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Carta de Opinião

terça-feira, 31 dezembro 2019 09:33

Flores lindas em vão *

A criança estava internada numa enfermaria de adultos, onde reinava um mutismo quase absoluto, para disfarçar a dor das chagas providas da carne e do espírito. Porém o cheiro característico dos remédios e da putrefação das feridas, tinha outra direcção, triunfava por sobre o silêncio de um lugar que ninguém cobiça. Aquilo é uma desolação. Leva-nos a uma profunda comoção ao ponto de não podermos conter as lágrimas, que vão transformar o nosso rosto em albufeira. Mas esta é a realidade, ou uma parte das consequências de uma guerra estúpida que durou dezasseis, calcinando tudo até à categoria dos escombros humanos.

 

São homens e mulheres amontoados no mesmo sítio, como entulho sem esperança. Gemeram até a exaustão apelando a intervenção dos médicos, e os médicos não cabem em si mesmos, e como todas as forças esvairam-se, já não se ouvem os gritos. Muitos estão deitados de tal maneira que a sua respiração é imperceptível. Não se sabe se estão mortos ou continuam vivos. O pior é que aqui dentro a temperatura é muito elecada. O ar está por demais abafado, e o pessoal da saúde já não tem como fingir o cansaço.

 

Decorre o ano de 1985, e por estas alturas pode-se dizer que se está no auge da matança, onde não se poupam nem as mulheres grávidas, nem as crianças. E uma dessas vítimas é esta menina que está aqui, engessada nas duas pernas, dos quadris até aos pés. Os braços estão livres, permitindo, assim, que as mãos possam enxotar as moscas que sobrevoam o rosto amadurecido pela dor e pelo medo.

 

Não tenho coragem de me aproximar desta criatura que olha para mim com ternura. Mas ela magnetiza-me naquele coraçãozinho. Então, naquelas circunstâncias em que estou envolvido como numa teia amorosa, não tenha outra escolha senão partilhar, de alguma forma, o destino desta pequena paciente da guerra fraticida. Vou para junto dela.

 

- Senta aqui, tio!

 

Olho para o redor de mim e não vejo nenhum agente da saúde por ali. Sei que não é permitido sentar-se à cama dos doentes, mas eu não podia recusar o pedido de um anjo. E aquele gesto era mais que um pedido, era um apelo muito forte por demais. Capaz de me penetrar profundamente os sentimentos. Sentei-me, fazendo um esforço tremendo para conter as lágrimas que fermentavam dentro de mim, e antes que eu encontrasse uma palavra apropriada para articular, ela acariciou meu braço e disse assim, tio, estou a pedir bolacha e refresco.

 

- Está certo, volto já.

 

- Está bem, tio.

 

Lá fora podia chorar livremente, deixando as lágrimas deslizarem como dois fiapos de um rio dorido. Caminhei como um louco para a loja, de onde fui trazer as bolachas e o refresco. Todavia, antes passei pela estufa do Conselho Municipal de Inhambane e comprei umas flores para a minha amiga. Estou entre a alegria e a tristeza, movendo-me novamente como um louco, agora de volta ao Hospital.

 

Entrei de rompante na enfermaria e dirige-me directamente à cama da menina, onde ela já não estava.

 

- Senhor, a menina morreu.

 

- Aonde é que ela está?

 

Era uma pergunta sem sentido que eu fazia. Saí imediatamente com as flores na mão, e os doces, e as bolachas, sem saber o que fazer.

 

  • Tomara que Moçambique não volte jamais a situações do género

Este breve artigo reflecte sobre o papel da cultura nas relações internacionais e seu recente protagonismo nas relações diplomáticas entre China e África. A inclusão da componente cultural nas diferentes agendas estatais tem influenciado de forma substancial nas relações exteriores e diplomáticas entre Estados. A diplomacia cultural representa a principal subárea da diplomacia pública e é tida como um instrumento importante na aproximação de povos, contribuindo para o estabelecimento de vínculos culturais entre Estados. Ela joga um papel fundamental na construção imaginária local sobre outro Estado.

 

Antes, importa contextualizar em termos históricos as relações diplomáticas sino- áfrica. Historicamente, segundo aponta Michel & Beuret (2009. P. 31-32), o relacionamento sino-africano é originário dos anos 1950 e 1960, quando a Conferência de Bandung, em 1955, lançou as bases do movimento dos não-alinhados e a esperança de um desenvolvimento Sul-Sul e quando a China apoiou os movimentos de libertação dos vários países africanos em relação às potências colonizadoras europeias. Após vários entraves internacionais que dificultavam uma melhor relação entre as partes, nos finais dos anos 90, a China consegue estabelecer a sua primeira política africana que “visava o reforço dos laços políticos com os líderes africanos, e a penetração dos interesses comerciais chineses em África” (Cunha, 2012, p. 340).

 

Enquanto actor internacional, a China procurou ser um parceiro estável, de confiança e que não precisava de ser temida. Estabeleceu uma amizade que em primeira instância tomou a Cultura como arma principal, apelando os aspectos históricos comuns de subjugação ao colonialismo e imperialismo do Ocidente e pelos Princípios da Coexistência Pacífica que estabelecem uma estratégica marcada pela lógica de win –win e pela inexistência de condicionalidades político – ideológicas.

 

De modo a complementar a aproximação específica a África, China adere ao multilateralismo, redesenha os seus mecanismos de intervenção externa e aplica aquilo que Kurlantzick (2007) chama de “tools of culture, que reflectem que a “cultural promotion is part of a broader effort at public diplomacy”. A liderança política chinesa encara desde ai, a cultura enquanto componente central das actividades de diplomacia pública. Em 2004, cria Institutos Culturais com objectivo de promover a língua e a cultura chinesas e, indirectamente, contribuir para a construção de uma imagem positiva e compreensão da China no plano internacional. Hoje, existe mais 38 IC’S em África, cursos de língua e culturas chinesas lecionados em diversas Universidades Africanas (o exemplo da Universidade Eduardo Mondlane) e cerca de 50 milhões pessoas aprendendo mandarim fora da China.

 

O país conseguiu implementar com sucesso o “tool of culture” na sua diplomacia pública, colocando a cultura como componente principal no estabelecimento de relações douradoras com o continente africano. Soube explorar as semelhanças históricas – culturais “de povos antes oprimidos pelo ocidente” para acercar-se ao continente e vender a ideia de ser um “parceiro confiável, estável e que não deve ser temido”.

 

Estas estratégias incomodam até um certo ponto ao velho continente, que antes assumia um poder diplomático cultural em vários países africanos, influenciado pela relação histórica- colonial, semelhança de idioma e de certos traços culturais herdados. É, talvez por isso, que o presidente Francês, Emmanuel Macron, propôs recentemente a restituição plena e incondicional de todos os bens que foram retirados do continente africano “sem o seu consentimento”. Para os críticos, trata-se de uma estratégia que deverá enquadrar as relações de Paris com África, num contexto em que a Europa começa a perder espaço no continente, ou, como dizem os mais críticos, de um golpe de teatro no palco da diplomacia cultural? Por que razão fala-se apenas em restituições a África quando França teve uma presença importante noutras geografias? Questiona-se…

 

O certo, é que as potências mundiais ganharam consciência da importância da cultura nas relações diplomática e dados indicam que o século XXI será efectivamente a idade de ouro do impacto dos factores culturais nas relações internacionais. Por isso, o objetivo da diplomacia cultural tem sido de influenciar positivamente na opinião pública e nas elites de opinião dos Estados.    

 

Tal como a China entendeu que para melhorar a sua imagem no panorama externo era necessário usar mecanismos de diplomacia pública assentes em factores culturais, Moçambique pode muito bem fazer o uso estratégico da sua localização geográfica (corredor de acesso a vários países Africanos e aglutinador de culturas) e da sua rica diversidade cultural para estabelecer relações diplomáticas com um teor multidimensional. De que forma? (Assunto a abordar no próximo artigo).

 

Belarmino A. Lovane

Uma das maiores dificuldades (e quotidiana) dos moçambicanos prende-se com a localização de um determinado endereço físico. Acredito que o leitor já esteve inúmeras vezes na situação de explicar a alguém ou a de ser explicado (sobretudo ao telefone) onde se localiza determinado sítio. Imagino a dificuldade enfrentada por ambos sobre algo que a partida parecia óbvio. Nesta situação é normal que se desista ou se recorra a outra (s) pessoa (s) tanto do lado de quem explica como do aquém é explicado. E mesmo assim: da mata densa não sai nenhum coelho.
 
Assim ocorre com o processo de desenvolvimento do país. O exemplo mais flagrante é o da Ajuda ao Desenvolvimento capitaneada pelos países mais ricos do Ocidente em apoio aos países pobres, na sua maioria africanos. O Ocidente se esforça às estopinhas para explicar aos países receptores da sua ajuda, incluindo Moçambique, como se chega ao desenvolvimento. E para tal, fora a explicação (técnica), aloca avultados recursos financeiros e equipamento para tornar o caminho menos penoso e célere. 
 
Há mais de seis décadas que se anda nisto e os países receptores da ajuda ainda não localizaram o desenvolvimento. Onde está o problema? No explicador  ou no  explicado? 
 
No primeiro e corriqueiro exemplo fiz referência a desistência e a mudança de uma das partes ou ainda de ambos como uma das saídas do imbróglio. Neste sentido e face as dificuldades na localização do desenvolvimento as mesmas hipóteses deviam ser equacionadas como uma das saídas para o caso da localização do endereço do desenvolvimento.
 
Atendendo que o arrolado é um assunto de extrema urgência é caso para que se diga que os dois factos requerem – pelo menos entre portas nacionais - a necessidade urgente de uma profunda reflexão relativamente às dificuldades experimentadas pelos moçambicanos na forma de chegar a um determinado endereço físico e na de localizar o desenvolvimento.  
 
Até lá fica a deixa: não se pode localizar o endereço do desenvolvimento sem que se domine previamente a localização de um simples endereço físico. Todavia, havendo uma ténue possibilidade e necessidade, fica um apelo para o ano de 2020: quem ajuda aos interessados a localizar o endereço do desenvolvimento de Moçambique ?
terça-feira, 17 dezembro 2019 13:09

Samukhela

A primeira coisa que fiz, ao entrar no pequeno autocarro que vai-nos levar a Massinga, foi olhar para o condutor no sentido de tentar avaliar a sua compostura global. Estou sentado no banco da frente, lado a lado com o dito cujo, do qual ainda não tirei nenhuma ilação. Ele tem a cadeira reclinada, com os dois braços a servirem de almofada, mas logo que se apercebeu da minha presença, mudou de posição. Endireitou o encosto, levando de seguida as mãos ao voltante de uma viatura que está inerte, à espera de completar a lotação. 

 

Virou-se para mim e saudou-me cordialmente, transmitindo a imagem de uma pessoa educada. É um velhote que já deve ter passado, de algum modo, a fasquia dos sessenta, porém nota-se ainda nele,  a robustez física de alguém com capacidade para enfrentar o asfalto e seus perigos. Mas essa é apenas a minha impressão, aliás, ainda nem sequer estamos em movimento, para aferir se tudo aquilo que sinto deste personagem, vai entrar em consonância com a realidade, quando estivermos  por sobre as pedras do caminho.

 

Estamos na Terminal da Maxixe, um lugar de bulício como toda esta urbe em alucinante crescimento. Lá fora não faltam os vendedores ambulantes que não páram de bater à nossa janela propondo-nos qualquer coisa para comprar. A canção dos cobradores, vulgo “mangueme” em bitonga, não tem pausa enquanto as pequenas viaturas não estiverem lotadas. É uma linda canção cantada por várias vozes joviais, que estão ali  na luta pela vida: Massingaaaaa! Vilankulooooooo! Inhassoroooooo! Chicuqueeeeee! Morrumbeneeeeee! E a imagem dos veículos perfilados, também é bela. Parece a arrumação dos versos que vão compor uma quadra para Rosa Chicuachula, de Amin Nordin.

 

Já estamos a partir, como uma aeronave que rola lentamente até ao fim da pista, para de lá convocar a força máxima dos motores. Dentro do carro há um silêncio, e se esta manifestação não se chama silêncio, então é um agradável sussurro. Parece o murmúrio do próprio mar que se estende aqui à nossa frente, com a cidade de Inhambane do outro lado. Isto é uma levitação.

 

O condutor apela-me ao aperto do cinto de segurança, e já livre do frenesim, próprio das cidades moçambicanas onde todos vendem e todos querem comprar, eis que liga o aparelho de música, que não vai, mesmo assim, perturbar o silêncio que reina aqui dentro. É Gimo Remane que canta para uma plateia em movimento, levada por um velhote sereno, como tudo o que está a sua volta. A música de Gimo não abalroa, quanto mais não fosse, ela sai de um volume quase imperceptível, como as próprias vozes dos utentes deste pequeno autocarro que desliza suave. Ou seja, há três silêncios audíveis neste interior, o do motor do carro, dos passageiros, e de Samukhela, a música desse makhuwa que nos embala. 

 

Naquele ambiente as palavras serão supérfluas. Para quê as palavras, se elas estão completas nesta música! Para quê as palavras, se o silêncio já nos chega, como o próprio amor, que não se faz com palavras, mas com o silêncio e o doce gemido! O resto foi uma viagem leve, que terminou com a nossa chegada ao lugar mais efervescente da província de Inhambane, ouvindo Sibongile Khumalo, no seu retumbante  Mountain shade. 

terça-feira, 17 dezembro 2019 07:24

RESGATE – A minha escolha para o melhor de 2019

Escrevi esta crónica em dezembro de 2018. Mês em que o filme RESGATE fez a sua correção de cor, em Lisboa. Sete meses antes de estrear. Vimos o filme nos estúdios da Tobis, no Lumiar, para quem entende de cinema percebe a simbologia deste momento. O que escrevi não pode continuar na gaveta. 

 

Teria sido um ótimo spoiler. É o melhor que Moçambique levou ao Mundo em 2019. Podem acreditar. Já esteve em cinemas comerciais em Portugal, bateu o Rei Leão e foi presença assídua em festivais na Europa e em África. Agora lança o seu CD e streaming. 

 

Uma produção independente e a força de querer, de um grupo de pessoas que não desiste de sonhar, num país em que os velhos insistem em não nos deixar assumir um lugar merecido, suado e especializado, e quem vem de fora só quer sugar. O RESGATE já bazou! 

 

“Assim que entra a banda sonora dá um arrepio. Vêm memórias. Vem o presente. Vêm os dias quentes do nosso grande Maputo e a esperança que acompanha "Bruno" a caminho de casa. Ao sair da penitenciária ele quer resgatar a sua família e ser feliz. 

 

Esta podia ser a crónica de um filme normal e de uma realidade perfeita que queremos ver retratada nas telas de cinema.

 

Histórias de amor e finais felizes. O RESGATE não é isso, é muito mais. 

 

Tive a oportunidade de assistir a esta produção independente escrita por Mickey Fonseca e direção técnica de Pipas Forjaz. 

 

É um ato de coragem de um grupo de pessoas que arriscou. Um filme pensado com os pés no chão e que conta a história da minha geração. 

 

Uma geração que pertence a um dos países mais lindos do mundo que todos os dias se confunde com um ecossistema que nada tem a ver com a realidade do dia a dia de milhões de jovens que passam ao lado das "boas práticas" e da cooperação de Moçambique com o mundo. 

 

Homens e mulheres que já são pais e são filhos de uma independência que os torna dependentes da necessidade. RESGATE vem confirmar que o cinema feito em Moçambique e por moçambicanos já não contempla apenas os passeios longos e bucólicos na marginal, nem a linguagem poética e pós-colonial que agrada a gregos e a troianos e atrai financiamento para contar histórias que já não nos pertencem. 

 

Volto a reiterar que é o dia a dia, a vida das ruas de muitos homens com quem nos cruzamos no Estrela (mercado) quando vamos às compras ou recuperar uma peça do carro que de manhã já não acordou nele. 

 

É a vida daquela moça que nos vende cabelo e cruza a cidade de norte a sul para garantir a sua subsistência e a dos seus. É uma história de amor, também, onde duas almas se cruzam, se amam e acreditam num futuro melhor. 

 

Sol de pouca dura já que, como contava há pouco, assim que "Bruno" se vê em liberdade começam as tentações. O seu olhar terno esconde uma já vida anterior e assim que consegue chegar a Marracuene para reencontrar a sua mulher e a sua filha, tudo volta. Nesta ficção vive-se o minuto, mas não aquele minuto à espera que acabe e sim o viver do que vem a seguir. 

 

Filmado no grande Maputo e contemplando as zonas de Boane, Marracuene e Matola, RESGATE não é um filme da town e sim o epicentro de onde tudo se passa. Não é nos prédios altos do cimento que se luta pela sobrevivência, que se arranjam gones e que se perdem vidas. É numa periferia em crescimento que se sente o pulsar desta geração. 

 

No decorrer da trama acredito que Mickey tenha olhado para esta realidade e prestado a justa homenagem à Matola, esta cidade a oeste de Maputo. Cidade onde cresceu e que conhece com os olhos fechados e que serve de pano de fundo para expelir memórias adaptadas aos nossos dias. Aos cinemas que ia na infância.  

 

Depois de matar saudades da sua família, “Bruno” decide mudar de vida. O que ele não percebe é que não basta querer e é preciso poder. Refém do seu passado e com problemas que lhe atrasam o futuro o Mulato ou "Mullas" como lhe chamam os bradas regressa ao mundo do crime. 

 

Mesmo apesar de ter tentado procurar trabalho, a emergência de querer resoluções volta a arrastá-lo para aquilo que hoje em dia chamamos de DNA. O que ele acha que sabe fazer e se sente confortável. Crime. Aquela que podia ser a sua a mais fácil tarefa torna-se no seu maior problema. 

 

RESGATE aborda de forma nua e crua uma situação que parece não ter fim na vida real. Os raptos. Talvez por isso o crowdfunding para o filme tenha sido mais efetivo do que ser apoiado por marcas que não se querem associar ao maior tabu do país, mas que leva famílias de norte a sul ao desespero e são desembolsadas milionárias quantias em prol da liberdade! Antagónico, não é? 

 

"Bruno", o protagonista e ator de primeira viagem revela-se um especialista em atividades criminosas. Com o seu ar contrariado, doce e perdido acaba por se tornar a peça principal dos raptos, o que contrasta com o speed do seu amigo de infância que o resgata para o seu novo ou velho presente. 

 

Presente envenenado, já que a quadrilha que acompanha acaba por cometer erros de amador. À medida que a história se vai desenrolando na terra vermelha transporto-me para qualquer outra cidade europeia. Podia ser Paris e os seus arredores ou os Banlieues onde as oportunidades também são escassas e rapidamente a pressa pode ser fatal. 

 

É o que me agarra ao filme. Mickey Fonseca mostrou o seu país, mas saiu dele. Não almeja o perfil hollywoodesco, mas é filme para salas de cinema em todo o mundo.  A abordagem contemporânea e o slang/calão utilizado é local, mas o problema é global. Toca na ferida de uma globalização que não acompanha mentalidades. 

 

Os diálogos e os momentos de humor fazem-nos relaxar no meio da tensão e a nós, moçambicanos, faz-nos sentir em casa. Posso arriscar que todos, um dia, conhecemos ou tivemos contato com uma das personagens deste filme e que já nos questionámos o porquê da escolha desse caminho. 

 

A banda sonora pode ajudar a dar respostas, uma vez que foi produzida a dedo. Podemos chamar-lhe homemade. Detalhes que tornam RESGATE ainda mais especial. Juntam-se os temas de Azagaia, o rapper que coloca o Povo no Poder, pois é do Povo que se fala.”

 

Do tribunal distrital de Brooklyn, cidade de Nova Iorque, Estados Unidos da América, ficamos a saber, segundo a acusação americana, que Jean Boustani  um gestor sénior de uma empresa estrangeira relacionada com as ditas dívidas ocultas é um Robin Hood de avesso. Este ficou famoso por tirar dos ricos para dar aos pobres. Por sua vez, Boustani, entre outros, por ter sido acusado (e já absolvido) pelos americanos de tirar dos pobres (moçambicanos) para dar aos ricos de várias nacionalidades, incluindo a moçambicana. 
 
 
E o que Boustani tem a ver com a ajuda ao desenvolvimento (o apoio dos países ricos aos países pobres iniciado com o pós-independências, sobretudo de países africanos)? 
 
 
A luz e concluindo o que um antigo líder mundial (já falecido e creio de nacionalidade israelita) disse um dia e a propósito do que podemos apelidar de "bostanismo" -  subtrair dos pobres e dar aos ricos – o seu modus operandi é o mesmo da ajuda ao desenvolvimento. Segundo o tal líder esta ajuda consiste em tirar dos pobres dos países ricos e dar aos ricos/elites dos países pobres. E no circuito deste exercício sobressaem os “beltranos da vida" que pululam dos dois lados: o do doador e do doado. 
 
 
A literatura sobre a ajuda ao desenvolvimento atribui a esta mais fracassos do que sucessos e já passam mais de seis décadas. No mesmo trajecto se encontram as boas intenções de Boustani em ajudar Moçambique com o seu alegado projecto de protecção marítima. Por idêntico modus operandi e efeitos o Jean Boustani foi levado à barra do tribunal. E em relação aos protagonistas da ajuda ao desenvolvimento: quem ou a quem cabe leva-los à barra do tribunal?  
 
 
Certa vez, a respeito dos "beltranos da vida", num convívio de celebração - entre os beltranos do Norte e os do Sul – por ocasião do início de mais um projecto (taxa de sucesso) do apoio externo ao desenvolvimento, um dos "beltranos do Sul" tomou a palavra - em representação de um consórcio também regional e receptor da ajuda - para agradecer aos visitantes por mais uma "taxa de sucesso". Em seguida fez uma caracterização do circuito (exógeno e endógeno) do sistema da ajuda ao desenvolvimento, sobretudo como os protagonistas, de fora e de dentro, incluindo ele, tiravam proveito do que chamou de  "benesses do sistema" no lugar de males do sistema. 
 
 
E para fechar a sua intervenção pediu um "tchim-tchim” em nome de mais e mais projectos em benefício das comunidades mais carenciadas, acrescentando de que tais comunidades mandavam um abraço de eterna gratidão. No momento do brinde ainda clamou um suculento “Is a good system, comrades”, arrancando aplausos e gulosos goles dos homólogos, internos e externos, presentes na celebração.  
 
 
Por estes dias sinto este episódio nos olhares da pérola do índico e suponho que semelhante "tchim-tchim" tenha sido feito - algures e pelo mundo fora - a reboque da recente absolvição de Boustani. Ademais e para a História ficará registado a inquietação sobre quem foi absolvido em Brooklyn: o Boustani ou a bosta do sistema?