Passam dois anos desde que um grupo supostamente composto por 30 homens armados com catanas e armas de fogo atacou, durante a madrugada do dia 05 de Outubro de 2017, postos policiais na Vila-Sede do distrito de Mocímboa da Praia, na província de Cabo Delgado, tendo resultado na morte de dois agentes da Polícia da República de Moçambique (PRM) e três membros do grupo, de acordo com a informação confirmada, na altura, pelo Comando Geral da Polícia.
Após o ataque, houve várias reacções, com destaque para o Comandante-Geral da PRM, Bernardino Rafael, que deu vários ultimatos ao grupo para que se entregasse. Aliás, Bernardino Rafael chegou a apresentar, no princípio dos ataques, alguns indivíduos de diferentes nacionalidades, como estando ligados ao fenómeno.
Na ocasião, Rafael estipulou um período de uma semana para que o grupo se entregasse, entretanto, isto não aconteceu e os ataques alastraram-se para os distritos de Nangade, Quissanga, Palma, Macomia, Muidumbe, Mecúfi e Meluco.
A par dos supostos autores apresentados por Bernardino Rafael, a detenção, em Setembro de 2018, do empresário sul-africano Andrew Hannekom, acusado de ser um dos responsáveis pela logística e financiamento dos insurgentes, levantou diversas questões na opinião pública. O indivíduo acabaria por perder a vida, em Janeiro deste ano, no Hospital Provincial de Pemba, supostamente vítima de envenenamento, deixando mistérios sobre sua personalidade, pois, o “dossier” foi tratado pelas entidades máximas dos dois países, tendo ficado “trancado a sete chaves”.
A outra individualidade que, durante este período, procurou a todo o custo tranquilizar e desdramatizar a situação foi o Ministro da Defesa Nacional (MDN), Atanásio M’tumuke, que sempre disse que tudo estava controlado. Entretanto, nas últimas semanas, o governante mudou de discurso, chegando a pedir ajuda externa para “eliminar todos os malfeitores (insurgentes)”.
A situação acentuou-se quando, nos últimos dias, bases das Forças de Defesa e Segurança (FDS) foram atacadas e mortos vários militares e civis nos distritos de Macomia e Mocímboa da Praia. Devido à situação, o Chefe de Estado e Comandante-em-Chefe das FDS, Filipe Nyusi, defendeu que “estamos a sofrer uma invasão camuflada” e que “já é momento de colocar um ponto final”. A posição foi reforçada pelo Chefe do Estado-Maior General, Lázaro Menete, que reconheceu estarmos diante de uma situação de guerra.
Coincidentemente, dias depois, o país recebia três helicópteros do modelo MI-17, oriundos da Síria, supostamente através dos “irmãos russos” que, segundo apurámos, já se encontram no território nacional a apoiar técnica e taticamente o exército moçambicano. Mesmo com estes factos, os ataques não param e a 05 de Outubro de 2019 completar-se-ia dois anos de insurgência ou “invasão camuflada”, que já matou centenas de pessoas, entre civis, militares e membros do grupo desconhecido, para além da destruição de propriedades e bens privados e públicos. Nos últimos dias, tem-se relatado ameaças de ataques aos postos de votação no próximo dia 15 de Outubro.
Face a este cenário, “Carta” procurou os académicos Régio Conrado, Doutorando em Ciências Políticas e Calton Cadeado, docente universitário, para perceber o que estará por detrás das acções bárbaras que se verificam na província de Cabo Delgado. Entre os aspectos arrolados no debate, destacamos os factores que influenciam aquela violência, os possíveis interesses, o significado da suposta presença de militares russos em Cabo Delgado, o papel do Estado moçambicano no combate a este fenómeno e o futuro da província de Cabo Delgado e do país, no geral.
Factores da violência extrema
Para o pesquisador Calton Cadeado “não há uma resposta única para este fenómeno”. A fonte explica: “quem analisa as questões de segurança diz que não devemos ser adeptos do factor único para explicar aspectos de segurança, sobretudo, quando estamos em período de confrontação, envolvendo violência”.
Citando a pesquisadora de conflitos Mary Caldon, que estuda “novas e velhas guerras”, o docente universitário defende que nas “novas e velhas guerras” é difícil verificar o limite entre o crime organizado e o terrorismo.
“Estamos a falar, por exemplo, de um actor que você diz que é um terrorista, mas também pode ser um mercenário, também pode ser um agente do crime organizado, então, há uma miscelânea de factores que estão envolvidos neste tipo de situações”, argumentou o docente da Universidade Joaquim Chissano, antigo Instituto Superior de Relações Internacionais.
Entretanto, o nosso entrevistado diz ser difícil transportar esta teoria para realidade moçambicana, pois, “não sabemos quem são estes actores”. “Há nomes que estão a circular, mas não sabemos quem são estes actores para vermos se ele é um terrorista, se é um mercenário, se é um agente do crime organizado, se é um drop diller, arm diller”, explica a fonte, sublinhando que, neste momento, o grupo pode ser qualquer coisa (terroristas, mercenários, garimpeiros ilegais ou mesmo de insurgência militar).
Por isso, para o académico, o debate deve começar com a seguinte questão: que fenómeno é este? Face a questão, o pesquisador recorre a outro estudioso de conflitos e segurança para compreender o fenómeno (Patrice Chaball, que desenvolveu a teoria da instrumentalização da desordem) para, novamente, perguntar: quem teria interesses em fazer a instrumentalização da desordem?
Cadeado sublinha que a grande surpresa deste grupo é o facto de não mostrar cara, passados dois anos de ataques e decapitações, pelo que, “pode ser terrorismo, guerra civil, insurgência ou qualquer coisa”, pelo facto de ninguém saber o que está a acontecer naquela província do norte do país. A isto, a fonte chama de “surpresa estratégica” porque a sociedade, o Estado e os estudiosos foram pegos de surpresa com a forma de agir do grupo.
Cadeado lembra que o Ministério da Defesa Nacional (MDN), os Serviços de Informação e Segurança do Estado (SISE) e a Polícia da República de Moçambique (PRM) fizeram diversos estudos para perceber certas dinâmicas nas fronteiras nacionais, mas ninguém imaginava que, passado algum tempo, o país iria sofrer ataques de “pessoas sem rosto”.
Tal como Calton Cadeado, o Doutorando em Ciências Políticas, Régio Conrado, cuja tese de doutoramento tem como enfoque as províncias de Niassa e Cabo Delgado, defende ser errado associar a questão da violência extrema em Cabo Delgado a um e único factor, mas sim deve ser associado a uma extensa lista de razões, em que constam as fracturas de ordem social, económica, política, cultural, que estão a ser negligenciadas por determinados sectores do poder a nível de Moçambique.
Por outro lado, o académico busca a experiência dos outros países para defender que a exploração dos recursos naturais atrai vários males, pelo que Moçambique está na “linha da mira”.
Para Régio Conrado, se a pobreza fosse o único factor, “porquê a província de Niassa, que é a mais pobre e excluída do país, não está a viver a mesma situação?”, questiona, sublinhando haver fracturas internas estruturantes que exigem algumas cautelas na abordagem do fenómeno.
Segundo Conrado, a insurgência não é um movimento qualquer e que existem várias fragilidades no país, sobretudo, no que concerne ao controlo de fronteiras, uma vez que o país é vizinho da Tanzânia, que faz fronteira com o Quénia e República Democrática do Congo, que vivem fenómenos similares nos seus territórios.
Outro elemento chamado ao debate pelo nosso entrevistado é o facto de a religião muçulmana ser praticada há vários séculos no nosso país, mas sem nunca se ter registado qualquer violência entre os praticantes desta e de outras religiões, assim como conflitos envolvendo fiéis do Islão, em Moçambique.
Para Conrado, passados estes dois anos sem que o grupo se tenha revelado e emitido suas posições e, em contrapartida, aparecer organizações internacionais terroristas reivindicando ataques, demonstra que o grupo tem uma origem externa e que o governo deve mudar de abordagem e procurar novos elementos para perceber o fenómeno, uma vez que estão a matar civis e militares, o que demonstra que o grupo tem objectivos que precisam ser apurados.
Interesses por detrás da insurgência
Neste ponto, Régio Conrado entende que existem vários interesses geopolíticos relacionados com o facto de Moçambique ser epicentro de recursos minerais e energéticos, facto que leva o país a estar na “mira” de diversos interesses económicos e políticos.
“Esta hipótese pode atrair instabilidade, uma vez que as multinacionais, quando vêm, trazem empresas de segurança compostas por militares e mercenários para garantir os seus interesses e pelos países envolvidos na exploração dos hidrocarbonetos. Caso algumas empresas sejam rejeitadas, podem financiar estes grupos extremistas, porque os mesmos são experientes na ‘economia de guerra’ e podem usar este elemento para impedir que Moçambique dê um boom”, defende Conrado.
Já Calton Cadeado entende que existem objectivos políticos, económicos e ideológicos, entretanto, estes estão ocultos. Para Calton Cadeado, mesmo com as fragilidades do Estado (fraca presença em alguns locais, falta de recursos humanos qualificados, materiais e infra-estruturas), nunca houve ataques. Por isso, questiona: “Porquê agora? Porque estes ataques começaram agora que Moçambique descobriu recursos minerais?”
A esta perspectiva, Cadeado avança que podem existir duas dimensões, uma associada ao garimpo ilegal, que após o governo reforçar o controlo sentiram-se frustrados e estão a retaliar e outra ligada a “teorias de conspiração”, como é o caso da existência de empresas internacionais privadas de segurança com interesses de garantir a protecção dos investimentos, mas com as quais o Estado moçambicano não quis trabalhar.
“Uma vez que as multinacionais de hidrocarbonetos sempre trabalham em paralelo com as empresas de segurança privada e que podem estar a usar a violência para determinar a incapacidade do Estado, ou seja, passar um atestado de incompetência ao Estado para, posteriormente, virem propor-se para acabar com o fenómeno”, explica o académico.
Questionado quem seriam os maiores interessados na desestabilização de Cabo Delgado, Cadeado respondeu tratar-se hipoteticamente de mais uma teoria de conspiração. Sustentando a sua afirmação, o nosso entrevistado questiona o facto de, constantemente, o Estado Islâmico emitir comunicados, reivindicando a autoria dos ataques e os serviços secretos norte-americanos e italianos, até aqui, não terem reagido. Explica a fonte que estes países têm interesses fortes naquela região e os seus serviços secretos não se preocupam em verificar a autenticidade das mesmas, sabendo-se que sempre que aquele grupo emite um comunicado, a secreta destes países faz uma análise detalhada dos comunicados.
O académico lembra que não é novidade que as empresas de segurança privada norte-americanas e italianas manifestaram interesse em garantir a protecção dos investimentos, mas que não houve um avanço por parte do Estado. Recorda ainda que onde há uma empresa multinacional de hidrocarbonetos, há sempre uma empresa privada de segurança e que muitas delas são de antigos quadros dos serviços secretos ou dos exércitos dos respectivos países.
Significado da suposta presença de tropas russas em Cabo Delgado
Relativamente ao significado da suposta presença de militares russos em Cabo Delgado, Régio Conrado afirmou que a escolha da Rússia é bem-vinda, dada a experiência militar daquele país do leste europeu, que, na sua óptica, demonstrou isso na Síria, quando o Estado Islâmico demonstrava ter vencido o Governo de Bashar al-Assad, tendo melhorado a situação com a sua intervenção.
Para Conrado, a situação iria se complicar caso o governo escolhesse a França, porque esta já demonstrou a sua forma de actuação em países como a República Centro Africana (RCA) e Mali, onde a violência atingiu níveis elevados com a sua intervenção.
Conrado defende ainda que as FDS não estão suficientemente preparadas e modernizadas e sublinha que “nenhum país, hoje no mundo, é capaz de vencer, sozinho, uma insurreição radical”, pelo que os moçambicanos não se devem preocupar com as parcerias que o governo faz, mas sim nos resultados.
Conrado faz lembrar que o grupo que fustiga Cabo Delgado vem usando a tática da guerrilha, usada pela Renamo na guerra dos 16 anos, pelo que “a aposta do governo (pela Rússia) é de salutar”.
Por sua vez, o pesquisador Calton Cadeado diz que a se confirmar a presença russa, em Cabo Delgado, será uma estratégia de contrabalançar o poder para que não se dê o monopólio ao ocidente, uma vez que os russos estão com uma política um pouco “agressiva de retorno à África”, que mais do que a vertente económica e política, também passa por treinar Forças Especiais, como se registou em certos países africanos (como é na República Centro Africana).
Cadeado lembra que existem fortes laços históricos entre os dois países, desde os tempos da luta de libertação, para além da experiência russa no combate ao terrorismo na Chechénia, assim como eles também têm interesses na bacia do Rovuma. Entretanto, defende que o Estado moçambicano tem uma perspectiva de diversificação de parcerias para fazer mais amigos, daí ter optado pelos russos para garantir a defesa e segurança no norte.
Papel do Estado e o futuro de Cabo Delgado e do país
Para Régio Conrado, a responsabilidade primária do Estado não devia ser de alarmar as pessoas, mas sim garantir a serenidade da população e, nesse caso, entende o académico, o Estado saiu-se bem.
“Agora, o Estado deve reforçar as fronteiras devidamente, assim como os ataques, de hoje em diante, devem ser feitos de fora para dentro, uma vez que alguns insurgentes vêm de outros países”, considera Conrado.
De acordo com Conrado, a comunicação deve ser eficaz com as populações e, enquanto se combate, é importante que se criem mecanismos de desenvolvimento inclusivo a nível daquela região e não só, para além de fazer de tudo para vencer este movimento.
No entender de Conrado, não deve haver “sentimentalismo” no combate contra este tipo de movimentos, por isso o governo deve ter uma reacção agressiva, séria, rigorosa e contínua para vencer este grupo. No entanto, Conrado defende que os moçambicanos não devem estar preocupados com as parcerias, mas, sim, com os resultados político-militares.
Por seu turno, Calton Cadeado defende que, a partir das últimas declarações do Presidente da República, de que estávamos diante de uma invasão camuflada e as do Chefe do Estado-Maior General, de que estamos perante um estado de guerra disfarçado, a abordagem deve ser ofensiva, uma vez que, desde 2017, a abordagem do Estado foi mais reactiva ou defensiva.
O académico espera que, a partir das últimas reacções, o Comando Operativo, sediado em Cabo Delgado, não dependa tanto das decisões de Maputo, mas ganhe mais poder para agir nas referidas zonas de ataque e, relativamente à presença russa, faz lembrar que o Estado tem legitimidade de contratar e cooperar com quem bem entender. (Omardine Omar)