Com a crise keynesiana, no passado século XX, que advogava um Estado interventivo na economia sempre que fosse necessário, visando evitar a retracção económica e garantir o pleno emprego, os países socialistas de economias periféricas (e não só) abriram-se ao financiamento às suas economias e, consequentemente, ao sector da Educação. Isso pressupôs que, entre as reformas feitas, no âmbito dos acordos com as instituições dos Bretton Woods (FMI e BANCO MUNDIAL), o estado deixaria de financiar a Educação, ficando somente com a função regulatória, passando a tarefa de injecção pecuniária maioritária ao privado. O privado, por sua vez, passaria “implicitamente” a definir o que deve ou não ser leccionado. É aqui onde toda a “desgraça” começa. Perdeu-se o controlo total e completo sobre a gestão educativa sectorial em benefício de um financiamento que colocou o país na actual alienação gravosa.
Ganhou o neoliberalismo e o comunismo, embora não seja integralmente melhor, foi enterrado para sempre. Vale a pena lembrar que os actuais ultraneoliberais herdaram a veia capitalista outrora criticada por Karl Marx e Antonio Gramsci, por terem fomentado um tipo de Educação que perpetua desigualdades de classes - formar a classe baixa para o fazer - apenas para servir o mercado (trabalhando) e formar a classe alta para o saber - capaz de conferir liberdade intelectual (pensar sem alienação) com a possibilidade de gerir as classes perenemente subordinadas.
Abro parênteses para frisar que, quanto a mim, a questão não reside no combate ao neoliberalismo, tão pouco advogo a retoma ao comunismo, mas defendo a restruturação dos pressupostos de ambos. Dito de outro modo, primo pelo hibridismo - a coabitação pacífica entre os valores vitais do comunismo e do neoliberalismo capazes de existir sem colisão à favor da humanização. Do que há na memória colectiva, alguns exemplos a ter em conta são dos países escandinavos. Tudo que seja inerente à humanização não colide. Por exemplo, se os dispositivos mediáticos como são os casos da Televisão, plataformas digitais, etc. são produtos do neoliberalismo, que se usem para libertar o indivíduo e não os ter como aparelhos ideológicos que alienam este indivíduo subalterno. Idem para as igrejas que não devem firmar-se por aparelhos ideológicos alienatórios – mas este não é o âmago da minha questão – releguemos para outro momento e voltemos à minha negação sobre o tipo de Educação que perpetua desigualdades de classes - formar a classe baixa para o fazer - apenas para servir o mercado (trabalhando submissamente) e formar a classe alta para o saber capaz de conferir liberdade intelectual (pensar sem alienação e decidir por si sobre seu próprio destino) – algo que os habilita a gerir as classes perenemente subordinadas.
Esta parte da desigualdade de classes é a que leva os nossos dirigentes cientes do problema e financeiramente capazes, em Moçambique, a enviarem os seus filhos para estudar no exterior, em escolas cuja qualidade é inquestionável. O fazem para que os seus não sejam parte integrante da massa subalterna no futuro, porque têm consciência plena do paupérrimo sistema educativo alienatório – havendo, todavia, alguns raros excelentes exemplos de superação de ex-subalternos que se firmaram no melhor sentido.
Relativamente aos professores, como referi acima, o comunismo morreu e ganhou o neoliberalismo. Isso significa que em muitos quadrantes do mundo, a elevação do neoliberalismo veio matar os sindicatos dos professores e tantos outros. A morte de tais sindicatos, pelo neoliberalismo, não pressupõe a extinção das instituições de defesa dos direitos das classes dos professores e outros profissionais. Elas continuam existindo, mas com as suas forças inactivas senão castradas. Aliás, quem financia a tais sindicatos são os próprios neoliberais que exercem controlo sobre estes, no âmbito dos seus interesses em manter estagnado todos os organismos que agem em defesa dos interesses das classes mais desfavorecidas. Foi o que aconteceu com a ONP, SNJ, OTM e tantos outros, não foram extintos, existem, mas dentro de uma sonolência mórbida que os coloca na condição inerte.
Não fomos capazes de higienizar o espírito neoliberal que se abateu sobre Moçambique. As manhas do neoliberalismo conduziram-nos a um estágio mórbido na nossa Educação, quer em termos sindicais aos professores, quer sob ponto de vista de alienação aos educandos, empurrados a serem otários inocentes e permanentes escravos de um mercado cujos mentores e seguidores devotam-se para o manter, ignorando todas as insensibilidades contra a condição humana. Somos insensíveis e alheios às preocupações do professor, e à sorte do aluno, quando o colocamos a leccionar, por exemplo, uma disciplina prática sem laboratório e o cobramos resultados. Somos insensíveis aos professores pesquisadores quando cobramos artigos científicos e afirmamos estar sem verba para financiar uma investigação, entretanto conseguimos colocar chamussas e castanhas por cima de uma mesa para entreter os estômagos dos gestores educativos numa reunião de rotina. Somos insensíveis ao aluno quando o obrigamos a participar numa aula virtual, sujeita à avaliação, mesmo sabendo que o Censo moçambicano 2017 informa-nos que 52% têm acesso ao telemóvel em Moçambique e somente 7% têm acesso à internet, sendo 8.9% com acesso ao computador. Somos insensíveis quando tomamos decisão de avançar com pacotes educativos aprovados mesmo sabendo que as nossas utopias de formação colidem com estes números sobre a realidade do país. Somos insensíveis quando as grandes decisões tomadas não são em função dos resultados de investigação, mas apenas políticos. Somos coadjuvantes da qualidade educativa que os neoliberais “impõem” às massas subalternas.
Se, para os capitalistas, a Educação das massas deve ser de baixa qualidade e formar somente para o mercado, tais sindicatos não vão vincar porque o sistema educativo mundial que foi pensado pela classe dominante é o de manter, através da própria Educação, a distinção entre essas duas classes (dominante e dominada proletária). Portanto a ideia de cindicalizar o sector da Educação em Moçambique é boa, mas, para que não seja uma ideia romântica, precisamos estar bem cientes da magnitude do problema, de modo a estarmos melhor preparados (sem emoção) para jorrar muito sangue porque o assunto é estrutural, sistemático e de dimensão universal. É por causa de tudo isto e mais alguma coisa que tenho dito: “ser professor não é apenas uma profissão, é mais do que isso, é uma MISSÃO cuja meta revela quão árdua foi a trajetória”.
*Circle Langa
Comunicólogo e Pedagogo
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Moçambique é um território com muitas novidades, bem como centenas de Grandes Chefes. Porém, o que não nos havia sido dito, em público, é que muitos Grandes Chefes da Pérola do Índico são autores de postulados e teorias, nunca antes estudados nas salas de aulas das nossas desgastadas, muitas delas internadas, Escolas e Universidades espalhadas em todo o País.
Contudo, nestes dias, a partir da mais falada tenda do País, a tenda das revelações, localizada na Cadeia de Máxima Segurança desprovida de segurança, passamos a receber aulas gratuitas sobre os Postulados negacionistas de defesa e a Teoria dos Martelos, descascados em martelanços, ora pequenos, ora grandes, sejam pretos-brancos, sejam coloridos, quer nacionais, quer chineses.
No início das audições, quem não ficou colado às telinhas de TVs ou dos smartphones, queimando energia e os poucos megabytes que tinha, para acompanhar ao mais mediático julgamento económico de Moçambique – o Caso de Querela sobre as Dívidas Ocultas?
Assim, em poucos dias, duas personagens, quase por todos desconhecidas no País e no mundo, ganharam estatuto de modelos de justiça e de luta contra a corrupção. Pelo que, não faltaram elogios nem aplausos, escoltados de choros alegres e palmas de alívio de cidadãos desesperados e com bolsos furados gotejando migalhas de miseráveis esperanças.
Em seguida, vieram os Arguidos, os quais, após definido o Código Penal em uso naquele processo, transformaram-se em Réus. Com a audição de Mutota, passamos a saber que os nossos Grandes Chefes, também, são agricultores com machambas desconhecidas, nas quais, em pleno século 21, desperdiçam milhares de dólares sem planos claros de retorno – um SUSTENTA insustentável!
À entrada triunfal de Nhangumele, foi-nos referido que o projecto que levou à contracção dos 2.2 biliões de dólares foi esculpido por artistas secretos, com técnicas mágicas, provenientes de um planeta ainda por se descobrir e, caso aquele plano funcionasse, estaríamos seguros como nação. Ele disse não estar interessado em devolver parte das moedas que nos levaram à vala comum.
Quando chegou a vez do réu mais mimado da Pérola do Índico, entendemos que Jean Boustani, lá dos Emirados Árabes, estava enganado ao chamar de Cinderela um indivíduo que teve a coragem de espalhar perfumes de arrogância e malcriadez, bem como desrespeitar a todos Moçambicanos, pois, segundo ele, além de não ter memória de elefante, como ovelha inofensiva conduzida ao matadouro, foi injustamente empurrado nas dívidas publicitadas para atacar a sua família real.
Veio o seu amigo de infância, que, também, apesar de não constar da árvore genealógica da família real, transpirou chuvas venenosas de prazeres de insubordinação à justiça associadas ao seu problema de memória de curta metragem. Apesar de ele ser elefante em esquemas (i)mobiliários e monetários, afirmou não ter qualidades daquele animal em vias de extinção.
Igualmente, vieram outros Réus e Rés, que reclamaram sofrer injustiças e perseguições do guardião da legalidade no País. Alguns mais grosseiros que outros e outros produtores de respeito e obrigados em larga escala. Algumas até cuspiram verdades face aos apelos de sensibilidade do Tribunal e outras se revelaram autênticas artistas e costureiras de esquemas milionários.
Nisto, corriam as audições em sede de Tribunal. O alarme soou e chegou a vez do Chefe dos Agentes Secretos nacionais. Em contramão a todas as nossas expectativas, o rei da selva revelou, estrategicamente, desconhecer o pelouro que dirigia, despossuir abertamente a memória de um elefante, nem saber os contornos do projecto que, segundo eles, havia sido esboçado para nos proteger. Insólito! Era o primeiro leão sem juba, que disse ter potência inferior a algumas hienas e alguns abutres que pastavam e alimentavam-se nas relvas daquele pátio nas tendas da B.O.
Além disso, o rei da selva fez-nos saber que ele era um eterno apaixonado pela sua leoa, que não parava de interceder e enviar pingos de orações em favor da vida do casal, a fim de proteger a sua imagem, malandramente manchada pela falta de atenção aos detalhes de transações bancárias planificadas, esculpidas e monitoradas pelos Agentes Secretos liderados pelo leão, que não parava de rugir diante do Tribunal e de todos que acompanhavam as sessões de julgamento.
Aliás, quase todos estávamos acostumados em ouvir vários postulados negacionistas, a saber, postulado não me recordo, postulado não vou responder, postulado já respondi ontem, postulado está consignado em acta, postulado do silêncio, entre outros misturados com caril de malcriadez.
Por conseguinte, quando todos pensávamos que havia chegado a hora de ouvir grandes revelações do espião mais esperado de Moçambique, em sede da tenda das revelações, fomos brindados não apenas com postulados negacionistas de defesa, mas com uma teoria nunca antes ouvida, que diariamente gotejava em série, a Teoria dos Martelos de um Grande Chefe.
Aliás, não era a primeira novidade: assistiu-se e ouviu-se, naquela tenda, desfiles abertos de gatos, que procuravam devorar anexos, volumes e folhas daquele processo, mas o Juiz, sem investigar ou mandar averiguar, concedeu cobertura plena aos gatos. Não demorou, aqueles animais domésticos, que dominavam as coordenadas das tendas da B.O, passaram, às mesmas horas, no final do dia, a cortar energia em meio às audições. Porém, mesmo assim, os gatos tiveram mimos.
Assim, para chamar à atenção da sua presença ignorada, os gatos ganharam a coragem, afiaram os seus dentes e mastigaram algumas folhas com provas acusatórias contra o Grande Chefe. Era um recado-ataque claro e aberto dos gatos apessoados para alertar a todos, a fim de que não fossem mais ignorados, pois, eles estavam a sofrer injustiças e eram publicitados nas tendas da B.O.
Estava a ficar claro, diante de todos, que os Postulados dos Réus e a Teoria dos Martelos do Grande Chefe faziam parte de uma estratégia malandra para abandonar a tenda da B.O com aplausos escoltados de elogios que os conduziria a caminho de casa. Aliás, os golpes de saudação do Grande Chefe, à entrada e saída do Tribunal, eram truques mafiosos para comprar a atenção dos telespectadores e internautas. Afinal, os filmes de inteligência e espionagem, que assistimos, já nos haviam alertado que um Agente Secreto ou Espião nunca fala a verdade, mesmo quando escoltado de chuvas de espancamento ou arrancados ambos olhos. Mas aquele não era o caso!
Após quebrar o recorde do seu antigo Chefe, outro Grande Chefe, cuja chefatura lhe persegue até no Língamo, sua actual residência preventiva, o Grande Chefe das três empresas do calote das Dívidas Ocultas começou a conjugar a sua teoria, aos pedaços, aos quais designou por martelanços. Todas as provas lançadas pelo Ministério Público, para o Grande Chefe, eram resultado de marteladas que se transformavam em martelanços preparados sem mestria.
Com a sua Teoria dos Martelos, o Grande Chefe começou, até, a fazer piadas e enervar o Tribunal e a todos, já que em sede de Tribunal, televisionado ao vivo, não era possível receber presentes em punhos de raiva que se acumulavam nos sujeitos para quem ele se dirigia, zombadamente.
Portanto, superando a intervenção de outros Réus, o Grande Chefe, a cada audição, em julgamento na tenda da B.O, desfilando manguais de esperteza e conjunto de postulados, abrindo livros com páginas repletas de inteligência e teorias parasitas, buzinava bem alto e raspava o chão, sacudindo a poeira e o barulho nos olhos e ouvidos do povo, para se escapar das acusações que pesavam contra si. Assim, a cada postulado e teoria, cementava mais ainda a miséria dos seus compatriotas!
Mariano, vi-te nas fotografias deitado de costas como uma baleia cuspida pela fúria do mar, os teus olhos pendurados no rosto pareciam duas lâmpadas fundidas balançando e divertindo os insectos das tuas sobrancelhas. E aparece-me que tinhas muita pressa em morrer, pois nem uma lâmina de gilete passaste pela barba e não baixaste os lábios para esconder os molares. A vida não é cruel, os homens é que o são e tu eras homem.
E porque antes de morrer não pediste apenas um minuto, um minutinho, para vestires o fato que nos exibias na televisão, um minutinho para te deixares estar no espelho e arrumares o nó da gravata, um minutinho para juntares a tua Junta e dizeres um simples adeus, um minutinho para mostrares as costas à tua Junta e depois caíres morto de costas. Custava-te pedir um minutinho?
Não te escondas de mim, Mariano. Eu apenas te quero ajudar a carregar o teu corpo cheio de balas, talvez seja pesado demais; quero acender uma pequena vela e fazer sinal de cruz com o mesmo indicador que usavas para accionar o gatilho. A vida não é cruel, os homens é que o são e tu eras homem. Foste cruel, a vida é cruel, os homens são cruéis e tu eras homem. O melhor que podemos ter no mundo é um abraço, Mariano. Não há DDR que nos tire um abraço, não há um ex-guerrilheiro do abraço, não há subsídios que nos afastem do abraço e um abraço nunca precisa de mediadores.
Dá-me um abraço, Mariano Nyongo, e eu tentarei orar pela tua alma. Juro-te que Deus tem ouvido as minhas orações, juro-te que Ele pode arranjar-te uma lâmina para barbeares o rosto, um pequeno fusível para pôr nos teus olhos fundidos, dar-te um minutinho para correres atrás do teu fato e talvez um minutinho para desarmar-te da morte.
Ouves-me, Mariano? A vida não é cruel, os homens é que o são e tu eras homem. Não quero falar dos camiões que atacaste, das pessoas que fuzilaste, das paisagens de sangue que meteste pelas janelas dos autocarros, dos homens que pastavas nas matas e das tuas mãos inchadas de calos de armas. Não quero falar disso. Quero falar dos teus olhos, que vi nas fotografias, que pareciam duas lâmpadas fundidas, dos teus olhos que não tinham força para virarem ao seu amigo de lado e ciciar: “vês que a vida é cruel, amigo?”. Os teus olhos que mesmo abertos tropeçavam no vazio.
Não quero falar das tuas reivindicações e nem dos teus homens que viviam nas matas e saíam como hienas para atacar camiões. Podia falar do saco plástico onde foste embrulhado como um cão atropelado, mas eu quero falar dos teus olhos, Mariano, mas eu quero abraçar-te. Tu mataste, foste morto e a qualquer dia todos terminamos assim; não se pode dar muita confiança a um país que carrega uma arma na bandeira. Falando em bandeira, Mariano, achas que valeu a pena tentar erguer a bandeira da tua resistência? Não sou católico, mas posso rezar o terço, quem sabe cada missanga do terço cure-te as feridas das balas e os teus olhos fechem-se de vergonha e peçam perdão por tudo.
Dá-me um abraço, Mariano Nyongo. Não perdes nada em dar-me um abraço, nada de ti hoje resta. Engano-me; restam fotografias tuas que serão exumadas das gavetas e tatuadas com cruzes vermelhas à testa, resta uma arma tua que vai enferrujar de cobardia porque não te soube proteger e resta esse meu abraço que não queres receber.
Há dois que não fecha os olhos. Não pestaneja. O médico que cuida dele está em desespero. Recorreu aos colegas, que responderam de imediato, mas a situação não muda. Nem para frente, nem para trás. Tentaram induzi-lo com aparelhos, na esperança de trazê-lo à estabilidade. Sem sucesso. Chegaram a pensar no sistema de respiração boca-a-boca, ideia imediatamente reprovada por se mostrar desnecessária. Os pulmões de Mbata Mapengo não pararam de respirar.
Nunca foi visitado por familiares desde que está aqui, não se conhece nenhum. Nem por amigos. Chegou ao hospital em estado de coma, após ter sido sacudido por um camião, cujo condutor nem sequer parou para alguma coisa, como se Mbata Mapengo fosse um cão. Foi uma mulher generosa, se calhar uma samaritana, que, passando casualmente pelo local do sinistro, parou o carro e levou o homem ao centro de saúde.
Parece um cadáver, naquela posição chocante, coberto de lençóis brancos em todo o corpo, deixando apenas a cabeça que me lembra a mulher árabe adúltera, enterrada até às axilas, com o “crâneo” à mercê das pedras. Mbata Mapengo pode estar assim, se calhar na expectativa de que haja algum milagre que lhe permita dizer a última palavra antes de morrer.
Entrei para o interior da enfermaria – onde ia visitar um vizinho - e alguém me disse que aquele senhor não fecha os olhos há dois dias. Não fala. Não pestaneja. E, segundo relatos que vão me chegando dos doentes e dos visitantes, os médicos não sabem o que fazer. Para eles, este homem não está nem morto, nem vivo. Está em estado de dúvida. Provavelmente em estado de talvez.
Aproximei-me do desafortunado, por instinto, sem saber o que ia fazer perante um cenário macabro. Os próprios médicos e os enfermeiros e outros agentes da saúde, tinham capitulado. O corpo de Mbata Mapengo recusava-se a receber sondas. Houve ainda a ideia, acreditando no que se diz nos corredores, de alimenta-lo por via retal, porém, esse recurso desconfortável não chegou a materializar-se. O anus estava duro de tal ordem que se tornou inviável esse procedimento.
Mas eu cheguei perto de Mbata Mapengo. Olhei-o nos olhos e em resposta a minha ousadia, recebii profundos arrepios na medula. Cheguei a conclusão de que tinha ido longe demais, e agora não me resta mais nada senão render-me a asfixia. Ou seja, os olhos que não se moviam há dois dias, pestanejam agora perante mim, . Mbata Mapengo saúda-me com os olhos, perfurando-me todo o interior. Então, estou completamente apavorado.
Mbata Mapengo moveu os lábios. Balbuciou. E as únicas palavras que ainda consegui captar nesse balbúcio, referiam-se ao juiz Efigénio Baptista. Eram sílabas desarrumadas. Inexpressíveis. Retalhadas. Mesmo assim esforcei-me a junta-las, tendo conseguido traçar uma linha que dizia assim, tenho pena do juiz Efigénio!
Mbata Mapengo ia dizer mais alguma coisa. Nada! Os lábios voltaram a cerrar-se. Os olhos fecharam-se, e logo a seguir ouviu-se um vibrante e profundo suspiro, que levou toda a enfermaria ao silêncio de sepúlcuro.
Passei a minha infância nos belíssimos distritos de Quelimane, Mocuba e Pebane (Zambézia) e Namuno e Balama (Cabo Delgado), onde sempre ouvia falar sobre James Bond. O meu falecido avô, Mussa Impuessa, sempre se referia a este nome, quando contava acerca da sua longa aventura de vida – ele era um Marinheiro de mão-cheia, que girou pelos quatro cantos do mundo. Mas, como eu era miúdo, não entendia a amplitude e universalidade do nome – James Bond.
Eu apenas começaria a entender sobre o nome, quando passei a residir efectivamente na Cidade de Quelimane – capital provincial da Zambézia. Lá, em conversas com amigos e professores, fiquei a saber que se tratava de uma pasta de mão. Eis que, nas brincadeiras, sempre que tivesse uma pasta do género, era, constantemente, apontado pelas pessoas da zona. Por isso, nesta altura, comecei a procurar saber mais sobre a origem do nome. Devido à nossa realidade social moçambicana, entre os finais dos anos 90 e a metade da primeira década dos anos 2000, só foi possível chegar ao âmago do problema já no ensino secundário, quando viajei para Milange.
Em Milange, a casa onde me hospedara tinha uma colecção de filmes que ainda não havia assistido em Quelimane. Entre os filmes, constava a saga 007, o código do Agente Secreto fictício do serviço de espionagem britânica MI-6, criado pelo Escritor Ian Fleming, em 1953. Na altura, o papel era desempenhado por Pierce Brendan Brosnan, o actor e produtor irlandês que actuou em quatro filmes da saga do Agente 007, hoje interpretada por Daniel Craig.
A partir daquele momento, a concepção que tinha sobre o nome James Bond mudou. Percebi que se tratava de um super agente operativo que defendia, a todo o custo, os interesses britânicos em diferentes partes do mundo. E como a saga é meramente fictícia, com o tempo, a idade, a escolaridade e a compreensão da complexidade do funcionamento do mundo, aprendi que existem, no mundo, vários , inclusive na minha própria terra. São homens que dão tudo e carregam vários segredos dos seus países. Portanto, matam e morrem por eles!
Quando vejo a saga cinematográfica 007 e o papel de James Bond, eu percebo que existem homens cujas vidas se resumem em defender a sua bandeira e fazem-no a todo o custo. Entretanto, devido à liberdade de actuação destes homens, às vezes, eles acabam por atropelar várias linhas de funcionamento social, político, jurídico, económico, entre outras.
Por natureza, os James Bonds são cavaleiros das realezas. Defensores ocultos e acérrimos dos Estados. Investigadores criminais e combatentes do bem de todos e estão dispostos a darem a sua vida pela dos outros. Portanto, os James Bonds devem ser incorruptíveis e guardiões dos segredos mais sombrios das estruturas máximas das suas nações.
Estranhamente, numa fase em que o meu entendimento sobre o papel de um James Bond é maior e profundo, numa altura em que quase todos nós temos a televisão em casa e, literalmente, nas mãos, eis que ficamos a aprender como os James Bonds se infiltram nas nossas vidas e nas instituições públicas e privadas. Ficamos atentos à tela a aprender técnicas de espionagem. Gratuitamente, somos brindados com uma formação intensiva sobre como ser James Bond. Tudo isso porque os nossos James Bonds da Pérola do Índico esqueceram-se da sua função e venderam as coordenadas das nossas fronteiras marítimas, aéreas e terrestres para supostos parceiros comerciais.
Os nossos James Bonds viraram-se contra o próprio povo que juraram defender. Deixaram o importante papel que desempenhavam em defesa da nossa soberania e ficaram apenas com as famosas pastas/malas James Bonds que, nos tempos da minha linda infância, acreditávamos tratar-se simplesmente disso. Hoje, estamos diante de uma realidade triste – ver os nossos James Bonds a serem julgados numa tenda, sentados e vestidos com o uniforme de errantes: o uniforme da desonra.
Metódica e religiosamente, alguns dos nossos James Bonds, quando falam para o Meritíssimo Juiz, dizem que estavam a agir em representação do povo. Queriam operar em segurança do Estado moçambicano pescando atum e endividando o País. Eles pretendiam ser, simultaneamente, homens de negócios e Agentes Especiais da secreta moçambicana.
Esses nossos James Bonds inverteram o papel e agora querem ser políticos ou revolucionários. Já falam, acreditando que estão a informar o povo. Quando são questionados, em sede do Tribunal, respondem dizendo que o povo precisa de saber. Eles ainda pensam que são os nossos James Bonds, embora queimados pela imprensa, como eles mesmos reconhecem. Eles ainda acreditam que podem voltar a fazer mais uma actuação no Casino Royal ou mesmo No Time to Die (Sem Tempo Para Morrer). Entretanto, eles, agora, devem suportar as perguntas “inocentes” do nosso Ministério Público (MP), o dono da acção penal e o representante do nosso Estado que, hoje, julga os nossos James Bonds – espiões que não revelam nada em nome da soberania e segurança do Estado – caricato, né!?
Contudo, apesar de o Tribunal estar a julgar os nossos James Bonds, a realidade está a provar que não é fácil interrogar alguns deles, porque estes foram formados para esquecer e ter argumento para tudo. Esse facto fez desmoronar a esporádica popularidade do juiz do processo, que chegou a explodir quando um dos James Bonds, durante o interrogatório, atirou-lhe uma “banana bomba” que veio quebrar aquela máscara que se aparentava robusta e cercada de uma prova de bala diferente e de outro mundo!
Por conseguinte, o País precisa de novos James Bonds, que não se confundam com empresários ou lobistas. Que sejam homens que nos protejam de verdade. Que garantam a nossa segurança e soberania, sem ferir a pátria que dizem amar. Que a sua abnegação não seja mais corrompida – porque não queremos ver mais James Bonds a serem julgados na Pérola do Índico!!!
“O escritor não se deve calar perante o que o indigna.” (Mia Couto, 1955-Actualmente, Escritor e Biólogo Moçambicano)
Segundo informações e dados linguísticos, nas páginas das gramáticas bantu, a palavra “desporto” não existe nas línguas nacionais moçambicanas. Pelo que, por associação de significado, de modo a encontrar-se um termo substituto, que melhor o descreva, utiliza-se a palavra “brincadeira” para se referir a “desporto”.
Portanto, a Secretaria de Estado do Desporto (SED) de Moçambique, por assimilação do significado da palavra “desporto” vigente nas línguas nacionais moçambicanas, equivale à Secretaria de Estado da Brincadeira. Feliz ou infelizmente, essa brincadeira dilatou-se e estende-se à Federação Moçambicana de Futebol (FMF)! E assim começa a brincadeira em toda a cadeia desportiva no País!
Por isso, nas artérias da agitada Cidade das Acácias, bem como em todas as cidades espalhadas pelo extenso Moçambique, ouviam-se várias conversas acesas sobre a actuação da SED e da FMF. Até analistas renomados da praça, grande parte deles da sociedade civil nacional, comentavam em suas páginas de Facebook, bem como nas suas intervenções nas telas das TVs nacionais sobre a ineficácia e ineficiência da governação desportiva vigente no País.
Assim, não apenas os adultos, mas, também, os jovens não se distanciavam daquele assunto, razão pela qual revelavam, aqui e acolá, as suas concepções em relação ao mesmo. Mais uma vez, aquele assunto nos colocava, não somente na boca do povo local, mas da Região Austral, de África e do mundo. Todos eram unânimes e diziam que a forma como, quer a SED quer a FMF, eram desgovernadamente conduzidas… Quase tudo relacionado ao desporto e futebol deixava a desejar. E as esperanças de ver a situação mudar estavam a esgotar-se!
― Há uma semana, fomos blindados com mais uma intervenção decisiva da Confederação Africana de Futebol (CAF). Trata-se de uma decisão que vem demonstrar as brincadeiras desenhadas pelos representantes desta brincadeira chamada futebol. ― Revelou o Jota, que conversava com o tio Manuelinho.
― É verdade, sobrinho. O nosso melhor pátio, onde brincamos com a bola, foi chumbado pela falta de condições para organizar o embate entre os Mambas desvenenados e os indomáveis leões, os Camarões. ― Retorquiu o tio Manuelinho.
― Aliás, em Novembro do ano passado (2020), naquele mesmo estádio, hoje sem temperos para fazer o caril da brincadeira futebolística, Camarões ofereceu uma goleada gémea à Pérola do Índico, isto é, duas bolas sem resposta. ― Acrescentou o Nelo, que, também, se juntou àquela conversa de tio e sobrinho.
― Tens razão, Nelo. ― Disse a Raquel, tia do Jota.
E, em seguida, somando palavras à sua fala, ela adicionou:
― Como meninas, os Mambas brincaram com a bola, mesmo estando em solo pátrio. As derrotas e os poucos empates que conseguimos, associados a algumas manobras desconhecidas, descascaram o estádio e levaram-no à total reprovação.
― Então, porquê nós, constantemente, nos perguntamos: “Afinal, quando voltaremos a gritar “golo”, não para chorar e confirmar a derrota, mas para celebrar os nossos compatriotas por nos brindarem com a vitória? ― Interpelou, indignado, o sobrinho do tio Manuelinho.
― É verdade, amigo. Parece que ainda não temos a certeza da resposta a esta simples pergunta. Sim, a resposta é simples, porém, os meios são longos e complexos. Mas nada de extraordinário! É uma questão de planificação, como articulou o Rui Lamarques, brilhante Jornalista, Editor e Formador de Jornalistas, incluindo o Jota, numa publicação recente partilhada na sua conta do Facebook. ― Compôs o Nelo, como se estivesse a brincar com as teclas do seu piano familiar.
― Quando recebemos a carta de demissão que nos tirava o direito de acomodar a partida de brincadeira com os Camarões, na batalha para o ingresso ao Mundial de 2022, carimbamos a nossa certeza: sabíamos que não estávamos qualificados para tal. ― Indicou o Jota, sobrepondo a sua voz à fala de Nelo.
― Apenas estávamos a tentar a sorte, como nos jogos de carta. Sonhávamos que teríamos todos os trunfos, desde o “A” ao “6” e, assim, a jogada seria simples. Mas não foi! ― Acrescentou a tia Raquel, mostrando-se uma cidadã consciente.
― Portanto, a desorganização e a falta de planificação vieram a revelar-se. Chumbamos no totobola desta brincadeira. ― Rematou o tio Manuelinho.
Em poucos minutos, sacudimos os ombros e escrevemos uma carta embelezada de adjectivos, bajulando toda a Federação Sul-Africana de Futebol e os seus representantes governamentais, traduzida no Google Translator, e, como eternos pedintes, corajosos, submetemo-la aos nossos vizinhos e irmãos, os donos do Rand.
― Não foi por falta de alerta, mas esquecemo-nos de que eles já estavam fartos das nossas brincadeiras. Mesmo com relações historicamente carimbadas entre nós, desta vez, os nossos irmãos não responderam à carta de reconhecimento das nossas brincadeiras. ― Carimbou, mais uma vez, o Jota.
Da terra do rand, um membro do governo posicionado, desapontado, segredou:
― Afinal, o que se passa com estes nossos irmãos e vizinhos? Além de recebermos milhares dos seus filhos, nas nossas terras, estamos a gastar milhões de rands para acomodar as nossas tropas que militam no Cabo queimado das suas terras. E os custos aumentarão, pois, querem prorrogar a permanência daqueles soldados lá.
― Os nossos cidadãos pagam somas de impostos e uma parte é destinada para custear as caminhadas dos nossos soldados que protegem a Pátria deles quase queimada. ― Adicionou outro cidadão Sul-Africano, membro do Parlamento.
Em seguida, um representante do Desporto Nacional de África do Sul questionou:
― Não são eles que disseram que aquilo era um jogo de polícia-ladrão e resolveriam em apenas uma semana? Mas essa semana ainda não terminou e está a afectar a nossa economia local. Agora, com 46 anos de independência, eles enviaram esta carta e dizem não ter um campo adequado para realizar uma partida de futebol com os Camarões? É isso meso?
― Isso só pode ser mesmo brincadeira! ― Afirmou uma cidadã Sul-Africana, que se mostrava verdadeira conhecedora daquele assunto mal-parado e vergonhoso.
― Ora, não foi por causa de alguns erros de comunicação ou porque eles estão cansados de nos ajudar. É por causa da forma como tratamos o nosso desporto, aliás, a nossa brincadeira! É a mesma brincadeira que nos faz pensar que o nome da nossa selecção é a causa das derrotas. ― Atirou o Jota, virando-se para Nelo.
― É essa brincadeira que nos faz pensar que o facto de um jogador estrear numa equipa Europeia ou Tanzaniana constitui garantia e selo para alcançarmos bons resultados. ― Acrescentou o Nelo, o qual foi interpelado pelo tio Manuelinho:
― É essa brincadeira que nos faz gastar somas de dinheiro para comprar cremes de bolos e usar migalhas na confeição dos bolos. Como esperar golos de bolos localmente malfeitos? ― Questionou, sublinhadamente, o tio Manuelinho.
― Não é apenas a África do Sul que se recusou de custear as preparações de um campo para assistir a mais uma demonstração da nossa brincadeira, mas toda África Austral. ― Ajuntou a tia Raquel, enquanto, com a sua cabeça, acenava, negativamente, reprovando aquele comportamento de gestão desportiva nacional.
― Como resultado, e não sabemos a que custos, lá do corno da cabeça da nossa mãe, de Marrocos, ouviu-se uma voz que disse: “Nós sabemos que vocês gostam de brincar! Temos um espaço livre para as vossas demonstrações, incluindo voos, hotéis, táxis e outras despesas. Estejam à vontade!” ― Atirou o sobrinho do tio Manuelinho, revelando um plano inglório.
Por conseguinte, todos, felizes e ávidos para gastar as nossas poucas migalhas e economias, que seriam úteis para endireitar aquele campo maltratado e muitas outras necessidades locais, carimbamos a despesa para mais uma demonstração da exaltação da brincadeira! E, assim, como nação, seguimos, orgulhosamente!