Director: Marcelo Mosse

Maputo -

Actualizado de Segunda a Sexta

BCI
terça-feira, 12 março 2019 13:24

Aprofundar a democracia na escola moçambicana

Escrito por

“Hoje estou aqui/ entre mártires e traidores/ entre bandidos e inocentes/ entre hipócritas e fariseus” (Vera Duarte, Esta canção desesperada)

 

Apaixonei-me à primeira vista pelo livro Repensar o Estado: para uma social-democracia da inovação logo que o vi, entre tantos, na prateleira de uma livraria, em Bragança, finais do ano passado. Comprei-o e passou a ser meu fiel companheiro de viagem e cabeceira.

 

A edição que tenho em mãos sai sob chancela da Círculo de Leitores, da autoria de Aghion, P. & Roulet, A. (2012), economistas franceses, tradução de Francisco Telhado, do original Repenser l’État: poer une social-démocratie de l’innovation (Éditions du Seuil et La République des Idées, 2011).

 

O livro que, em traços gerais, delineia “os contornos de um Estado repensado: Estado investidor, Estado regulador, Estado garante do contrato social e da democracia” (p.145) tem quatro capítulos, sendo o quarto Aprofundar a democracia (pp. 117-143). É nele que me baseio para tecer estas pequenas notas.

 

Não sendo cientista social, muito menos economista, este acto emana do exercício da cidadania, como os seus próprios autores testemunham, “a liberdade de consciência e de expressão, o confronto das ideias, a possibilidade de um debate contraditório, de pôr em causa um regime, ou até mesmo de derrubá-lo, fazem parte integrante da dignidade humana” (p.117).

 

O capítulo Aprofundar a democracia tem como principal linha de força a possibilidade de medição da democracia, assente, por sua vez, na democracia como indicador de crescimento, da liberdade, da criatividade e da corrupção. Nestes nós, a meu ver, podem tirar-se importantes lições para a escola moçambicana (uso o termo escola no sentido de educação), embora a reflexão original se refira aos países membros da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico), em especial a França.

 

Para atender às necessidades urgentes da nossa escola (nossa porque também faço parte dela, no dia-a-dia, na sala de aulas), entabulamos às premissas do capítulo em recensão, a liberdade, a criatividade e os valores morais que se querem cultivados em Moçambique. Alias, parecem esses fazer um entrosamento com a linha urdida por Aghion & Roulet.

 

Ao debruçar-se sobre a liberdade, Aghion & Roulet (2012:122) apontam “é um facto que as grandes invenções não se coadunam com o autoritarismo e a hierarquia” e parece essas práticas amararem a nossa escola ao marasmo a que se encontra. Como exemplo, os autores partilham:

 

Se Larry Page e Sergey Brin, estudantes em Stanford, puderam desenvolver conjuntamente, no âmbito do seu doutoramento, o que viria a ser o Google, foi porque tiveram toda a liberdade para escolher a pista que desejavam explorar e não receberam ordens dos seus «superiores» relativamente a escolha do tema da sua tese.

(Aghion & Roulet, 2012:123-124)

O autoritarismo e a hierarquia empurraram a nossa escola para o círculo do yes man: só a ideia do chefe vinga, só o chefe sabe, o chefe sabe tudo, só o chefe fala, o chefe fala tudo. Na nossa escola quem sabe ou fala mais que o chefe sofre sevícias. Reina, na nossa escola, o culto do silêncio.

 

O aluno da nossa escola não só não sabe ler e escrever, isso é de menos. O aluno da nossa escola é ensinado a ter medo do professor, a dizer o que o professor quer ouvir, a dizer direitinho ao pé da letra do apontamento. O aluno da nossa escola deve vestir-se bem e não superior ao professor, deve fazer a barba, o cabelo e as unhas, igual ao que o “regulamento” manda. Experimente furar a orelha!

 

O aluno da nossa escola é um mero reprodutor que não foi ensinado a transformar uma frase activa em passiva, a inverter o sujeito do objecto, a usar da recursividade proposta por N. Chomsky, porque o professor não disse assim. Da noite ao dia, estamos a formar autênticas multiplicadoras, caixas de ressonância, quando bem formadas.

 

O professor da nossa escola não fala em reuniões, não aponta erros e nem sabe dizer o que pensa em grupos de whatsapp institucionais com medo de não ser promovido ou ser despromovido.

 

A nossa escola devia ser o laboratório de ideias. Mas as ideias só nascem em espírito e ambiente livres: livres da burocracia excessiva, livres dos lambe-botas, livres dos chefes pro-adulação, livres da censura, livres do medo.

 

A nossa escola transformou-se em centro de imitação, “pelo contrário, nos setores de ponta, o crescimento das empresas baseia-se na inovação «na fronteira», que implica delegar pelo menos parte do poder decisório, de maneira a estimular a criatividade no seio da empresa” (Aghion & Roulet, 2012:124).

 

A criatividade só é possível onde não se tem medo de errar, onde não se tem medo de experimentar novas coisas, novos métodos, novas técnicas, na fronteira entre a realidade e a loucura. Este espaço parece cada vez mais longe da escola moçambicana.

 

A gritante falta de valores morais na sociedade moçambicana é, em grande medida, produto da nossa escola. Numa escola aonde a democracia não está aprofundada não se pode praticar os valores da tolerância, da escuta, do respeito, da cedência, do perdão, do amor ao próximo, da paz. E, em última instância, nesse ambiente não se pode exaltar a pátria.

 

A nossa escola inverteu os paradigmas: transformou nacionalistas em gatunos, dirigentes em corruptos. A mudança desse quadro, tal como Aghion & Roulet (2012:118) sugerem para uma economia de crescimento, parece estar no aprofundamento da democracia na nossa escola. E isto passa por: (i) um maior grau de democracia e descentralização na gestão da nossa escola – que, por sua vez, propicia a criatividade e o aparecimento de novos paradigmas; (ii) um sistema político mais democrático e menos corrupto, onde os lóbis exercem menos influência sobre os gestores da escola – o que dá lugar à inovação; e (iii) evitar comportamentos de favoritismo ou de clientelismo – o que impede que a escola seja tomada por interesses da casta dos gestores a base de favores e apetências pessoais.

 

Para fortalecer esse quadro de uma democracia aprofundada, para o qual a escola joga um fator determinante, Aghion & Roulet (2012:129) sugerem que os meios de comunicação social sejam suficientemente independentes para apontar o dedo a práticas políticas duvidosas ou abusivas e que se criem instituições adequadas e dotadas de meios suficientes para avaliar as políticas públicas de forma sistemática, independente e rigorosa.

 

Enfim, parece aprofundar a democracia na escola moçambicana ser o passo para o povo tomar o poder.

___________________________

[1] Linguista, escritor e docente.

 

Sir Motors

Ler 4955 vezes