facto de alguns membros de organizações da sociedade civil figurarem nas listas de candidatos a deputados a Assembleia da República para a próxima legislatura.
Entre argumentos e contra-argumentos, vai se sedimentando uma tentativa de elitização da participação na política activa, uma posição e um espírito pouco dialogante e pouco tolerante por parte da ala castrense de fazedores da política de estômago. Na verdade, a luta para desacreditar as Organizações da Sociedade Civil em Moçambique não é de hoje. Há uma luta titânica para se provar que elas são organizações que defendem interesses externos e agendas ocultas.
As narrativas depreciadoras contra as organizações da sociedade civil, não são novas no país e são um fenómeno que tende a solidificar-se e a dominar certos debates de (des) informação. Elas consubstanciam-se na sua forma mais crua de fechamento do espaço cívico e de todas as liberdades a ele inerentes - (liberdade de associação, de expressão, de movimento, de imprensa, de religião, etc). Subentendo eu, que é um lugar propício para o florescimento de uma nova aurora social, política e intelectual fecunda. Fechar o espaço cívico é asfixiar e amputar o direito de sermos nós mesmos e realizar nossos desígnios enquanto cidadãos emprestados à polis.
Quando escolhas e opções político-partidárias diferentes tornam-se alvo de repúdio e combate, a nossa civilização decresce degraus qualitativos. O pensar diferente do ordinário e do comumente aceite, não deve ser visto como ultraje a ordem instituída, mas sim como mais um ingrediente para a evolução da interação humana dentro de um quadro social e político.
Tivemos num passado recente, alguns académicos e comentadores/ analistas políticos que decidiram emprestar seus conhecimentos à política activa, apresentando-se com cores e ideias de outros partidos e agremiações políticas, tentando dar seu contributo ao debate de ideias em prol de um Moçambique mais heterogéneo e pluralista. E se não constituiu problema o facto de académicos terem enveredado pelos pergaminhos da política, não deveria sê-lo agora; pelo menos não na dimensão que se pretende dar ao fenómeno que está ecoar a onda de activistas que decidiram emprestar seu saber e seu conhecimento a política activa.
Socorro-me da definição clássica de Aristóteles, segundo a qual o Homem é, por natureza, um animal político e social. Político porque vive inserido na polis e faz parte dos processos de discussão e tomada de decisão – passa de simples indivíduo e torna-se um cidadão, por inerência a vida dentro da polis. Social porque uma vez inserido numa sociedade, ele desenvolve laços naturais de socialiabilidade que por seu turno também a impingem a se distanciar da mesma. Mais tarde, esta dinâmica é mais desenvolvida e explicada por Immanuel Kant com a sua ideia de Insociável Sociabilidade - conceito que descreve a tensão entre o indivíduo e a sociedade. Por um lado, os seres humanos têm uma inclinação natural para a cooperação e a vida em comunidade. Por outro lado, também possuem características egoístas e competitivas. Essa tensão entre o desejo de se unir e a necessidade de se proteger cria um ambiente propício para o desenvolvimento cultural, tecnológico e social.
Com isto, quero deixar o meu entendimento e o meu contributo em torno do espaço político activo. Não nos enganemos nem tentemos equivocar-nos que o exercício político activo é apanágio de alguns, supostamente mais experimentados, capacitados e dotados. Tampouco, deixemos de sonhar a ideia de termos um debate político aberto, vibrante e profícuo, nem uma Assembleia da República mais pluralista, de discussão de ideias progressistas, e não apenas um lugar para apupos, assobios e palmas.
O espaço político pertence a todos nós sem excepção; abarca o activismo social e o exercício político activo; Ele existe em si, e é alimentado por indivíduos que se doam apaixonada ou desapaixonadamente, interessada ou desinteressadamente, e perseguem um ideal comum ou individual; uns por egoísmo e outros por altruísmo. É uma conquista secular para a humanidade e relativamente nova para nós enquanto país; deve ser cultivada, respeitada e preservada por todos e por cada um de nós.
Se académicos, podem emprestar-se a política e colocarem sua ciência a serviço da sociedade, entendo eu, que outros actores que possam agregar valor ao debate, a discussão e a construção de um Moçambique próspero e inclusivo sejam igualmente bem-vindos.
A política não pode nem deve ser elitista.
Disse!!!
Por: Hélio Guiliche
Foi manchete nas últimas semanas e até meses, e dominou vários debates públicos em círculos de opinião, a questão da sucessão dentro do partido FRELIMO, bem como sobre quem incidiria a escolha do próximo candidato às eleições de Outubro próximo.
Na reunião dos ACCLIN que antecedeu a sessão ordinária do Comité Central do Partido FRELIMO, José Óscar Monteiro, quadro sénior, ideólogo da FRELIMO e veterano da luta de Libertação de Moçambique, com a verticalidade e frontalidade habitual deu mote a um assunto que a todos preocupava, mas poucos tinham coragem de abordar. Ao levantar de forma estilística a imagem do elefante na sala, abriu uma nova página na agenda do dia – era inevitável não se falar do tema da sucessão.
No épico “conclave” extraordinário que durou três dias, contra tudo e todos, emergiu uma figura inesperada. Surgiu de uma lista restrita proposta por um núcleo duro, e que poucos deram a devida relevância na altura – chamarei a esta figura, de forma analógica de “Furacão Chapo”.
Dos retiros hermenêuticos que realizei para tentar perceber o outro lado do fenómeno, permiti-me acompanhar alguns debates a vários níveis, desde os órgãos de comunicação como televisão, rádio e jornais às redes sociais – estas últimas com uma quantidade anormal de análises. Neste exercício pude encontrar uma nota e um denominador comum – uma tentativa de catalogar e rotular o candidato escrutinado e relacionar com os tão almejados ventos da mudança. E dessa constatação formulei algumas perguntas que orientaram a reflexão.
Afinal de contas, de que mudança tanto se fala? Do novo paradigma governativo? Da tomada de consciência e atitude dos jovens quadros do partido? Ou apenas e simplesmente da mudança de um candidato mais velho por outro mais jovem?
Que nuances essa propalada e celebrada mudança carrega consigo?
Sobre a matemática e racionalidade dos votos, prefiro guardar para uma outra reflexão, sob o risco de desfocar-me do cerne da reflexão.
Ao anúncio formal do candidato - “Furacão Chapo”, seguiram-se dias de azafama e muita euforia no seio de alguma franja da sociedade. Seguiu-se igualmente aquele processo de catalogar e curricular o novo candidato, vasculhando um pouco a sua história, seu percurso, ligações, conexões, desconexões e tudo o que pudesse conferir alguma autoridade e legitimidade para dizer que o conhecemos minimamente.
O até então, apenas Governador da majestosa província de Inhambane (que ostenta o nome de Terra da Boa Gente), surge como o escolhido, e é já apelidado e adjectivado por um grupo de analistas e comentadores de “salvador e portador de esperança”. Os adjectivos surgem por um lado devido ao facto de Daniel Chapo ter infringido uma pesada e inesperada derrota ao tal “colosso indesejado”, conhecido como alguém de matriz autoritária, pouco ávido a discussões e de poucos consensos; e por outro lado, porque a eleição marca um ponto de viragem histórica em relação as últimas tendências percebidas como semi-autoritárias, pouco dialogantes, pouco transparentes e pouco democráticas no seio do partido. Um ponto de viragem e de advocacia dos jovens quadros do partido que deram um murro na mesa – os mesmos quadros que foram criticados e acusados de forma veemente de pouco ou nada fazer para reverter a situação actual.
A questão paradigmática que aqui tento trazer não é tanto que descrever o que aconteceu no conclave da Matola, mesmo porque não teria novidade nenhuma nem propriedade alguma para trazer seja lá o que fosse. Mas, como moçambicano, filho desta terra e que ama o seu país de forma profunda, me propus escrever e oferecer este texto onde discorro sobre a possível via sacra do conclave da Matola ao acto de governar. De como pode este processo ser capitalizado para que o Sol de Junho recupere o brilho que vem perdendo. Como é que esta viragem pode significar a recuperação ou reinvenção da mística de setenta e cinco.
A nossa reflexão como sociedade, não deve cingir-se a caras nem a coroas, tampouco a teorias sobre etnicidade, religiosidade, racialismo, ou seja, lá que variável a equação política queira tomar. Não pode ter como pressupostos a personificação de um indivíduo seja ele do Sul, do Centro ou do Norte, mas sim olhar para Moçambique como um todo globalizante, seus povos, suas pessoas, suas matrizes culturais e sociais, seus defeitos e suas qualidades, seus problemas e soluções.
A eleição de Daniel Chapo a candidato, não encerra uma discussão. Na verdade, a meu ver, reinicia um debate já antigo sobre a necessidade do partido que governa o país se ajustar às novas tendências, aos novos tempos, e retocar ligeiramente a narrativa já desgastada sobre a libertação do jugo colonial e descolonização, sobre o conflito dos 16 anos – essa narrativa desgastou-se e fatigou até aos que a compraram, e pouco convence e comove o eleitorado mais novo.
Chapo herda enquanto candidato, um partido de certa forma fragmentado e com tendência de clivagens que podem abalar a estabilidade; um partido com algumas forças internas a andarem em contramão guiadas por interesses particulares. Pesa sobre ele, o fardo de ser o candidato sem o tal traquejo e preparo ideológico e até rotação governativa de nível central e que ousou derrotar um peso pesado. Mas a democracia é isto mesmo: entrar ao sufrágio e saber que todos resultados são passiveis e possíveis.
Ser candidato pela FRELIMO, num momento em que a oposição se encontra num sono profundo, e de oposição só tem nome, confere uma vantagem competitiva a Chapo; confere uma vitoria quase certa em Outubro (se retumbante, esmagadora e asfixiadora ou não, isso as urnas irão dizer).
Chapo irá, caso se confirme a premissa, enfrentar três grandes desafios:
O primeiro grande desafio que enfrentará enquanto candidato será o de gerir as várias animosidades das chamadas alas que foram sedimentando sua posição no xadrez interno e reclamando cada uma o seu protagonismo e no acesso ao tacho e a riqueza do país. Sendo ele novo em idade e em experiência político-partidária deverá se dar tempo de moldar-se num processo simultâneo de aprender fazendo.
O segundo desafio, será o de se tornar o presidente de facto e de jure do partido e ter poderes suficientes e liberdade para ser ele mesmo – claro que sabendo respeitar limites, os estatutos e os demais instrumentos do partido. Aqui terá um árduo trabalho de resgate da imagem do partido, do orgulho da onda vermelha, recuperação do eleitorado descontente e frustrado e, conduzir um processo interno de reconciliação e valorização da história do partido, dos seus ideais e legados.
O terceiro e último desafio que vislumbro, e talvez o mais importante será o de governar Moçambique. Governar um país vasto e com muitos problemas que não foram devidamente acautelados no passado (pobreza generalizada, a segurança alimentar, choques climáticos, educação decadente, saúde doentia, o dossier das dívidas ocultas e de outras que poderão surgir, a insurgência em Cabo Delgado, a corrupção no aparelho do estado, nepotismo, segurança pública, a segurança do país, a defesa da nossa soberania, etc).
Preparando o voo, para aterrar de forma segura e sem estrondo, digo de forma objectiva e sem rodeios: onde muitos veem Chapo como um herói e salvador, eu vejo como produto e consequência de uma circunstância, uma vez que a escolha dele não se baseou numa prerrogativa nem numa premissa previamente estudada e acordada. Dizendo por outras palavras, subassumo que Chapo não terá desenhado, apresentado nem submetido uma manifestação de interesse para o efeito.
A circunstância a que me refiro é daquelas conspirações difíceis de explicar; e pode ter um final feliz se as peças do xadrez se assentarem no tabuleiro sem pressões internas e externas. Enquanto governante, deverá saber ser lobo em alguns momentos e ovelha noutros.
Chapo tem um desafio à altura da sua altura _ Amar Moçambique em primeiro lugar para poder governar com sabedoria e ponderação. É meu (e talvez de muitos) o ensejo que esta caminhada seja gloriosa. Lembrar que apesar de ter espinhos, a rosa não perde a sua beleza – este é o Moçambique que Chapo vai herdar em breve. Terá de aprender a lidar com nuances e vicissitudes de vária ordem.
Homens e instituições fortes podem fazer Estados fortes e prósperos.
Disse!!!
Por: Hélio Guiliche
Começo este pequeno rabisco com um trecho da música do renomado grupo moçambicano de HIPHOP – Gpro-Fam. Um clássico com mais de 20 anos, e que permanece actual pela sua forte mensagem de caris socio-político e pela futurologia que estes rapazes emprestaram ao momento.
Com o título (País da Marrabenta), a música diz logo no início: “Passe o tempo que passar, um nome ficará eternamente gravado na história de Moçambique – O Nome de Samora Moisés Machel (…)
O País da Marrabenta vai de mal a pior, mas paciência Moçambicanos tem de melhor”.
A música é uma clara alusão ao Patriotismo de Samora Machel, figura incontornável do nosso Moçambique; e também ao espírito de paciência e optimismo do povo Moçambicano.
Terminado o ciclo governativo liderado pelo Presidente Armando Guebuza, inaugurou-se um novo ciclo; ciclo este sob liderança de Filipe Jacinto Nyusi. Diga-se, um ciclo inaugurado com um tema antigo e candente, que ocupa lugar de destaque dentro e fora do país, e domina a agenda do dia – as dívidas ocultas. Dívidas estas que colocaram o país numa situação degradante e com um descrédito internacional nunca antes visto.
A já difícil vida da população da Pérola do Índico piorou exponencialmente; a retirada do apoio dos principais financiadores do Orçamento Geral do Estado colocou o país numa situação bem mais difícil, com contas por pagar e processos internacionais por gerir; a nova carga fiscal, o agravamento dos preços de produtos básicos começaram a asfixiar o bolso do cidadão ordinário que já vivia em situação contingencial.
A escolha de Filipe Jacinto Nyusi para candidato pelo partido do batuque e da maçaroca, colocou imediatamente a máquina de propaganda a trabalhar dia e noite – era importante garantir que a socialização acontecesse dentro do tempo e que a aceitação popular fosse uma certeza inequívoca.
Gerou-se uma grande expectativa em torno destes dois mandatos. Dez anos em que a popularidade chegou a ser das mais altas no início, muito por conta do seu discurso incisivo e arrebatador da tomada de posse e, pragmatismo promissor na formação do seu primeiro governo. Mas a popularidade foi se enfraquecendo a medida em que sua governação dava marcas de pouca assertividade.
A forte, audaz e inteligente a máquina de campanha do seu partido fez milhões de moçambicanos, do Rovuma ao Maputo e do Zumbo ao Índico cantarem, dançarem e acreditarem que a confiança depositada brotaria em mudanças práticas e visíveis para o país, e que de facto o país tinha tudo para dar certo.
Confesso que para mim, particularmente as duas campanhas destes dois mandatos foram das mais bem conseguidas em termos de envolvimento e cadência – parecia haver uma sintonia inegável entre as músicas e as mensagens de prosperidade e de confiança. Por isso escutamos, cantamos e dançamos todos o “Eu confio em ti Nyusi”.
Nyusi chega ao poder com muita responsabilidade enquanto estadista; carrega um fardo que ele mesmo ajudou a encher enquanto Ministro da Defesa Nacional. Apresenta-se como um Presidente de ruptura com o guebuzismo, e auto proclama-se empregado do povo – para o delírio de milhões de moçambicanos que se sentiram patrões do Presidente.
Vivemos, nos últimos dez anos, dois mandatos de muita sagacidade governativa com muitas experiências para mais tarde lembrar e tirar as devidas ilações.
A meias com um fardo pesadíssimo e super delicado – das ocultas, sua governação foi também marcada pelo recrudescimento da insurgência que grassa Cabo Delgado desde 2017, pela passagem de ciclones altamente destrutivos e mortais, sofisticação do crime organizado, aprimoramento das redes de raptos e pela carestia do nível de vida no seu todo. Estes são apenas alguns dos aspectos que me ressaltam trazer em revista.
Cinco anos mais tarde, a máquina brindou o eleitorado com mais um hit forte e envolvente - “É contigo que dá certo”. É o último mandato e, era preciso corrigir e melhorar o que não correu bem no primeiro mandato. Mas entre a teoria e prática há uma distância considerável.
No ano em que mais um reinado chega ao fim, penso que como sociedade devemos lançar um debate público, sincero e honesto sobre o actual estágio do nosso país; sobre o país que queremos deixar para os nossos filhos e netos. Precisamos de um manifesto social que deve guiar todo e qualquer governante que pretenda governar e promover o desenvolvimento, a justiça social, os direitos humanos e o respeito pela dignidade da pessoa. Este manifesto deve necessariamente conter as demandas, os anseios e sonhos deste povo amordaçado, sofrido, porém resiliente.
Na hora do adeus, podemos dizer que foram dez anos em que aprendemos a adjectivar e a positivar o Estado Geral da Nação; tivemos muita melodia, muita dança e poucos resultados governativos.
No “Eu confio em ti”, o povo até chegou a confiar em ti e no seu governo Senhor Presidente. Mas no “É contigo que dá certo”, parece que deu tudo, menos certo.
Por: Hélio Guiliche
Escrevi e publiquei recentemente dois artigos de opinião. Um tinha como título (IN) Dependência: Não se esqueçam de voltar e, o outro, A Demissão do Povo. No primeiro, tentei fazer um chamamento aos libertadores de ontem, por alguns considerados opressores de hoje; conforme pode ler-se num dos parágrafos do artigo: “Os nossos libertadores, os nossos heróis e os nossos referenciais de luta e verticalidade foram se transfigurando ao sabor do vento, e alguns deles viraram, nossos opressores. Nasceram elites negras, que se esqueceram dos ideais da revolução e se preocuparam em vestir a máscara de ovelha em corpo de lobo. Os nossos libertadores, tornaram-se obcecados pelo poder e pela posição de destaque no banquete pós-independência. Recriamos e personificamos a aquilo a que Frantz Fanon designou de “Pele Negra e Máscaras Brancas”, onde pretos oprimem outros pretos e se acham dignos para o fazer em virtude do tempo emprestado na mocidade e juventude para que fossemos hoje o país livre que somos. E Será que realmente somos?”
No segundo, A Demissão do Povo, iniciei aludindo o facto de o povo ter sido demitido. Em diálogo aceso entre eu, a folha e a esferográfica, não sabia se dizia que o povo se demitiu ou se o povo foi demitido.
Disse: “O povo foi demitido do seu papel de fiscalizador. Foi demitido de monitorar, de reclamar, de pedir para ter dignidade mínima. (…) A pobreza generalizou, as assimetrias agudizaram, a corrupção institucionalizou-se, as liberdades reduziram-se, o espaço cívico afunilou-se, e o povo começou a sentir-se estranho na sua própria terra.”
Longe de pretender fazer futurologia, o alcance era lançar uma reflexão em torno do país que estamos a (des) construir, e perspectivar o amanhã que queremos para nós. Revisitei estes dois textos e vi neles alguma actualidade. Encontrei neles o mote para escrever este artigo que baptizei de resignificar Moçambique. Por resignificar entenda-se a necessidade de dar um novo significado ou recuperar a mística que com o tempo fomos perdendo – A mística da moçambicanidade.
Ouvi, recentemente, a mamã Graça Machel, numa das suas aparições públicas – se dirigir ao povo no geral, mas focando mais à juventude como alvo. Um dos pontos que mais chamou atenção foi quando ela disse: “Jovens, não se sentem em cima do legado de Samora (...) Não deixem o legado deste grande homem se perder.” Entendi como um recado, como uma chamada à acção e um convite à reflexão sobre o legado do Primeiro Presidente de Moçambique independente; à preservação e seguimento do legado deste estandarte da nossa moçambicanidade.
Na cerimónia de outorga do Doutoramento Honoris Causa à renomada e consagrada escritora e activista social – Paulina Chiziane, durante a sua alocução disse em viva voz, socorrendo-se do famoso adágio popular - “A boa fruta se conhece pela sua árvore”; a fruta que temos hoje é azeda, é tirana. O que se passa com a árvore então? E quem é a árvore? – indagou.
A árvore somos nós os mais velhos; somos nós que dirigimos o estado, as instituições, as religiões e a sociedade. E se essa geração esta assim, é porque alguma coisa está errada na árvore. - Retorquiu!
Poderia trazer algumas vozes que ecoam de forma audível entre os mais comprometidos com o projecto de dar um rumo ao país. Vozes de valor agregado para o debate da construção de uma nação em que os valores sociais são mais importantes que todos restantes. Severino Ngoenha, Adriano Nuvunga, Óscar Monteiro, Teodoro Waty, Elísio Macamo, Mia Couto, e outros tantos nomes que não trarei por economia de tempo e espaço, são unanimes em afirmar que precisamos repensar Moçambique e dar um significado a luta pela independência e construção do Estado-nação.
Urge pensar um país mais inclusivo, onde as liberdades individuais e colectivas sejam respeitadas. Um país com independência das instituições, dos três poderes e com uma máquina estatal mais capaz, progressista, comprometida e livre de amarras político-partidárias. Um país em que a corrupção, o despesismo e o nepotismo não figurem entre as primeiras palavras do dicionário social e político.
Precisamos criar uma narrativa para o presente e que possa criar bases de um futuro onde a moçambicanidade possa rimar com a integridade. Uma narrativa que se desconstrói a ideia de existência de sucesso sem trabalho, sem mérito e sem sacrifício. Uma narrativa que coloca o cidadão, e a pessoa humana no centro de todo o processo governativo e como elemento primordial para o desenvolvimento do país. Enfim, uma narrativa que o forte não é quem tem mais recursos e mais poder, mas aquele que pensa de forma mais inclusiva, englobante e acima de tudo nutre amor pelo país.
Precisamos igualmente de sedimentar o pluralismo na nossa sociedade; revigorar a unidade nacional e a aceitação do diferente, combatendo o divisionismo e o etnicismo. Uma sociedade em que os vários pensares confluem para a solidificação deste longo, contínuo e complexo processo da moçambicanização da nossa identidade, de edificação de bases fortes para uma governação forte, altruísta e progressista.
No país conhecido comummente como o país de Mondlane e Machel, onde as liberdades vem sendo sistematicamente reprimidas e asfixiadas, a dúvida é uma realidade não assumida e o medo tomou conta de vários sedimentos da sociedade.
Sim, temos medo de reivindicar o direito de sermos nós mesmos. Sentimento este que gera um questionamento sobre o nosso contributo social e humano para o país, e ao mesmo tempo convida-nos a abandonar esta longa noite escura que nos engole; noite esta caracterizada por discursos vazios, demagogias e descrédito sobre o nosso ser como país.
Agora temos dúvidas sobre a nossa gloriosa epopeia e medo de afirmar que Moçambique é dos Moçambicanos. Parafraseando Mia Couto: Há quem tenha medo que o próprio medo acabe. E eu acrescento, que há quem tenha medo de dormir e acordar sem personalidade jurídica.
A herança da violência do homem branco contra o homem preto – o chicote colonial -, não pode nem deve ser replicada pelas instituições de defesa nem pelos famosos esquadrões na sua mais crua forma de reprimir aquilo que julgávamos ter conquistado com a independência – a liberdade, o direito à autodeterminação e a participação no processo de construção de um estado-nação.
É meu entendimento, e talvez não apenas meu, que a bolha social da tolerância estoirou, e, é resultado de um acumular de situações que levaram anos e talvez décadas para se cristalizarem. Com ela (a bolha social), emergem e as ditas formas de ação popular punitiva e apelo a alternativa e a alternância, ainda que se subassuma que seria mais do mesmo. Nesta manifestação silenciosa, mas bastante ruidosa assistimos a segunda vaga da auto-demissão do povo.
Neste exercício de resignificar precisamos buscar as referências e as bases da criação do nosso Estado - O Estado que outrora foi motivo e objecto de orgulho e júbilo. Um estado onde o bem-estar social e o respeito pelas liberdades individuais e colectivas são respeitadas; onde a educação é um instrumento emancipador e não fonte de opressão e destruição, e onde os mais básicos serviços estejam disponíveis para a maioria.
Entre consonâncias e dissonâncias, uma coisa está a ganhar forma - há uma tentativa de busca incessante por um significado para a nossa existência como povo – a busca por um futuro melhor em que todos nos sintamos parte integral e integrante deste projecto chamado desenvolvimento.
No final o sonho de todos é apenas ter um Moçambique para todos.
Por: Hélio Guiliche