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Carta de Opinião

quarta-feira, 12 fevereiro 2020 10:19

Adios, “Dôs Santos”! (1929-2020)

Há poucos dias, compulsando caixotes de arquivo, achei o original do livro “O Processo Histórico” de Juan Clemente Zamora que prometera oferecer a Marcelino dos Santos, histórico nacionalista, poeta  e político moçambicano.  A decisão de oferta foi em resposta a curiosidade  dele em conhecer a minha biblioteca, manifestada durante uma de duas longas reuniões em que eu participara com ele e  outros convidados no mês de Janeiro de 2007. Recordei-me da promessa no texto “Por onde andas, Kalungano?” escrito e publicado, em Maio de 2019, por ocasião  da celebração do  seu  90º aniversário natalício.

 

Na publicação do texto, um dos comentários dizia: “Há que saldar igualmente a promessa oculta” (oculta no sentido de que Marcelino não sabia de tal promessa).  Confesso que me arrependo por não tê-lo feito e hoje, 11 de Fevereiro de 2020, com a sua morte,  a dívida  - fazer chegar “O Processo Histórico” a Marcelino dos Santos,  também Kalungano, Lilinho Micaia ou ainda  “Dôs Santos”- ainda continua por saldar. Segundo Óscar Monteiro, outro nacionalista moçambicano,  o “Dôs Santos” era o toque francês pelo o qual o mundo chamava a Marcelino dos Santos nos corredores das conferências internacionais.

 

Enquanto  penso numa alternativa à física  para a  entrega do livro e  fora os episódios dos “meus encontros” com Marcelino dos Santos, narrados no texto a que me referi acima, vêem-me à memória outros momentos e circunstâncias, não tão importantes, mas interessantes,  que têm em Marcelino dos Santos  o foco central.

  

Nos preparativos das  duas e longas reuniões citadas anteriormente, o  interlocutor  destacado por Marcelino dos Santos contou-me um episódio de ambos quando da participação de Marcelino dos Santos  - como convidado e orador - numa conferência internacional em Paris, França, algures em meados da década de 2000. Creio que foi por ocasião da celebração cinquentenária de um encontro internacional da nata intelectual de nacionalistas e poetas africanos, e não só, que se realizara  igualmente em Paris no qual Marcelino esteve presente. Aliás, nessa celebração ele seria um dos ainda vivos participantes desse memorável encontro.  Na preparação do discurso, o interlocutor conta que  Marcelino dos Santos estava relutante em  usar uma certa frase por si recomendada, mas no final aceitou-a. Na apresentação, essa frase foi muito apreciada o que levou Marcelino dos Santos  a comunicar  ao interlocutor que  ele, o interlocutor, passaria  a citá-lo quando a empregasse.

 

Numa recente viagem a  Angola,  visitei,  em Luanda, o Majestoso Mausoléu Agostinho Neto, nacionalista e 1º presidente de Angola. Na sequência de fotografias emblemáticas  que passam numa tela gigante vi o inconfundível  “Dôs Santos” nos tempos passados e de esforços nacionalistas para  as independências africanas. Emocionado, enchi-me de orgulho e ao virar para os lados por pouco dizia aos outros visitantes: aquele é meu “amigo, meu  camarada, meu líder!”. 

 

Muitos  países africanos  exaltam os seu líderes históricos.  O Senegal, Gana e a África do Sul aclamam  Senghor, Nkrumah e Mandela, respectivamente,  e Moçambique aclama Marcelino dos Santos, correligionário das mesmas andanças nacionalistas.  Nelson Mandela, o líder histórico  sul-africano, um pouco depois de ser liberto (por coincidência no dia 11 de Fevereiro de 1991) perguntara por Marcelino dos Santos num dos primeiros encontros que tivera com delegações moçambicanas. Aliás existem fotografias que testemunham um encontro de Mandela  com “Dôs Santos” antes de  Mandela  ser encarcerado por 27 anos e até da Frelimo ser criada em 1962. 

 

Fora as recordações habituais de ocasião , Marcelino dos Santos também deixa outras facetas para serem lembradas.  Uma delas, a de temido dirigente, foi eternizada na sua passagem pela Beira, na qualidade de Dirigente-residente/Governador da Província de Sofala. Há poucos dias, essa faceta foi  recordada a reboque de um suposto recrutamento militar à moda da temida “operação tira-camisa”, atribuída a ele nessa passagem pela Beira nos anos de 1983 à 1986 .

 

Uma outra faceta que retenho era a sua veia desportiva e solidária. Ir a um  recinto desportivo , fosse qual fosse a modalidade, e cruzar-me com Marcelino dos Santos era tão normal que passou a ser uma regra.  Uma das vezes,  nos anos 80, num domingo de futebol, não me cruzei com ele, mas senti inveja de adolescente por causa da sorte de um amigo  que pedira e apanhara boleia de Marcelino dos Santos no seu carro protocolar, do centro da cidade  até ao Estádio da  Marchava.

 

Ainda no campo das múltiplas  e conhecidas facetas de Kalungano , uma a registar é a de  boémio.  No livro “O meu coração  está nas mãos de um negro: uma história da vida de Janet Mondlane”, escrito por  Nadja Manguezi , uma das passagens se refere a essa particularidade. A propósito testemunho que as noites de Maputo não eram indiferentes para ele. No início dos anos 90, numa dessas noites e na febre das festas nas flats, cruzei-me com Lilinho Micaia.  No decurso da festa e a pretexto de apanhar ar, eu procurava, no espaço comum do prédio, um lugar recatado para trocar algumas palavrinhas. Feito o diagnóstico e enquanto me aproximava, oiço uma voz poética e familiar pronunciando: “Olha para o outro discreto”. Foi bem baixinho, mas o suficiente para que eu ouvisse e partisse para uma outra freguesia. 

 

Com a sua morte - a partida de  Kalungano, Lilinho Micaia, “Dôs Santos” -  acredito que o vazio que deixa será  preenchido por  inúmeros testemunhos que imortalizarão Marcelino  dos Santos.  Um Homem cuja dimensão e trajectória a História deve o seu registo do mesmo jeito que me cabe ainda cumprir a  promessa oculta: oferecer a Marcelino dos Santos o original do livro “O Processo Histórico” de Juan Clemente Zamora. 

 

O dia 11 de Fevereiro de 2020,  será apenas o de partida terrena de Marcelino dos Santos. Em jeito de despedida, chamar  à colação uma das suas célebres frases:  “Enquanto houver revolução por refazer, não há tempo para morrer!”. E a propósito da frase  e da pergunta “Por onde andas, Kalungano?”  o país inteiro responde: “Estou aqui!”   

 

Saravá, “Dôs Santos”!

 

Sempre tive um fascínio intenso pelo entardecer. Arrebata-me o vermelho-amarelado espalhado pelo pôr sol, na zona onde, por limitação de óptica, o céu parece terminar. Toda aquela grandiosidade faz-me acreditar em novas auroras. Também porque é ao fenecer do dia que os cânticos dos pássaros retumbam, deixando-nos com a sensação de que é possível recomeçar depois das derrotas.

 

O Presidente Nyusi disse-me, ao telefone, que a entrevista – há muito desejada - podia ser feita ao fim da tarde de Domingo, na Ponta Vermelha, e eu saltei de alegria, não propriamente porque finalmente iria ser recebido pelo Chefe de Estado, mas porque o encontro vai acontecer ao fim da tarde. Ainda por cima de domingo, depois de me apetrechar com a Palavra de Deus.

 

Foram buscar-me no Hotel Radison Blu, onde estava hospedado com todas as despesas pagas, suponho eu, pelo herário público. Do meu bolso seria impensável sustentar aquele fausto, onde na casa de banho os chuveiros funcionam com sensores, e há uma garrafa de champanhe aqui na banheira, embutida num pequeno balde com gelo.

 

Alguém ligou para o meu celular e disse assim, o senhor está a ver um carro preto da marca Toyota Prado aqui na entrada? Eu disse que sim. E ele voltou a rosnar, “venha até aqui”. É daquelas máquinas que chamam a atenção pela pintura luzidia e os vidros escuros que não nos deixam ver absolutamente nada lá dentro.

 

Cheguei perto e a porta da traz abriu-se. Tremi. Pensei por uns instantes em desistir, por medo, porém não podia  fugir porque o Presidente da República, inteiro, está a minha espera. E de um Presidente não se foge. Ou seja, eu já tinha entrado na rede de emalhar, e as probabilidades de sair dalí eram por demais ténues. Mas quando me lembrei que era final da tarde, o meu coração ora descompassado, estabilizou-se. Entrei e sentei-me no lugar onde estaria acomodado, em passeio discreto,  o próprio Nyusi. Senti-me presidente da República, um posto que nunca almejei por todas as consequências que isso acarreta, incluíndo levar um balázio dos próprios guarda-costas.

 

Deslizamos suavemente pela marginal, num percurso que me permitia desfrutar da espectacular paisagem que incluiu as Ilhas Xefina e Inhaca, e ainda a Ilha dos portugueses. Mesmo assim senti-me um prisioneiro nas mandímbulas de um corcodilo, que me vai levar pela última vez a apreciar a beleza da terra, antes de me puxar  para a sinistra toca onde vai-me executar. Mas é fim de tarde, e eu vou ser protegido por esta muralha que já se tornou meu amuleto.

 

“Fizemos” a rotunda da Praça Robert Mugabe e subimos na marcha derradeira para a Ponta Vermelha, onde me espera um homem vulgar, agora investido de poderes invulgares. Não tenho medo dele, mas a Lei obriga-me a respeitá-lo como símbolo do poder. Nyusi é o nosso Presidente, “querendo como não”.

 

A primeira diferença que notei ao entrar no sumptuoso lugar que acolhe o alto magistrado da Nação, é que os pavões estimados pelo ex-chefe de Estado Armando Guebuza, já não estão lá. Foram substituídos por rolas e pombos brancos que esvoaçam livres pelas árvores frondosas, e poisam levemente por sobre a relva cuidada, que expõe um verde brilhante.

 

Permaneci dentro do carro, estacionado de forma aparentemente negligente,  à espera que me dessem instruções. Desceu o homem que ia à frente, ao lado do motorista. Logo a seguir saíu o condutor, ambos indivíduos rudes. Fiquei sozinho. Tranquilo. Porque é final de tarde. Ainda por cima de um domingo que começara da melhor forma.

 

Vejo o Presidente Nyusi a vir na minha direcção, naquele seu estilo meio cambaio, talhado não exactamente para dançar mapiko, mas para qualquer coisa indecifrável, sabido que homem baixinho é imprevisível. Traja um fato de treino vermelho e pareceu-me que acabava de fazer a barba, por isso estava com o rosto fresco. Jovial.

 

Ele próprio abriu a “minha” porta e disse-me assim, naquele sotaque misturado entre o ximaconde e swahili, seja bem vindo irmão! Desci para saudá-lo. Apertei-lhe a mão e senti que ele treimia. Eu não! Puxou-me para debaixo de uma sombra onde nos sentamos, “tête a tête”, o Presidente e eu, ouvindo a música das rolas e dos pombos.

 

Nyusi disse assim, depois de beber um gole da água mineral importada da Birmânia, não é bonito ouvir o cântico das rolas e dos pombos? E eu perguntei-lhe assim, senhor Presidente, por que é que nós os moçambicanos não cantamos assim, em uníssomo, como estes pássaros?

 

* Texto imaginário

quarta-feira, 12 fevereiro 2020 09:18

E nunca mais vi Marcelino no Chamanculo...

O carro parava, uma senhora abria uma das portas e Marcelino surgia pouco a pouco como uma semente brotando da terra. Primeiro pingava o pé direito metido em uma meia preta e depois a esquerda, as mãos, o tronco e o corpo de Marcelino completava-se fora do carro. Às vezes, antes dos pedaços de Marcelino saírem, a senhora entulhava a blusa no antebraço e estendia o braço a Marcelino para usá-lo como corrimão dos dois degraus da viatura.

 

Marcelino descia do carro, olhava para os lados e levantava-nos a mão. E nós gritávamos "vovô Marcelino du Santo". E ele sumia-se pela porta da casa da mãe. Marcelino já tinha a coluna meio curvada e na cabeça a calvície já era regada por pingos de cabelos brancos.

 

Uma empregada com um avental igual ao lenço que trazia na cabeça abria a porta a Marcelino; e ele sumia-se aos pedaços. A mãe de Marcelino era uma velha mulata que passava as tardes na varanda. Encostada na sua cadeira de rede, com as veias do pescoço desenhando-se a cada respirar e com os pés enterrados num manto xadrez. De quando em quando entravam, naquela casa, senhoras com bacias de frutas. Ora era o homem da electricidade que batia duas vezes na porta e enfiava, da folga da porta e do chão, a factura mensal. E há vezes que a casa enchia-se de jovens mulatos e todos parecidos com a velha.

 

Talvez Marcelino chegava à mãe, chorava nos seus braços e uma vez mais deitava-se no seu peito como uma criança. As mães são almofadas com um tecido que não se gasta. Quanto mais envelhecem mais macias ficam. Tenho a certeza que a velha passava a mão sobre cabeça calva de Marcelino e tornava-lhe uma vez mais um menino.

 

Depois a mãe de Marcelino morreu. A rua da sua casa ficou cheia de folhas secas na porta, nunca mais fomos ver Marcelino e a cadeira de descanso na varanda ficou vazia. Passo por lá, todos dias, e espreito para ver um mínimo sinal da mãe de Marcelino; mas a varanda contorce-se de vazio e a poeira dos cantos das paredes tem teias de aranhas que caçam moscas, a voz de Marcelino chorando no peito da mãe e a velha mulata do manto xadrez.

 

E nunca mais vi Marcelino no Chamanculo. Vi-lhe pela última vez arrastando passos num andador de alumínio, parecia um bailarino exausto e prestes a fazer a vénia a plateia; Marcelino a cada passo abria os seus braços como se quisesse, uma vez mais, regressar a Chamanculo correndo e abraçar a sua mãe guardada na gaveta sem chave da morte.

terça-feira, 11 fevereiro 2020 07:40

Quando o Estado o faz chorar

Espero que o leitor  não chore no final do texto. E já adianto que o assunto não são os impostos e muito menos os últimos acontecimentos políticos do país. Aí vai:  guardo lembranças  da luta cívica do Reverendo  Desmond Tutu ,  o primeiro Arcebispo negro  da Igreja Anglicana da cidade sul-africana  de Cabo.  Ainda guardo de outras  do tempo em que ele - também  Prémio Nobel da Paz em 1984 -  chefiara  no período pós-apartheid a Comissão da Verdade e Reconciliação da África do Sul. Nesta comissão o relatado pelos agentes ao serviço do Estado sul-africano e respectivas vítimas na época do apartheid, levara com que  Desmond Tutu  chorasse. Abaixo volto ao assunto depois de contar dois episódios intramuros.    

 

O primeiro: um dia e na temporada da revolução dei de caras com uns polícias no cruzamento da Vladimir Lenine com a Rua da Rádio. Foi do lado do Jardim Tunduru. Não portava comigo  o BI e como alternativa o polícia procurou saber onde eu  morava. Apoiado com um  caniço de uns 50 centímetros indiquei a direcção de casa que  por coincidência foi na exacta direcção do brasão da república cravado no  chapéu do polícia. Foi  um 31 cujo desfecho foi graças a uma   intervenção solidária  de solícitos  transeuntes. Não me recordo dos argumentos do polícia, mas creio que o único mal tenha  sido a “coincidência” dos aposentos: o meu e O do Estado. Do episódio  retenho a lembrança da choradeira de menino em direcção à casa. 

 

O segundo: há uns dias contei o episódio acima  a um amigo de Nampula. E este disse que tal não foi nada e que o polícia apenas  excedera no zelo. Segundo ele, muito grave  e desagradável foi o dia em que ele vira um polícia, em Nampula, a exceder  na falta de zelo e sentido de estado. Um 31 de avesso: um 13  da sexta de Agosto em pessoa. Nesse dia e numa  acção rotineira (de saque) de um  polícia este interpela um cidadão estrangeiro – a partida oriundo da África ocidental ou dos Grandes Lagos -  que farto de ser interpelado pela polícia e quiçá pelo mesmo polícia desobedece a ordem de paragem e continua a sua caminhada. O polícia insiste e o forasteiro, uns bons metros distante , vira e com elevado desprezo  atira ao ar uma moeda, provavelmente de cinco meticais, caindo a bons passos de distância do polícia.  

 

 - O que fará o polícia? cutucava curioso o meu amigo. Em seguida o polícia – imbuído com as insígnias do Estado -  caminha lastimosamente em direcção do local da queda da moeda e  agacha  vergonhosamente para apanhá-la.  Segundo o meu amigo:  foi horrível e arrepiante ver o Estado moçambicano  (território, poder político e população)   a ser vulgarmente humilhado e espezinhado em praça pública por conta de  uns  míseros cinco meticais jogados ao ar  e com altivo desdenho.  Nem  que o polícia tivesse tirado o chapéu – como o fazem ao entrar num bar -  ou que fossem milhões  de dólares atirados à rua  tal acto é inaceitável e imperdoável para a dignidade de um  Estado que se preze e queira ser  respeitado.

 

Enquanto o meu amigo  contava o episódio fúnebre  à rodos decolavam lágrimas nos nossos olhos. E aqui aterra de regresso o Reverendo  Desmond Tutu. Sobre ele é contado que no tempo da Comissão de Verdade e Reconciliação a dada altura ele  fizera questão de reservar uma bacia no gabinete anexo ao de trabalho.  E cada vez que ele ouvisse um relato funesto dos  tempos do Apartheid era em tal gabinete em  anexo que se refugiava  e chorava aos prantos. Consta que a bacia chegara até a transbordar de tanta lágrima.

 

Aposto que se a mesma ou semelhante bacia estivesse diante de nós   –  do meu amigo e eu no dia do relato das exéquias do Estado  e  hoje, adicionando o leitor depois da leitura deste texto - transbordaria do mesmo jeito  que transbordara com Desmond Tutu.

quarta-feira, 05 fevereiro 2020 13:11

Nova Aliança da Maxixe vencido pelo tempo

Era uma fogueira admirável. Desafiava as fortes chuvas que vinham, por exemplo, de Maputo e Nampula e Xinavane e Sofala e de dentro da sua zona de influência. A precipitação caía em catadupa sobre as fortes labaredas dessa lareira, que entretanto, no lugar de desvanecer, ressurgia. E triunfava nos combates. A equipa do Gomes da Maxixe, como  também vai ser conhecida esta formação, tornou-se um elo. Unia todos os bitongas e todos os vathswa e todos os vatchopi e todos os vandawu que desciam de Mambone para festejarem a magnificência de um conjunto de mito.

 

Mesmo assim, ainda alguém tentou contrariar o rumo fervoroso de uma formação que tinha um patrão forjado para as sagas. Reuniram-se dirigentes e antigos jogadores de futebol nascidos em Mucucune, um arquipélago discreto  que fica à ilharga da cidade de Inhambane,  e o obejctivo era reformular a equipa local para, com todas as armas possíveis, parar com as “brincadeiras” desses senhores.

 

Tocaram-se as trompetas em toda a província, anunciando o grande jogo que vai colocar frente a frente o Nova Aliança da Maxixe e o Mucucune, numa luta em que a equipa do Gomes da Maxixe tinha que ganhar para se manter no Campeonato Nacional, e os “ilhéus” também precisavam da vitória para ascenderem à panóplia dos grandes. No fundo o Mucucune tinha bons executantes, capazes de contrariar todas a expectativas, é por isso que o Gomes da Maxixe passou noites e noites sem dormir, enquanto o jogo não se realizasse.

 

A província inteira borbulha porque, como se propala pela voz do povo, alguém vai  morrer. Foi convidado um grupo de zorre para abrilhantar a festa que se espera intensa. O farfalhar dos trazeiros das mulheres,  libertados na dança, segundo se diz por aqui, é um forte incentivo para os jogadores. E como se isso não bastasse, vem aí a orquestra de Tmbila ta Mwaneni e a sua louca matxatxulani, que vai nos mostrar o feitiço das coxas e das ancas. Os locutores da Rádio Moçambique não páram de anunciar a realização da partida. E em todo o lado a conversa é essa, ou seja, ninguém sabe o que na verdade vai acontecer, porque esses tipos de Mucucune podem fazer das suas. Outros ainda diziam, agora é que o Gomes vai sentir o sabor do sal. E o sal vem de Mucucune.

 

O Nova Aliança da Maxixe era isso, um desiquilibrador dos prognósticos. Não é por acaso que no seu logotipo vamos ter uma gaivota ( nhalégwè em bitonga). Significa que é uma equipa concebida para atravessar mares e oceanos. Não há vento que o desvie do seu azimute. É como se todas as suas realizações fossem feitas a partir do topo, de onde já não se pode ir a mais nenhum lugar, ou melhor, de onde só se pode partir para a levitação.

 

Eles eram a glória da Maxixe, e de toda a província de Inhambane, até ao dia em que o eixo de toda a gravitação, o Gomes da Maxixe, deu o último suspiro sobre a terra. Aí tudo começou a desmoronar, até entrar em derrocada. O que nos entristece é que até hoje nunca ouvimos, a nível oficial, nada sobre uma homenagem a um homem que deu tudo de si e da sua fortuna, para alegrar o povo, onde os políticos se emiscuíam. Agora a  gaivota já não voa. E o mais provável é que sucumba de vez. O que seria muito lamentável!

quarta-feira, 05 fevereiro 2020 06:53

MOZEXIT

Dissiparam-se as dúvidas sobre a saída do Reino Unido da União Europeia e, passaram a realidade, criando alguma instabilidade, dada a incerteza de muitos dossiers por esclarecer, que levarão muitos anos. Os Ingleses fecharam os olhos e avançaram. Podia descrever inúmeras teorias desenvolvidas ao longo dos 24 meses de prolongadas discussões internas em UK, e externas, UE, ou vice-versa.

 

Porém, ficou claro que, independentemente das incertezas, ameaças e riscos do BREXIT pela UE, os ingleses optaram claramente usaram a sua soberania e decidiram o seu futuro. Europa sim, mas sem os burocratas da União Europeia. Em outras palavras, os ingleses sabem que, cedo ou tarde, estarão de volta ao mercado europeu, continuarão a partilhar aspectos de interesse comum como segurança, neo-colonialismo, e muitas outras, conforme dita a história. Os interesses que lhes une, UK e UE, são maiores que os factores de divisão.

 

Apesar de estarmos num mundo “globalizado”, os benefícios dessa integração global continuam a ser apenas para os que podiam mais. Quando elementos novos no mercado, como a China, Índia, Brasil e outros integram-se e tornam-se competitivos globalmente, ameaçando a hegemonia dos que podiam, acabam-se todas as regras de comércio livre.

 

A famosa teoria dos mercados livres muito propaladas nas academias e bibliotecas dos USA e UE, as regras da Organização Mundial de Comercio (OMC), que foram criadas pela dupla USA e UE e mais meia dúzia de países como Moçambique para legitimar a tal Comunidade Internacional, estes últimos aliciados por falsas promessas de ajuda ao desenvolvimento, deixa de fazer sentido porque os seus (UE/USA) interesses falam mais alto. Estas são as “regras da hipocrisia”, quando os seus interesses estão em jogo, tudo o resto não conta, como por exemplo o Trumpismo e as relações comerciais com seus parceiros tradicionais, como Canadá, México e China.

 

No último ciclo governativo, que terminou a 31 de Dezembro de 2019, os chamados doadores em uníssono suspenderam a relação de financiamento em aproximadamente 40% ao Orçamento Geral do Estado (OGE). Qual o impacto que essa suspensão teve na vida das famílias e gestão do país?

 

Imagine caro leitor, amanhã acordar e perceber que no seu salário foram retirados 40%, as suas poupanças valem menos 50%, e terá que fazer face as mesmas responsabilidades domésticas, familiares, pagamentos de compras a prazo, financiamentos, etc, etc.

 

Mais grave se torna porque devido ao impacto dessa suspensão ao OGE, a economia nacional retraiu, originando uma desvalorização do Metical a 100% e a taxa de juro  bancária comercial aumentou 150%, e, como consequência, as suas responsabilidades financeiras duplicaram, os preços dos produtos alimentares básicos aumentaram entre 50% a 100%, só para citar alguns casos dramáticos como desemprego, perdas de empresas e habitações, divórcios e suicídios, etc.

 

Como é que o leitor resolveria o seu plano de obrigações e responsabilidades,  mantendo-se vivo com a sua família ? O parágrafo anterior não é ficção, nem um excerto de um texto teatral dramático. Foi exactamente o que aconteceu aos 30 Milhões de moçambicanos nos anos de 2015, 2016, 2017, quando os parceiros/doadores/financiadores/especuladores tiraram o tapete a Moçambique, com a desculpa das dívidas ilegais. Os moçambicanos foram duplamente penalizados pelos corruptos das dividas ilegais, entre os quais alguns dos nossos governantes em conta com a justiça, banqueiros suíços e a tal Comunidade Internacional.

 

Como consequência desse boicote, o Governo de Nyusi, desesperado, procurou soluções como a maior parte dos chefes de famílias moçambicanas o fizeram, reinventando-se.

 

Surpresa para muitos, incluindo os doadores/boicotadores que esperavam tudo, menos a continuidade da vida dos moçambicanos, perante tamanha adversidade.

 

 Verdade seja dita é que o país continuou timidamente a crescer, os salários foram pagos, o serviço da divida externa gerido, infra-estruturas básicas como escolas, postos de saúde, sistemas de abastecimento de água, bancos nos distritos, transporte público urbano e rural foram cumpridos.

 

 O que é que BREXIT tem haver com MOZEXIT? O paralelismo entre o BREXIT e o MOZEXIT deve-se ao facto de os ingleses assumirem o princípio da sua soberania acima de todas as certezas que a UE lhes proporcionava, mesmo sabendo que os dias que se avizinham serão muito difíceis.

 

Com MOZEXIT, os moçambicanos poderão finalmente continuar a gerir os seus próprios destinos sem a hipócrita ajuda dos doadores, bem como decidir sobre políticas de desenvolvimento, alianças sem ameaças, acordos bilaterais e ou multilaterais, etc.

 

 Moçambique é membro das instituições de Breton Woods (FMI e BM), com quem devemos manter relações, porém, mesmo aí devemos filtrar o que nos convém.

 

Moçambique, ao ser expulso em 2015 das saias dos “doadores e ou comunidade internacional” teve que apertar o cinto. Contudo sobreviveu pela primeira vez sem depender dos que dizem que nos dão mas de facto são os mesmos (maioria) que sempre nos tiraram e implementaram contra nós políticas de empobrecimento.

 

Passamos o teste da maioridade, em que provamos que podemos viver com aquilo que temos e, com o que é nosso, fazendo as opções que acharmos certas, com todos os riscos de cometer erros e aprender desses mesmos erros. Sucesso é um acumular de erros aprendidos!

 

O MOZEXIT é uma oportunidade única dos moçambicanos se livrarem da má influência desses países, a fim de fazermos o caminho que muitos países africanos cada vez mais fazem e merecem a nossa admiração.

 

Se Moçambique sobreviveu um ciclo governativo com os seus próprios meios pela primeira vez desde a Independência, o caro leitor deve estar a questionar-se : 

 

Então para onde íam as centenas de milhões de dólares americanos que os doadores diziam que davam?

 

Há vários estudos e relatórios nacionais e estrangeiros que abordam desapaixonadamente a questão dos “doadores”, afirmando que aproximadamente 66% dos valores declarados para ajuda aos nossos países regressam ao país “doador” pela via de consultorias, salários dos expatriados, auditorias, procurement condicionado e outras, entre elas a corrupção cá e lá. Esta conclusão, confirmada pela escritora africana Moyo, no seu livro “best seller” Dead Aid denuncia esta falsa e hipócrita ajuda.

 

Faço votos que o governo não recue na pressão que os doadores já começaram a exercer em criar um novo “formato de cooperação”. Aprendamos com eles próprios “doadores”  como defender os maiores interesses dos nossos cidadãos, olhando para um horizonte de médio prazo, como fez o Reino Unido com o BREXIT.

 

Senhor Presidente e senhores Ministros, por favor, tenham coragem e façamos o MOZEXIT.

 

A luta continua!