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segunda-feira, 18 fevereiro 2019 06:17

Ajudante de camião de longo curso

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A história que vou-te contar vem de dentro de mim. Das minhas memórias tristes. Da vida rastejante que não me larga, e das derrotas acumuladas perante a minha incapacidade de correr ao encontro da luz, como fazia, nos seus tempos de glória,  O.J. Simpson, um dos mais importantes jogadores de râguebi norte-americano do seu tempo.  Sempre pensei que a culpa de todo este sofrimento imparável fosse do meu pai, mas graças a Deus ainda fui a tempo de perceber que não. Quer dizer, ele vai ser absolvido de todas as minhas acusações.

 

Meu pai era um bêbado e fumador inveterado. Isso é verdade. Cresci partilhando com ele o mesmo tecto, inalando desde criança os odores da cachaça e do fumo e do próprio cheiro do seu corpo negligenciado. Desmazelado. Aprendi dele a beber e a fumar. A ser negligenciado e desmazelado. Também. Mas há uma coisa muito importante que deixou comigo: a lealidade. E a fé de que amanhã o sol vai nascer outra vez. Isso é que me orienta.

 

Hoje sou ajudante de camião de longo-curso. Nunca aprendi a fazer nada na vida, senão beber e fumar. E o preço que pago é este: vou sucumbindo em cada viagem. Pendurado por de cima da mercadoria em viagens de não acabar. Mas o que me dói mais é que sigo para frente de costas. Vejo as coisas depois de passar. Nas noites pareço um pássaro de mau agoiro cheio de medo perante os holofotes dos carros que nos ultrapassam. O frio arrasa-me. A chuva festeja por sobre o meu lombo. E não posso fazer nada, senão encolher o corpo para dentro de mim, temendo interminavelmente o pior.

 

Apesar de tudo isto que passo cá fora, lá dentro, na cabina confortável deste Frethline, o condutor está sozinho. Gozando. Sabe que nesta zona de Catandica, onde se ergue aquela linda cordilheira  como linha de fronteira entre Moçambique e Zimbabwe, faz muito frio. Para além disso está a chover. Mesmo assim está pouco se lixando. Ele dança com a alma a música dos limpa-pára-brisas, enquanto cá em cima eu é que sou o pára-brisas de mim mesmo. As minhas costas é que são a muralha de um esqueleto que está a vacilar.

 

Nestas viagens passamos frequentemente pelos controis da Polícia, sem que no entanto os agentes da autoridade obriguem o condutor a levar-me lá dentro. E essa dor toda faz-me lembrar o meu pai que morreu na sargeta. Bolas! Eu também vou morrer na sargeta, como o meu pai. Não tenho nada. Nem mulher. Nem filhos. A casa onde vivo é um buraco imundo. É pior que este cadafalso onde sobrevivo. Onde vou sendo executado devagar. O que castiga a minha alma é que estamos no mesmo carro, eu e o condutor, mas ele é um menino privilegiado. E eu um sabujo qualquer. Sem direito à entrar na cabine, mesmo quando está a chover. Mesmo quando o frio é de enregelar.

 

Apetece-me chamar sacana a este indivíduo que vai ao volante do “nosso” Frethline, mas na verdade eu é que sou inútil. Sou obrigado a suportar a ignomínia de dormir debaixo do camião, enquanto ele festeja com putas e bebida na cabine, num lugar qualquer onde lhe apetece estacionar. E depois de tudo, de madrugada, cara sem vergonha, ainda me pergunta se está tudo bem. Pior, manda-me procurar água para ele se lavar. E eu faço tudo isso curvado como uma besta.

 

Porventura haverá algum camionista que não seja sacana? Todos eles o são, excepto pouquíssimas excepções. Repare bem: quase todos eles são baixinhos. E homem baixinho só tem duas alternativas: ou é um bom bailarino, ou um sacana.

Sir Motors

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