Neste tempo, intensificamos as leituras que dialogam com a pandemia. Lemos de tudo um pouco. Depois, por questões de sanidade mental, até nos sugerem um desligamento. Outras leituras. Evitar o risco de pânico. As epidemias sempre desempenharam um papel fundamental na história da humanidade. As pandemias deflagraram crises políticas, económicas, destroçaram famílias e sociedades. Os vírus não moldam à história, os seres humanos sim. Os riscos que enfrentamos ultrapassam o vírus e os demónios exacerbados que geram ódio, ignorância, ganância e pânico.
A nossa reacção, em tempos pandémicos, revela desespero e ausência de esperança. Foi assim no passado. Pandemias propagam ódio, sobre tudo e todos, estimulam a ganância, revivem, até, o sentido da ignorância. 2020 foi tenebroso. 2021 se reveste já de memórias apocalípticas. Nos rendemos à resignação. Na nossa ingenuidade e apressada intuição, alimentamos esperanças de melhores dias. A pandemia não muda, nós sim.
Nas últimas leituras, tanto nas de ficção, bem como noutras, exorcizamos os demónios. Rebusquei algum encantando no “Planisfério Moçambicano – Atlas Literário”. Uma espécie de reencontro com o horizonte e suas escritas, citando o José dos Remédios. Um mergulho, em seco, pela literatura, seu cancioneiro e política cultural. Uma viagem fiel pelo acervo das memórias de Nelson Saúte. Essa memorável trajectória que revê clássicos. O libelo contra o esquecimento colectivo e a desmemória. Craveirinha, quase centenário, Noémia de Sousa, Rui Nogar, Eduardo White, Rui Knopfli, Leite de Vasconcelos, Aníbal Aleluia, Albino Magaia, Heliodoro Baptista, Ricardo Rangel, Fanny Mpfumo, Marcelino dos Santos, Calane da Silva, Malangatana e Bertina Lopes. Todos eles celestiais. Escrevem para outros olhares, cantam para outros ouvidos e pintam para os privilegiados.
Como teria sido oportuno exaltar outros escritores, como Adelino Timóteo, Mbate Pedro, Nelson Lineu, Sangare Okapi, Lucílio Manjate, Sara Jona Laisse e tantos outros, que insistimos serem a nova fornalha. Mas, eles são consagrados. Hoje, acrescentaria o cronista-mor da sátira moçambicana, Juma Aiuba. Ele mereceria essa reverência. Os seus textos foram imprescindíveis e os mais lidos nesta pandemia. Juma Aiuba deixara marcas indeléveis no jornalismo moçambicano e no fenómeno das redes sociais.
Ganhei de presente, da minha esposa, “A Promised Land”, de Barack Obama. Soberba e admirável biografia. Obra quase obrigatória. Lançada nos EUA, antes das contraditórias e fleumáticas eleições. Obama se expõe. Valoriza o aprendizado e percurso político. Revela como as lideranças políticas são manipuladas e mantidas reféns de interesses obscuros. Ele retoma os “órfãos da ordem política e economia americana”. O convencional que se converteu em adverso.
Porque se descontentam os jovens, desmotivam os partidários, políticos se banalizaram e perdem credibilidade? “Uma casa dividida não se sustenta”, tal como dizia Abraham Lincoln. Na difícil missão de liderar os povos, nunca como agora, foi tão necessário prestar redobrada atenção aos preteridos.
A amiga e colunista da Folha de São Paulo, Cláudia Costin, lá no Atlântico, interrompeu as minhas leituras, recomendando a imperiosa necessidade de ler o artigo “O Crepúsculo da Democracia” (Twilight of democracy) de Anne Applebaum. Esta jornalista americana descreve o réveillon, de 1999, na Polónia e a virada do milénio. Anteviu um milénio sem harmonia, pouco salutar, e com tendências invertidas. O mundo mudaria para o pior.
Anne Applebaum antecipou, com perspicácia, as tendências do neoliberalismo, o resvalar das instituições democráticas mundiais, o surgimento da distopia, que seria expressa em regimes populistas, sistemas políticos polarizados e sociedades intolerantes. A pandemia política já havia chegado muito antes dessa catástrofe humanitária. Vivemos algo que ela designou por “o apelo sedutor do autoritarismo”.
Estes novos tempos parece oferecem, de forma indiscriminada, saídas simplistas e mágicas, para problemas tão complexos. Estes tempos ainda mantém discursos que contradizem a práxis. Autoritarismos com números assustadores, lealdades e parcerias que se sobrepõem ao conhecimento.
Nesta senda outra das obras que sugiro, seria o último livro do consagrado historiador israelita Yuval Noah Harari: “Notas soltas sobre a pandemia”. Yuval Noah acredita que na batalha contra o coronavírus faltam líderes a humanidade. Desaconselha o descarregar de culpas à globalização, as restrições de toda a espécie, incluindo as viagens. Se opõe de forma frenética a “desglobalização do mundo” e ao isolacionismo prolongado. O antídoto para a pandemia, refere, não será a segregação, mas a cooperação. Descreve como as anteriores pandemias surgiram. Como elas ceifaram mais vidas que qualquer guerra.
Continuo, no entanto, sedento de livros e relatos sobre como numa situação de impossibilidade de funcionamento normal das escolas, poderíamos improvisar aulas ao ar livre e deixarmos as crianças aprender. Soluções tecnológicas, no nosso caso, são paliativas. Música para adormecer quem vive de insónias. Procuro soluções e formas de reduzir esse quadro da profunda desigualdade educacional, decorrente da Covid-19.
As leituras destas novas normalidades precisam de descartar saídas simplistas ou mágicas, para problemas tão complexos. Discursos que contradizem a práxis. Leituras que nos façam compreender os descalabros. Os demónios das lealdades e alienadas alianças.
Estes são tempos que deixaram de ser assintomáticos. Exigem criatividade na reestruturação socioeconómica, inovação na resiliência, novas abordagens estruturantes para alcançar uma sociedade de justiça social, uma economia diversificada e sem pobreza. Buscamos pragmatismo, firmeza e posturas motivacionais. Como diz o provérbio, com êxito ou não, o importante é que cada um, no final, possa dizer, “fiz o que pude”.
Nestes tempos de leituras pandémicas, uma vénia muito especial a classe médica. A alma mais forte e melhor constituída é aquela que não se deixa envaidecer com os sucessos, nem abater com a infelicidade. Vocês são os nossos heróis. (X)
O conto “Nhinguitimo” faz parte da primeira obra literária de Luís Bernardo Honwana, Nós Matamos o Cão Tinhoso, publicado, pela primeira vez, em 1964. Edições subsequentes aconteceram aqui e no mundo. Esta integra o cânone curricular de ensino da língua portuguesa, nas escolas secundárias moçambicanas. Tem sido referência obrigatória para diferentes gerações do pós-independência.
Nhinguitimo ou vento sul, na língua ronga, são ventos que antecipam a chegada do Verão. Ocorrem entre os meses de Agosto e Setembro. Velozes e poeirentos, eles simulam um falso Outono, desconforto generalizado e inúmeras alergias. Necessários, porém, indesejados.
Os ventos representam o ar em movimento, resultante das variações da pressão atmosférica entre as diferentes regiões de maior pressão, para as de menor pressão. Como qualquer fenómeno da natureza, os povos sempre encontram justificações e analogias para explicar o seu surgimento. Assim, estes ventos têm sido sujeitos à interpretação popular, bem como a mitos e crenças.
Nos dias que correm, e considerando a propagação da COVID 19, Nhinguitimo pode ser, analogamente, comparado à propagação do coronavírus. Aliás, Sara Jona Laisse, no livro “Entre margens” considera que o coronavírus pode bem ser comparado aos vários cães tinhosos que semeiam luto e desgraça.
Licínio Azevedo, conceituado realizador nacional, dos mais galardoados que a indústria cinematográfica nacional, alguma vez, conheceu, decidiu adoptar este conto para filme. Uma curta metragem de um clássico moçambicano que, faz tempo, era merecedor de um filme. Vários filmes. O filme será rodado este semestre, 2021. Uma produção em tempos pandémicos.
O personagem principal é Alexandre Vírgula Oito Massinga. Jovem nativo que trabalhava como empregado dos agricultores comerciais brancos. Vive cultivando, tal como seus concidadãos, as machambas dos seus patrões. Mas, ele tem, também, a sua própria. Reduzidas proporções, com milho como substrato, porém, assegurava uma safra segura e razoável para o sustento familiar.
Esta prática tipificava as relações do campesinato no período colonial. Estas pequenas machambas serviam para o auto-sustento, mas, igualmente, para que os agregados familiares pagassem os tributos. Tal como acontecia com as machambas dos outros trabalhadores agrícolas locais, a machamba de Vírgula Oito estava excluída das extensas áreas demarcadas pelos colonos portugueses.
Vírgula Oito via a possibilidade de sua pequena plantação obter uma colheita satisfatória. Ele se guiava pelo provérbio que dizia “o que faz andar o barco não é a vela enfunada, mas o vento invisível”. O seu vento ele enxergava, com certeza que nenhum Nhinguitimo prejudicaria sua colheita.
Essa certeza derivava do facto de sua pequena machamba estar localizada do lado oposto do rio, que dividia a machamba do seu patrão. Esta localização era beneficiada pelas árvores que faziam a pequena barreira de segurança e protegeriam a sua área. Assim, o Nhinguitimo somente, atingia as plantações dos brancos.
A narrativa de Luís Bernardo Honwana que integrou o “African Writers Series”, nos anos 60, é marcada pela consciencialização da exploração, pela revolta e, também, por algum comodismo e medo. O norte de Moçambique já vivia a luta armada de libertação nacional que atiçava a consciência de sectores importantes da sociedade.
Alexandre Vírgula Oito vislumbrava, não apenas essa boa colheita, mas, o sonho de, um dia, se transformar em patrão, adquirindo alfaias agrícolas, aumentando as áreas de cultivo e, enfim, perspectivando seu casamento e a melhoria das suas condições de vida.
Sucedeu, porém, que a sua pequena propriedade passou a ser cobiçada pelo seu patrão. Não tardou e Vírgula Oito foi expulso das suas terras, com toda a sua família. Desfaziam-se, assim, seus sonhos e as inflacionadas intenções de prosperidades. Esta anexação gerou um certo borbulhando. Os bares fizeram, deste assunto, a conversa do momento. Um dos bares servia de ponto de encontro para os homens da vila, os brancos.
Até o administrador ficou ao corrente das desavenças. Solicitou justificação aos seus conterrâneos. Os argumentos não se fizeram esperar. Doía o coração dos brancos ver terras tão férteis sendo desperdiçadas pelos negros. Com as verdades manipuladas e as pretensões desfeitas, a clarividência do Administrador antevia período conturbado. O seu sexto sentido era infalível.
Os brancos se respaldavam no argumento da capacidade e suas incomparáveis habilidades para produzir e administrar terras. Aos negros competia trabalhar como empregados dos brancos. Aquelas terras confiscadas estavam desperdiçadas e improdutivas. Eles dariam um novo destino.
Luís Bernardo Honwana é pródigo, nesta narrativa, em rever expressões de pretensões das suas gentes, os momentos conturbados e os sinais de injustiça. Alias, este conto representava já uma fase efectiva da literatura que romperia com essa visão cultural eurocêntrica. O autor se esforçou para redefinir o “ser moçambicano” denunciando a segregação e exploração pela qual passam os nativos.
Vírgula Oito, nosso personagem, em função das reclamações, foi rotulado de louco e subversivo. Recusava a exploração e a humilhação a que havia sido submetido. Não aceitou ser um mero objecto manipulado. Porém, ele não logrou estruturar essa revolta colectiva. Assumiu o ónus para si próprio. Seus companheiros defendiam que nada poderia ser feito, os brancos continuariam roubando as terras e, ninguém, poderia dizer nem fazer nada.
Vírgula Oito, banhado de ódio, propalou a sua revolta. Incitava seus amigos à revolta. A passividade conduziria a todos à pobreza. Ele mesmo, até então passivo, mudara de postura ante as exploração e humilhação sofridas. Da raiva e revolta, Vírgula Oito consome o crime. No calor das discussões com seus companheiros, ele mata um deles.
O seu patrão entra, novamente, em cena. Faz um apelo inusitado aos restantes agricultores nativos. Pede que eliminem Vírgula Oito, antes que ele os matasse a todos. Vai mais longe e pede, inclusivamente, que se peguem em armas, para abater o criminoso, antes que todos fossem mortos. Se isso não acontecesse, algo de mais grave, aconteceria a vila.
“Nhinguitimo”, denunciou a exploração que serviu de estímulo à revolução. Mas o Nhinguitimo continua um vento presente. Não dá tréguas. Somos assolados por muitos ventos e cães tinhosos. Covid-19 e a instabilidade devastam esta paz tão duramente conquistada. Licínio Azevedo quer retomar ao Nhinguitimo de outros tempos.
Redigi um texto emotivo e demasiado espontâneo quando Calane da Silva, nosso professor, aniversariou os três quartos de séculos, dessa generosa longevidade, marcantes passagens e vivências culturais. Têm sido anos intensos e profícuos de inevitáveis intervenções em prol do fascinante mundo das artes e letras e do jornalismo. Calane aniversaria, no mesmo dia que o artista plástico Naguib. A vida fez deles irmãos consanguíneos de sonhos, imaginação e fantasia. A complementaridade do signo libra que confere impulso emocional e tatua as identidades através das distintas épocas históricas.
Com ambos desenvolvi e privei, nos últimos anos, uma relação que perpassa a amizade ou convívio fraternal. Tornou-se viral e se situava nesse plano de múltiplas excentricidades e cumplicidades. Calane acreditava que ainda poderíamos agregar valores às crianças e jovens. Sentia que o capitalismo selvagem, dos novos tempos, os excluirá, sem apelo e nem agravo. Essas gerações bebiam o pecado do descaso e omissão. Educação poderia ajudar, defendia Calane. Educar gerações não significava, tão somente, ingresso. Teria de ser acesso. Crianças e jovens são minha matéria-prima e, confesso, continuo céptico sobre o futuro de muitos, até sobre o presente de poucos.
Retomar as cumplicidades, neste pequeno texto, não pode e nem deve, em nenhuma situação, ser entendido como uma homenagem ou louvor à sua obra e memória. Antes, tem de ser interpretado como uma forma de desmascarar a omissão e a displicência que acompanham os criadores artísticos e os talentos que criam e recriam este mosaico étnico, racial, social, cultural e, estranhamente, literário do país.
Calane era um samoriano convicto, porém de coração dilacerado pelos sucessivos falhanços de fazer uma nação reconciliada e com valores. Também Samora, deixou um país à beira do caos e do opróbrio. Mas, Calane era também um monoteísta. Com sangue miscigenado hindu e português, ADN africano, ele nasceu católico e professou a religião de forma convicta e leal. Lealdade que tipificou sua vida e amizades. As relações e matrizes cruzadas que fizeram dele um muçulmano reconvertido. Mas, a sua espiritualidade o transformou em espírita. Procurava a pureza do altruísmo e a força e poder da luz e do sol. Parte como líder espírita de um grupo que criou e, quem sabe, experimentará outras esferas espirituais, nos próximos anos, sentado à direita do Pai.
Quis fazer um texto sem recorrer, forçosamente, às suas características, gostos e vontades. Um texto de reencontro com Craveirinha e Gulamo Khan, Ricardo Rangel e Fanny Pfumo, com Malangatana e tantos outros, com quem ele conviveu e foi feliz. Este texto, então, seria uma espécie de penhorado agradecimento por tantos caminhos e obras que ficarão como legado.
Decidi rever um texto que ele compartilhou, o qual eu deveria ler, obstinadamente e sem tréguas. Marcelo Rubens Paiva, brasileiro, que Calane não conheceu, mas que respeitou, como respeitou a todos com a mesma simplicidade e cordialidade. Numa das passagens, o texto recordava “Apesar de você, as cores do arco-íris continuarão as mesmas, estarão sempre entre o céu e a terra e continuarão emocionantes e lindas”.
Temo que, com a sua ausência, esse amor com as cores de arco-íris, continuará tão infinito e contagiante. Sem limites. Imaginativo e apaixonado pela fantasia, pedia, sempre, que observássemos tudo com olhares apaixonados, como se tudo fosse tão lindo e fascinantemente rejuvenescido.
Calane era, pois, essa espécie de Júlio Verne. Esse novelista e poeta francês, cujo nome original foi adulterado, Jules Gabriel Verne 1828-1905. Júlio Verne foi dramaturgo, poeta e ensaísta, cuja obra se configurou como a mais traduzida em toda a história. Fazia predições, em seus livros, sobre o aparecimento dos novos avanços científicos. Sonhou em passar 40 dias no fundo do mar e a ciência criou os submarinos. Invejou a liberdade dos pássaros e imaginou que o ser humano voaria e, até, transportaria carga, algo que os pássaros não conseguem fazer. A aviação deu azo a estas predições. Calane era um pouco este arquitecto das palavras que não deveriam ser esquecidas nos gabinetes e nem nos cacifos ou estantes.
Em tudo que já foi dito e, eventualmente, será escrito, retomo suas duas últimas aparições públicas na Universidade Pedagógica do Maputo. Aqui estudou e se converteu em professor, mentor e guia de centenas de estudantes pelo país afora. A UP-Maputo era o seu predilecto projecto de unidade nacional que a independência trouxera e o cativará infinitamente.
A UP-Maputo decidiu homenagear o Professor e médico Fernando Vaz. Completava só noventas Primaveras, exuberantemente, dedicadas à sua medicina, cirurgia médica e compaixão para com seus pacientes. 90 Anos de formação e educação de profissionais de saúde. Calane da Silva usou e abusou da graciosidade de sua voz e fez as honras da casa. Deixou que as palavras se transformassem em armas que libertam as ideias progressistas. Pelas suas palavras e abraços, agora tão raros, foram revistos os momentos azuis de uma revolução que agora virou vermelha. Ali estavam a sua Xicandarinha e Malanga, fervilhando as memórias da Lenha do Mundo, de Fernando Vaz e de todos nós.
Meses mais tarde, replicou a dose durante as celebrações dos 150 anos de Mahatma Gandhi. Cerimónia inusitada e de rara beleza espiritual e intelectual. Um momento indescritível e de contagiante emoção. Calane vestiu-se de branco, encarnou Gandhi, gesticulou a pureza da paz, liberdade da palavra e reconciliação. Exercitou Yoga e fez meditação transcendental. Espalhou seu perfume poético e fez acreditar num amanhecer sem ódios, sem tiros, na mão plena de bondade e no coração altruísta.
Por instantes, sentimos que Gandhi estava ali, visitando Moçambique, falando da sua luta pacífica, no dom da bondade. Ghandi visitará Moçambique e os privilegiados desfrutarão dessa bênção. Nunca mais voltamos a fazer yoga e nem meditamos. Alguns, quem sabe, ainda devem fazer. Inesquecível Calane. Todos nós, com uma peça de roupa branca, sem muita certeza das cores do nosso sangue e vontades.
Ao Calane, ficou essa enorme dívida educacional, literária e jornalística. Um penhor que só o tempo saberá pagar e retribuir. Aqui fica, então, esse pedido de desculpas pelas nossas incapacidades, fraquezas e omissões, por não sabermos reconciliar o país, não sabermos transformar os sonhos das crianças e jovens, pela incapacidade de proporcionar um novo amanhecer para todos, ávidos de oportunidades e respeito pela diversidade. Uma pátria de valores e liberdades respeitadas. Também, devemos por não termos sido céleres e mais assertivos para lidar com esta traiçoeira pandemia, covarde e assassina, Covid-19, que rouba de nós, o melhor de nós mesmos. Perdoe-nos por ter-te desacompanhado e te deixado no meio do povo para o qual você sempre viveu.
Neste momento da Páscoa, fica, apenas, essa vontade de reler no poema dos olhos das crianças, o amor e a reconciliação, acreditar que essa maldade vai desaparecer. Queremos essa luz esplêndida em nossos corações, para que amanhã seja um outro e novo dia.
As histórias de superação de vida, em Moçambique e no mundo, se sucedem. Algumas se mediatizaram, porém, a maioria, continua anónima e reservada. Vencer faz parte do ser humano. A maior beleza da superação tem sido o positivismo, as acções de fé, esperança e a auto-estima. Farida Gulamo, a mulher que veste o rosto e espírito do associativismo, em Moçambique, faz parte desse distinto grupo dos que demonstram tenacidade e sagacidade, muito para além do comum. Uma trajectória de dificuldades e privações, contudo, de requintadas e memoráveis vitórias.
A superação pode ser entendida como uma opção. Não importa o estado de saúde ou físico. As pessoas podem escolher entre dar importância as decepções e enfatizar as falhas e deficiências, vivendo com amargura e tristeza ou, pelo contrário, lidar com os problemas e encarar esses momentos como aprendizagem e tempos de responsabilidade para sua própria felicidade. Assim tem sido a Farida Gulamo. Por vezes, incompreendida e desacreditada, ela tem liderado processos e associações que lutam pela equidade, pelos direitos humanos e pelo respeito institucional, de forma incontestável, ao longo de mais de 50 anos.
Com a história do maior génio do século XX, o criador da teoria da relatividade, Albert Einstein, que foi considerado um mau aluno e completamente inútil, pela maioria dos seus professores, se aprende a lição da persistência, do valor da luta pelos sonhos. Farida Gulamo nasceu no Ilhéu, na primeira capital de Moçambique, naquele célebre hospital que, em 1952, foi tido como a maior estrutura hospitalar da África ao sul do Sahara. Depois, a vida lhe ensinou a lutar pelos seus sonhos, nunca virar a cara à luta, nem depender de quem quer que seja.
O associativismo e a luta pela inclusão social dos grupos excluídos, em Moçambique, certamente, possuem várias motivações e rostos. Alguns, mais visíveis e outros menos. Diferente das histórias das epopeias ou das grandes batalhas, das lutas emancipatórias e das vitórias sobre a dominação estrangeira, o associativismo se respalda em cidadãos de boa vontade, com forte capacidade de liderança, com pendor de agregar valor às suas pretensões e, sobretudo, com essa facilidade mobilizadora, modificando as percepções e os preconceitos.
Tal como os escritores, os principais líderes associativistas transportam, no seu DNA, a responsabilidade de transmitir, à sociedade, valores fundamentais de luta e persistência, bem-estar social, convívio salutar, equidade, igualdade de direitos e a melhoria das condições dos grupos excluídos e minorias. Os nomes por detrás destes movimentos são marcantes e fundamentais nas mudanças de políticas públicas, postura governativa e uma resposta às suas demandas.
A génese do associativismo e da luta pelos direitos humanos e pelos direitos das minorias é diversificada, remonta ao período de ocupação estrangeira colonial que, inclusivamente, condicionou o seu surgimento. Eduardo Mondlane foi associativista e, à semelhança de tantos outros, corporizou os movimentos incipientes, no país. Nos últimos anos, o associativismo abarca, grosso modo, redes de indivíduos e pequenos círculos sociais nas igrejas, escolas e bairros, liderados por jovens. Se é verdade que todos pretendem institucionalizar e obter reconhecimento governamental ou das ONGs, elas são, ainda, dependentes de apoios financeiros de organizações internacionais, apesar de suas agendas e dos grupos que representam.
Farida Gulamo que, em 2020, colheu as suas 75 risonhas Primaveras, esteve na base da criação da Associação dos Deficientes de Moçambique (ADEMO). Assumiu o cargo de secretária executiva e, apoiada pelo governo, expandiu a associação para todos os cantos do país. Fê-lo, na época, 1989, com o apoio de um outro cadeirante, o saudoso Jorge Tinga, persistente e multifacetado, que este ano nos deixou e, com muita saudade. Portanto, eles fazem parte dos anais do associativismo moçambicano.
Farida Gulamo, esta persistente e dotada mulher, destemida e de fortes convicções, tem sido um exemplo de uma activista social que virou referência, obrigatória e incontornável e que contribuiu, de forma abnegada e exemplar, na luta dos deficientes por uma integração e reconhecimento. Ela se desdobra entre os activistas da educação, do género e dos deficientes. Nessa condição, participou em diferentes fóruns mundiais, visitou vários países e ergueu bem alto a bandeira de Moçambique, em conferências especializadas.
Este ano, com sua entrega e de todos seus colegas, voltou a realizar a assembleia-geral da ADEMO, depois de mais de 14 anos de inactividade. Fê-lo em momentos de pandemia da COVID-19, quando o mundo parece ter virado as costas à humanidade. Diante do resguardo e ausência de apoios, ela quis provar aos colegas que a vida tem de continuar e, sobretudo, que eles não estavam esquecidos. Farida veio para o mundo numa condição física normal. Por conseguinte, tem um chip que a faz pensar em normalidade, de forma permanente. Assim, decidiu sair à rua, solicitar apoios e reactivar a ADEMO. Remar na contramão da inactividade e ajustar o seu mindset às novas normalidades. ADEMO terá de funcionar descentralizada, com eleições democráticas dos seus gestores, mas, ao mesmo tempo, com maior diversificação de suas fontes de receita e financiamentos.
Recentemente, ela abriu sua alma e falou-nos nessa trajectória de luta e afirmação de identidade, de sofrimento e exclusão. Reviu os difíceis tempos da Namaacha, onde fez uma das dezenas de formações, como monitora. Não se esqueceu da rigorosidade do Inverno que debilitou ainda mais seus músculos locomotores. Recordou-se de memórias salutares, dos tempos de infância nos quais, mesmo com as muletas, jogava à bola e participava de outras brincadeiras com seus amigos de bairro. Sem exclusão e total solidariedade. Aliás, foi assim como cresceu, como frequentou os liceus, o magistério primário, a faculdade de ciências de educação e outras.
O seu sonho foi sempre de seguir medicina. Mas, os condicionalismos forçaram a seguir a carreira de educação. De uma família de enfermeiros, teve dois irmãos e três filhos, um deles já falecido. Trabalhou em diferentes instituições e províncias. Ministério da Educação e no Instituto Nacional de Desenvolvimento de Educação (INDE), em escolas em Quelimane, Inhambane, Chokwé e Maputo. Sua luta tem sido a de não aceitar a discriminação e o preconceito. Este é o sentimento que passa aos seus colegas e amigos, de todo o mundo. Ela levanta, com orgulho, a ADEMO e todas as associações de cegos e amblíopes de Moçambique.
Uma das suas maiores alegrias pode ter sido à de chegar a independência deste país, que ama, já com 30 anos de idade, amadurecida e com sonhos. Sonhava num novo estágio na sua vida. Sonhava com um país sem discriminação e com tolerância. Um país de oportunidades, de paz e de fraternidade.
Ainda vai viver para ver um novo arco-íris e, sobretudo, um país reconciliado e com uma educação moderna e utilitária, uma juventude responsável e com empregos, casa e com seus direitos respeitados. Um país sem fome e onde todos serão tratados da mesma forma e com o mesmo respeito. Um pais de todas as utopias e reconciliações. Estes são os sonhos de uma sonhadora militante. (X)
Um pouco pelo mundo, ganha corpo o debate sobre o terceiro contracto de Educação Social ou o novo Pacto Educativo. Um movimento que envolve especialistas, professores, decisores, governos e universidades e, até, o próprio Papa Francisco, que deveria ter realizado o Congresso sobre educação em Maio deste ano.
O pressuposto para este manifesto é o de que em nenhum momento da nossa história, o mundo teve tantos avanços inimagináveis, vertiginosos e exponenciais da ciência e tecnologia, tais como biotecnologia, nanotecnologia, infotecnologia, robótica, ciências espaciais, neurociências, entre outros. Porém, existem, contradições e desigualdades inaceitáveis diante de tantos avanços. O mundo ainda assiste aos milhões de pessoas que sofrem de fome, pobreza extrema, desnutrição, migração, racismo, xenofobia, injustiça e violência nas suas mais diversas expressões e consequências.
A pandemia SARS-COV 2 provou, em muito pouco tempo, como os seres humanos continuam altamente vulneráveis e que apesar de estarmos no século XXI, a meio destes grandes avanços científicos e tecnológicos, a humanidade continua vulnerável, independentemente da cor da sua pele, das crenças, religiões e posições geográficas. Por outro lado, a pandemia permitiu, também, conhecer a importância que as tecnologias podem ter neste mundo pós-moderno, sobretudo, com as experiências da telesaúde, educação à distância, e-governo, e-comércio, e-banking, etc. que abriram espaço para a criatividade, inovação, empreendedorismo, nos seus níveis pessoais, familiares, comunitários e institucionais.
As bases para este terceiro contracto de educação social são os anteriores grandes acordos sociais de educação que permitiram um conviver e um progredir do bem-estar da sociedade e da humanidade. Em grande medida, o novo acordo baseia-se nas necessidades crescentes da revolução cientifico-cultural, que terá que produzir uma nova disciplina laboral e, na essência, cada pessoa deverá descobrir a sua paixão, aprender ao longo da vida, cultivar novas competências e habilidades, desenvolver todo o seu potencial, encarregar-se de inventar o seu trabalho e dirigir a sua vida.
O primeiro contracto social teve por base a aquisição de competências básicas para um desenvolvimento pessoal e profissional. A promessa era de que ao aprender de coisas básicas, todos poderiam se desenvolver na vida, tendo disciplina e obediência, e ganhariam um trabalho digno para o resto da vida. O segundo contracto, por sua vez, baseava-se na aquisição de competências técnicas e profissionais que foram fomentas pelo crescimento de universidades, centros de estudos técnicos e superiores, em todo o mundo. A promessa era sustentada nos seguintes argumentos: estude muito, faça esforço, tire boas notas, siga uma carreira e terá um bom trabalho para toda a vida.
O final do seculo XX e o início do seculo XXI, criaram realidades diferentes em que as circunstâncias tecnológicas, económicas e laborais transformaram-se radicalmente e o contracto social da educação não foi renovado e gerou disfuncionalidades e, até, uma anomalia histórica.
Ainda que o terceiro contracto de educação social não esteja definido, certamente que é possível delinear os seus traços fundamentais. Assim, aos estudantes será exigido o desenvolvimento de competências, de criatividade, inteligência emocional, inovação, empreendedorismo e, sobretudo, liderança. Quer aos estudantes, quer aos professores, será exigido o domínio das novas tecnologias, das línguas e, principalmente, que se encarreguem de inventar o seu próprio trabalho.
Também, nesta fase, a escola e os centros de ensino superior terão que potencializar sujeitos pensantes, livres e responsáveis. Dito por outras palavras, teremos que enveredar por uma educação que corresponda as condições de vida do século XXI, que eleve a condição humana das pessoas e contribua para a construção de sociedades democráticas, equitativas e sustentáveis. Essa será uma educação que compromete a todos actores sociais em torno de um ecossistema em que estejam presentes e sejam protagonistas, quer dizer, serão convocados a comunidade, as famílias, os trabalhadores não docentes, os meios de comunicação e as próprias autoridades. Todos estes, terão que contribuir nesta acção multifocal, para ajudar aos jovens a se desenvolverem plenamente na sua dimensão pessoal e profissional.
O terceiro contracto de educação social tem em vista a mudança da agenda educacional e um redesenho gradual de todos os programas de estudo, com base na inovação educativa. Moçambique, brevemente, precisará de adaptar-se a estas realidades. Teremos que aprender a saltar do primeiro contracto de educação social para um terceiro, considerando que o segundo nunca foi explorado no máximo das suas potencialidades e que continuamos a ter um ensino que forma profissionais dependentes do empenho. Mas é, sobretudo, a administração pública que precisa de rever os seus critérios de ingresso nas careiras profissionais, que não olhem apenas a certificados e diplomas, mas que busquem competência, capacidade técnica e inovação.
No imaginário infantil, txopelar nunca foi, tão só, uma aventureira e arriscada viagem de alguns segundos ou minutos. Muitas, pelo contrário, simbolizavam a realização de sonhos que exorcizam vontades recalcadas. Noutros tempos, as crianças se penduravam nos taipais dos Land Rovers, dos Bedfords e Ifas, até nas bicicletas, e se boleavam, aproveitando a distracção dos pedalantes, para provarem ao mundo a sua agilidade e destreza.
A modernidade transformou os veículos, mas nunca o sentido da aventura. Hoje, txopelamos em chapas feitos transportes públicos. Carroçarias empilhadas e necessidade que perdeu a ingenuidade. As emoções e os prazeres, não se algemaram ao tempo e testemunham, ainda, essa fantasia que se estende pelo infinito. A verdade foi sempre a filha do tempo, e a sabedoria, a filha da experiência. De geração em geração, txopelamos nossas vidas no Centro, no Sul e no Norte deste país que busca esse horizonte de comunhão e prosperidade. Umas vezes por aventura, outras, não raras, por condição. Txopelar dá sentido as carências e vivências.
Os veleiros, nacalenses por designação, se transformaram na única salvação para a sitiada população dos distritos costeiros do Norte de Cabo Delgado. Os txopelas da salvação. De noite ou de dia, eles passaram a transportar milhares de vidas e almas ansiosas pelo reencontro com a própria vida, serenidade e razão para terem nascido. Estes moçambicanos não procuram portos-seguros, antes, procuram as razões da discórdia, da falta de irmandade. Buscam, neste percurso, o sentido da serenidade e da racionalidade.
De Quionga a Olumbi, de Panguane a Pundanhar, Quiterajo a Mucujo, a debandada quase não deixou de ter mãos a medir. O último campeonato pela sobrevivência, mas, nunca, a última corrida em busca de conforto e bem-estar. Distâncias nebulosas, permeadas por ventos e monções do Norte ou Sul. Uns a estibordo e outros à bombordo. Como carga levam seus parcos haveres. Os sobreviventes patos e galinhas, também eles deslocados, como se fossem o maior tesouro de um passado sem tantas carências. Estas aves, sequer precisam de explicações para entenderem as razões da fuga. Como qualquer racional, agradecem aos seus deuses e espíritos pela salvação. No desespero e aflição, não importa as condições e muito menos a comodidade dos txopelas. Elas nunca existiram. Por isso, são txopelas. Ser transportado sem segurança e na aventura. Precisam de se apinhar para zarparem.
Embarcados, e na precariedade do desconforto, viram todos insulares e sem história e nem nomes, procurando refúgio no continente, um espaço que os deixe olhar para os outros seres na condição humana. Porém, a ondulação e os silêncios, atravessadores pelas ordens dos ventos, se fracturam com os choros de crianças não contabilizadas no horário da partida. O txopela, quando todos mesmos esperam, se reconverte em maternidade. Um parto sem assistência e dignidade, mas com a solidariedade das matronas e assistidos por capulanas salgadas pelas ondas. Os mais inapropriados e inconcebíveis espaços para se chegar ao mundo. O mar de tantos mistérios reserva para si o direito de conservar, em suas profundezas, as placentas que registam a incredulidade da malícia e fúria assassina insurgente.
Hawa ou Eva, nessa etimologia bíblica, foi uma de tantos que vieram e chegaram ao mundo flutuando. Embalados pela sinfonia combinada de ondas que testemunham tantos outros nascimentos, no interior de suas profundezas, porém, quase nunca, na superfície de suas águas. Mas, são estas águas que se acalmaram para receber cada uma destas crianças. Receber e transportar para outros mundos inundados de dissabores e imperfeições.
No mar florescem para a vida os pequenos guerreiros ávidos de rescrever sua própria história, alterar o curso da humanidade e fazer valor a historicidade de tantas gerações de Manis que souberam viver da pesca e caça ou recolecção, mas, jamais, de fratricida e inexplicadas disputas. Hawas, Faridas e Omares, Anchas e Ibraimos, Naziras e Salimos, tantos que agora parecem ser números, mas que transportam fascinantes histórias de trabalho, vida e amor. O tempo se encarregará de escrever a sua própria história. Estas crianças nascidas em maternidades ambulantes e flutuantes serão candidatas a navegantes fugidos da barbárie e crueldade, em busca da terra prometida, como Moisés procurou Jerusalém, partindo para essa fé que alimenta a religiosidade.
Vivemos txopelados para essas esquerdas e direitas, com rajadas de vento nem por isso tão favoráveis. Para tanta desgraça não pode ser apenas a natureza que dita o nosso destino. Somos nós próprios. O bom senso e condução colectiva terão de nos orientar para um porto de calmarias. Assim, a sorte acompanhará os audazes.
De maternidades flutuantes os txopelas podem, lamentavelmente, transformar-se em pequenos calvários, espaços onde a vida deixa de fazer sentido. Neste mesmo mar de tantas alegrias e salvação, os afogamentos sepultam corpos em suas águas cristalinas. Junto da placenta dos recém-nascidos, jazem heróis e famílias com destinos interrompidos. As paradisíacas ilhas assistem com a mesma cumplicidade, o gerar e o desfazer de vidas. São estas águas que retiram o melhor de nossos concidadãos. São os txopelas das múltiplas tragédias de tantos refugiados e fugitivos. Nestas horas, o idílico azul se converte num túmulo sufocante e frio, para deixar nas suas profundezas os sonhos de quem nunca entendeu a génese de tanta conflitualidade, descrença e vandalismo.
Entre maternidades e calvários, só tem um nome, esperança de um outro futuro e novos horizontes. Estes txopelas são as imagens do sofrimento, narradas de formas tão cruzadas, incompletas e incoerentes, insensíveis e arrepiantes, que viajam em sentido inverso do aceitável e tatuando as nossas consciências e memórias. Os txopelas revelam a plenitude de uma tragédia e crime humanitário cujas proporções, só mesmo Deus poderá, algum dia, justificar.
Na linha do horizonte, os txopelas vão chegando silenciados e com a réstia de esperança restabelecida. Invadem as místicas praias do Paquitequete. Areias brancas transformadas em pequenos hotéis desprovidos de tudo. Um céu aberto e a última redenção divina para quem alcança terra firme. Paquitequete abraça a todos com a mesma gentileza que recebe dezenas de pescadores. Para trás, as narrativas de uma longa aventura, os relatos da crueldade e descaso, a matriz de sentimentos, de pequenez da nossa solidariedade e generosidade e de um presente que não quer ser passado, pois, o futuro também parece ter deixado de existir.
Assim, do nada, se fez o silêncio. Condoído e melancólico. Inexplicável. No mês do professor, terminava uma viajem que parecia infinita, duma das mais profícuas e renomadas professoras que a própria Universidade Pedagógica ajudou a professorar. O vocabulário da exaltação será sempre restrito e, quiçá, repetitivo para expressar a temporalidade, a dialéctica de metamorfoses, a viagem, e o erudito. As melhores expressões se converteram em lágrimas. Uma dor profunda e uma comoção abrasiva.
Para trás, e neste cenário de incredulidade, ficou um percurso de tantos, e essenciais, livros e outros textos conjuntos e colectâneas de natureza e conteúdo académico e educativo e, acima de tudo, uma história que passou tangencialmente, ou na profundidade, pela história de outros tantos estudantes, docentes e curiosos.
E nesse instante, terminou uma fascinante aprendizagem, cuja intenção se associava a disponibilidade para olhar o mundo que nos envolve, saber escutar e, sobretudo, caminhar junto da natureza no universo das suas diferentes formas.
No ano em que a Universidade Pedagógica de Maputo, mais extensa ou confinada, celebra o seu 35º aniversário, a nossa professora Stela Mithá Duarte, também se aproximou das 35 publicações, dos 35 estudantes que orientou, das 35 conferências que organizou, dos 35 cantos da universidade que amou e dos 35 tectos que edificou. Essa, a marca do reconhecimento e da grandeza de um talento que, indelevelmente, ficará para os anais desta instituição que são o produto da revolução do 25 de Setembro, das vitórias e dos sacrifícios da independência nacional, da coragem e bravura dos melhores filhos desta pátria.
Celebramos os 35 anos de uma universidade que, na sua dimensão territorial, regional, cultural, educacional e científica, uniu e formou moçambicanos de todas as raças e etnias, das classes sociais mais desfavorecidas, das classes médias e abastadas, estrangeiros, e primou por manter presente essa busca incessante pelo conhecimento, pela pesquisa e pela extensão. A professora Stela formatou esse restrito grupo movido pelo ideal do olimpismo universitário que procurou ensinar mais, publicar mais e elevar o brilho de um país que procura o seu reencontro.
Nesta ode, não são as memórias ou as fases institucionais mais importantes, que devem ser restauradas. Serão antes, as energias que ao longo dos anos preencheram suas alegrias, os dissabores que a entristeceram, os debates que acalorou e, principalmente, as virtudes que foi estimulando e que engrandeceram este longo percurso que ainda terá de ser palmilhado. A professora Stela era essa líder. Serena e resguardada, que sabia orientar e iluminar as mentes mais controversas e brilhantes.
Devolvemos o seu corpo à terra no dia do professor, na semana onde as festividades se confrontam com as vicissitudes, nos momentos em que um país inteiro é chamado à reflexão, como se as nuances educativas continuassem desconhecidas ou carecidas de debates. E sob a capa da chuva miúda e teimosa, transformamos o seu corpo em cinzas. Essa cinza, do seu corpo, que é conhecimento e que vai descer rio a baixo, por toda a extensão do Zambeze, contemplando a Chupanga de David Livingstone e desaguando nas ensobradas águas do Índico. Esta foi a sua vontade, e estas cinzas também são a história. O Zambeze se converte no rio de todas as nossas emoções.
O Zambeze se transformará num rio de energias e conhecimento secular e, igualmente, num rio universitário. As águas que nos roubaram uma companheira sóbria, destinta, amiga de todos e companheira de todas as ocasiões.
Ninguém te pede para repousares em paz, professora. Os verdadeiros professores não repousam. Não podem repousar, enquanto existirem pesquisas para escrever, enquanto não nos reconciliarmos como moçambicanos, enquanto existirem crianças e adultos analfabetos, enquanto os tabus superarem a ciência, enfim, enquanto os dissensos forem bem maiores que os consensos. A professora Stela partiu como viveu. Comungou o espírito de reconciliação. Nasceu muçulmana, cresceu católica e hindu. Na hora da partida, comungou estas três religiões, para que a sua alma pudesse partir reconcialiada. Apenas o seu corpo deixou de estar no nosso seio. (x)
A ilha dos espíritos celebrou o 202º aniversário. Clausurada, sem alaridos e nem hosanas. Uma comemoração, quase, esquecida e melancólica, com silêncios ensurdecedores, sem espaços e recantos engalanados. O maior convidado foi, apenas, o tempo. Esse tempo infinito que contempla, estarrecido, noites e luares misteriosos, auroras endiabradas, crepúsculos de mil cores e, os ventos que acenam mudanças políticas e climáticas.
Faltou tufo e fraternidade insular. Até o sol, enfraquecido, foi insuficiente para recriar o cruzamento milenar de sabores e sons. A torre de São Miguel não parecia, nem de longe e muito menos de perto, o espaço de maior dimensão multicultural da costa moçambicana. Na ausência de festividades, até os toques culinários do sirissiri e do lumino, viraram insossos. Nesta celebração carente, faltaram, curioso, até os políticos e suas ocas veleidades. Dois anos antes, eles quase afundaram a ilha porque era conveniente comemorar.
Imaginei como seria o diálogo, por estes dias, com a Dona Lili. O que será que ela diria sobre esta efeméride e sobre a ilha de Moçambique? Falaríamos sobre a terra de Moisés, filho de Mbiki, ou Mussa Bin Bique, tantos outros assuntos curriculares e marginais, que dão alento a alma e ao espírito Nharsa. A dona Lili, do clã Tivane, faz parte de um grupo de escritoras de cartas. Um grupo que já foi expressivo. Agora agoniza. Os escritores de cartas têm a mesma origem, amor pelo próximo. Começam como um hobby e, depois, ganham gosto. É o analfabetismo das maiorias que valoriza o conhecimento, as habilidades dos dedos e da tinta.
Escritores de cartas, salvo raras excepções, são confidentes muito especiais e de extrema confiança. Pessoas que escutam com ouvidos de padres e espírito confessionário. Depois de discutidos os contextos e passadas as confissões, estas jamais são reveladas para quem quer que seja. Espécie de cofre-forte. Estes escritores, preferencialmente, mulheres, transcrevem para o papel centenas de segredos, as novidades familiares, rabiscam as alegrias e os nascimentos dos novos membros, descrevem, enfim, as novas cabeças do rebanho que engrandecem as fortunas, falam das colheitas, pragas e enfermidades. Mas, estas cartas suavizam, também, as tristezas da dor e do luto dos vizinhos e membros da aldeia.
As cartas não representavam, apenas, uma ligação mecânica entre quem quer transmitir episódios e factos, pois, transportam e estabelecem uma relação de fraternidade confidencial entre os correspondidos e seus entes distanciados. Dona Lili, minha escritora favorita de cartas, lá das bandas de Chicumbane, desde o longínquo Maio de 1933, escreveu milhares de cartas. Perdeu a conta e as memórias. Não sabe qual delas foi a melhor ou a menos inconveniente. Até para os desterrados na Ilha escreveu. Por isso, eu queria mesmo saber que carta ela escreveria, por esta ocasião dos 202 anos.
Imagino a Dona Lili escondida no argumento de que os primeiros correios de Moçambique foram estabelecidos na ilha, em 1811, depois do Sultão de Zanzibar ter perdido o controlo sobre o local. Não poderia ser diferente, pois, esta foi a primeira grande cidade moçambicana. Para a ilha e da ilha, esse histórico espaço de confluências culturais, deu aso a centenas de milhares de cartas. Umas para destinos mais próximos, outras, para lá das linhas do horizonte. Então, a Ilha deveria ser, igualmente, um local favorito e predilecto para escritores de cartas, metrópoles e ultramares.
Acredito que dona Lili começaria por felicitar a resiliência desse povo e dessa porção de terra que resiste às ondas mais severas e aos ventos mais devastadores. Os ilhéus precisam de se manter distanciados de qualquer conflito e viver a paz que Deus lhes proporciona. Depois, ela desejaria que mulher nenhuma passasse pelos horrores da guerra e da insurgência. Nenhum filho deveria tirar a vida de nenhuma mãe.
Os motivos para contar episódios e facetas insulares, não devem escassear. Vão desde as cartas que abordam política, tortura e desterro, velas de barcos que se furaram pela força dos ventos, peixes assustadores que afundaram embarcações. As mais dolorosas seriam as que descrevem o sofrimento de pescadores que se fizeram ao mar, e jamais regressaram da faina. Suas almas ficavam, eternamente, nas ondas verdes desse mar que nutre sonhos e canções.
Dona Lili cresceu no meio de livros. Seus pais eram ávidos leitores e tinham, sempre, um pedaço de papel em suas mãos, comentando um com o outro, o que haviam lido, ou estavam prontos para ler para os seus filhos. Conta que, lá pelas bandas de Banhane, muitas das mulheres, cujos maridos trabalhavam no Rand, não sabiam ler e escrever. As notícias dos seus maridos só chegavam por carta. Foi assim que começou a escrever para ajudar e nunca mais parou.
A paixão pela leitura tornou a Dona Lili, não apenas numa leitora voraz, mas, também, numa activista pela causa. Celebra quando vê pessoas lendo livros, não importam os espaços, e estranha a ausência de bibliotecas públicas, em boa parte das instituições de ensino e outras. Se surpreende quando pessoas, até influentes, afirmam, com certo orgulho, não se lembrar da última vez que leram um livro, por mais pequeno que este seja.
Hoje, em meio à pandemia, os escritores de cartas quase ficaram privados do exercício da sua profissão favorita. Na realidade, a chegada dos celulares e dos meios de comunicação massiva, quase silenciou esta actividade. Ainda assim, Dona Lili escreve cartas. Tem um conjunto de clientes fiéis e devotos. Confiam mais nas suas cartas do que em qualquer outro meio à disposição.
Equivocado pensar que a modernidade os derrotou. Continuam activos e presentes. Diferentes da ilha e dos seus aniversários públicos esquecidos. Os escritores de cartas sobrevivem indiferentes ao COVID e a todas as pandemias. Nosso monólogo terminou com as acusações a modernidade. Sofremos com os desacertos e a intranquilidade.
Eu quis terminar este momento, resumindo o livro “Amada” da premiada escritora Toni Morrison, onde a escrava fugitiva Sethe, mata a sua filha, para que ela não sofra, na vida, e nem tenha a mesma sorte que a sua mãe, esquecida nas celebrações. Privada de liberdade e paz. Esta paz que tarda acontecer e, também, nos faz reféns do prazer de ler e desfrutar de cada canto deste vasto país. (X)
Hoje, em meio à pandemia, continuamos ligados à leitura. Lemos de tudo um pouco. Da ficção à falsidade, da política ao desporto e do humor à genialidade. Lemos em diferentes formatos, desde o livro físico ao digital, do audiolivro às mensagens. Ainda assim, os entendidos ajuízam ausência de leituras. Lemos cada vez menos, argumentam.
Redes sociais parecem ter libertado vozes que não encontravam canal de expressão, em outras circunstâncias. São os clamores contra as limitações impostas por editoras, periódicos e jornais. Esses canais sociais vão construindo estes espaços democráticos e menos excludentes.
Mãe Janet Rae Johnson Mondlane, no topo das suas 86 primaveras, continua leitora assídua, tradicional e cibernética. Ao longo do dia, devora centenas de páginas e outras tantas mensagens. Por vezes, ainda encontra espaço para redigir breves comentários. Exorciza seu passado, suas leituras e, amiúde, continua activa, seguindo a essência do planeta e da nossa terra. No centenário de Mondlane, ela poderia e deveria ter sido mais referenciada e mais ouvida. Afinal, a maior companheira de Mondlane, sua confidente e amor eterno, continua com a sua mente lúcida e imaculada.
No passado, pela sua caneta e punhos, publicou O eco da tua voz, que retracta as longas conversas que manteve com Eduardo Mondlane. Quem os conheceu, e com o casal conviveu, sabe das milhares de cartas trocadas, no período de aproximação sentimental e, igualmente, depois de casados e, ainda, durante a luta armada. Eram, particularmente, obstinados por ler e escrever. Passamos, ainda, a conhecer a sua biografia, da autoria de Nadja Manghezi, O meu coração está nas mãos de um negro, aliás, referência obrigatória para os jovens que se interessam pelos contornos da luta de libertação de Moçambique.
No grupo WhatsApp em que ela participa, talvez num conjunto de outros grupos, os membros decidiram iniciar um processo de identificação. Uma forma de ajudar a mãe Janet a reconhecer, de entre familiares e amigos, gente próxima ou distante, aqueles cujos nomes ela ainda poderia associar. Neste exercício, os nomes viraram complementos, na descrição e narrativa, pois, as fotografias, se transformam em sujeitos e predicados. Esta foi uma oportunidade para rever o passado que, para ela, será indefinidamente presente. Um exercício que permite a matriarca do grupo saber com quem fala e responder a todos, simultaneamente.
Entrincheirados nesta quarentena coronária, tem sido um enorme prazer desfrutar dessa mulher missionária, conhecedora de tantas facetas e episódios da luta de libertação nacional, e alguém que teve a responsabilidade de fazer de Eduardo Mondlane, essa figura que a todo mundo impressiona e instiga a pesquisá-lo.
A mãe Janet Mondlane, na modernidade dos algoritmos, nos pregou uma boa rasteira. Estes grupos não costumam ser flor que se cheire. Por lá, circulam centenas de fake news. Até dou razão ao Yuval Noah Harari, pois a conectividade não escolhe idades e, muito menos, gerações, nem selecciona ou distingue o essencial. Mas, a presença da mãe Janet, ajuda a manter algum decoro.
Mas, este exercício foi para lá de sui generis. Tento, numa única foto, expressar minha identidade. Falar da matrilinearidade e dos montes Namúli. Expressar o quanto as nossas escolas carecem dos apoios do Instituto de Moçambique; que as bibliotecas andam despidas do essencial, livros. Nesta foto, também, queria poder falar das jovens mulheres que sentem na pele os desmandos e abusos de quem as deveria proteger. A fotografia precisaria minimizar tudo o que o Covid-19 destapou e revelou, a dureza da carência e da pobreza.
Igualmente, dizer que conheço o quilómetro zero e, que realizamos uma intensa jornada de comícios e visitas históricas a Nwadjahane. Nessa circunstância, ainda me recordo, foram sacrificados bois, para se manterem as tradições. Nesta foto, que também enviei, queria tanto dizer que num dos comícios, quando foi necessário fazer apresentação pública da comitiva, a Nyeleti Mondlane, sua caçula, estava ocupadíssima preparando as iguarias e cozinhados. Chamada para o palco e, sem que tivéssemos dado conta da sua ausência, alguém, bem-humorado, a meio do público, gritou: - “a Cda Vice-ministra está na cozinha”. Uma gargalhada sem limites. Assim será, sempre, esse pequeno lugar, que foi a escola de vida de Eduardo Mondlane.
Neste centenário de Eduardo Mondlane, que não deveria terminar, cada uma das fotos deveria expressar sua gratidão para com o arquitecto, mas, acima de tudo, entender a sua grandiosidade e re-significar a sua morte prematura. Quem sabe, teria sido oportuna a revelação dos contornos do seu assassinato e da perícia policial que determinaria o fatídico 3 de Fevereiro de 1969. Só se passaram 51 anos e parece que a nossa memória colectiva esquece, com facilidade, que a história precisa de ser reescrita.
A Universidade Pedagógica de Maputo (UP-Maputo), na sua nova versão, tem a honra de voltar a homenagear um dos mais talentosos e nobres músicos moçambicanos, Gabriel Ruben Chiau. Octogenário e cuja paixão pela música se estende desde a longínqua década de 50, na missão Suíça, pela mão pastor Daniel Clerc. Gabriel Chiau, como carinhosamente o conhecemos, tem, ao longo de décadas, personificado, com mestria, os propósitos do homem e da sua mente.