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terça-feira, 07 março 2023 08:11

José Faduco: a homenagem jamais reclamada

AlexandreChauqueNova

Notabilizou-se em Inhambane como árbitro  quando o futebol aqui era de outra jaez. Não se tornava necessário mobilizar as pessoas a abarrotarem os campos, a própria qualidade dos jogadores encarregava-se disso. Mas também Faduco entra em cena numa época em que alinhavam os últimos atletas de um turbilhão de ouro onde pontificavam verdadeiros elegidos, e que podem não ter seguido outros ventos se calhar por capricho do destino. São vários nomes que, mesmo jogando sem grandes pretensões, destilavam todo o talento que merecia maior valorização e reconhecimento.

 

José Faduco é um património cujo nome urge preservar, não se pode negar isso, por tudo o que ele fez enfrentando torcedores descontrolados e jogadores que podiam insurgir-se contra o árbitro com ameaças de violência. Durante a sua carreira foi obrigado várias vezes a sair do campo sob escolta policial para se evitar o pior. Noutras vezes teve que se valer da sua capacidade atlética para fugir. Sozinho, e depois acolhido e protegido em casas vizinhas  como foi aquando de um jogo realizado na Maxixe entre o Nova Aliança e a Associação Desportiva de Pemba, na década de 80.

 

Hoje o homem já não pode dar o seu contributo por limite de idade, todavia nunca abandonou completamente o futebol, sendo agora membro do Conselho Nacional do Desporto em reconhecimento do trabalho desenvolvido ao longo de anos. Faduco é uma pessoa aberta, predisposta a conversar sobre as várias nuances desportivas e apesar de estar na idade de ouro dos idosos, ainda procura ambientes para uma cavaqueira, trazendo memórias construídas nos campos e fora deles.

 

Em tempos perguntavamos-lhe se não se sentia triste por até aqui não ter sido homenageado pelo percurso que fez, Faduco disse que não, não se sente triste. “A minha alegria é encontrar na rua gente que me reconhece e me saúda como alguém que verteu um pouco do seu sangue nos campos de futebol para que houvesse euforia e entusiamo nas pessoas. Há outros ainda que, vendo-me na varanda da minha casa, páram e cumprimentam-me de forma particular.  Essa é a maior homenagem que posso receber”.

 

O ex-árbitro diz ainda que há colegas seus que foram muito melhores que ele e que nunca foram homeganeados. “Porquê que eu devo reclamar?” O que reconforta José Faduco é olhar para trás e sentir que fez alguma coisa pelo futebol, embora hoje olhe com tristeza para aquilo que está a acontecer. “O nosso futebol baixou muito de qualidade, não sei o quê que está a acontecer. Acho que não há motivação”.

 

Na verdade há pouca gente que tem ido aos campos. Aliás, desde que o “Dineu” rebentou com o muro do Clube Ferroviário de Inhambane, todo aquele monumento histórico tornou-se um mamarracho. No campo de Muelé não acontecem muitas coisas com nível e isso entristece profundamente José Faduco, que olha com frustração para este declínio.

 

quinta-feira, 02 março 2023 07:32

Em prelo o “Direito à Clandestinidade”?

NandoMeneteNovo

Existem personalidades, dentro e fora do país, que se orgulham de terem recorrido, e com sucesso, a uma espécie de “Direito à Clandestinidade” – actuar (politicamente) fora da legalidade vigente – quando o espaço democrático fora limitado ou fechado.

 

Por conta da proposta da lei das “Organizações Sem Fins Lucrativos”, vulgo Organizações da Sociedade Civil, cujo conteúdo, segundo a crítica, estrangula o espaço de intervenção da Sociedade Civil, tenho pensando em personalidades nacionais ex-clandestinos, hoje parte da elite que governa ou que ainda dita as ordens neste país.

 

Não me encaixa que esta elite queira legalmente fechar o espaço democrático, sabendo, a prior, de que tal fomentaria a clandestinidade, um recurso de alguma eficácia pelo mundo fora.

 

Por outro lado, creio que a aprovação desta proposta não significa o óbito automático da sociedade civil. Esta, em meados da década passada, quando do aperto oficioso do espaço democrático, provou que não vacila e que encontra alternativas.

 

Nesse período tenso, e a título de exemplo, a participação em certas reuniões carecia de uma senha (código). Procedimento que em contexto similar de limitação democrática fora usado, na então Lourenço Marques, hoje Maputo, nas vésperas, e determinante, para a independência.

 

Especulo – para demover os que defendem esta proposta – de que os que inventaram a democracia nos moldes ocidentais que a conhecemos, seguramente que o fizeram, entre outros, para eliminar o recurso à clandestinidade para efeitos políticos e cívicos. Aliás, é mais fácil controlar o adversário em terreno aberto do que em fechado.

 

Por estas parcas razões tenho dúvidas de que a iniciativa primária desta proposta tenha sido da elite de que falei. Esta não me parece tão distraída a esse ponto. Porém, o que me parece, e típico dela, são apenas três simples palavrinhas: ela não lê!

 

De toda a maneira, fica a questão: a ser aprovada a actual proposta de lei das “Organizações Sem Fins Lucrativos”, nos moldes em que se apresenta e/ou na forma criticamente interpretada pela sociedade civil, não será um caminho para o “Direito à Clandestinidade”?

 

PS: Provavelmente esteja a pensar que mesmo em espaço democrático aberto haja quem, politicamente, recorra à clandestinidade para lograr os seus intentos. Não é desta que se aborda, pois esta é do fórum da má-fé ou simplesmente: batota!

quarta-feira, 01 março 2023 07:16

O canhu interrompido!

MoisesMabundaNova3333

Estávamos em fim de uma manhã em pleno Janeiro, onze e tal. Sol e calor eram intensos. Era dia 20!... Em casa do amigo Nhambire, algures na Matola Rio, para saborearmos um canhu. Era o primeiro do ano a ser tomado em grupo. A malta toda convidada, quase todos eles amigos, já estava ali, no primeiro copo… os mais gulosos já no segundo! A tecnologia… ultimamente, sempre a tecnologia, lembra que estou a perder um evento. Tinha-o posto na agenda, mas, ávido da bebida sagrada na zona sul do país, dele me esquecera. Abro o link, acedo ao canal e dou de caras com o evento: Simpósio Armando Emílio Guebuza, 80 anos!

 

Uma obra de arte, parecia uma sala de grande exposição. Excelente cenário, sala maravilhosamente bem concebida e decorada, wall banner artisticamente maravilha, um regalo à vista; o alinhamento do programa, anunciado pelo nosso confrade Chavana, magistral e oradores de primeira água. Continuei fisicamente no canhu, mas… concentradamente no peqenino ecrã do celular a acompanhar o simpósio. Na prática, abandonei a sessão do canhu do Nhambire! Era impossível ficar indiferente! Como o mundo mudou! Antigamente, só a presença física é que valia e, para tal, era preciso andar bem atrás dos convites… vimos de longe!

 

O evento levou toda a tarde, painel atrás de painel, orador/a atrás de orador/a. Houve de tudo: desde grandes interpretações artísticas como a de Xico Antônio, a excelentes comunicações e ou apresentações de acadêmicos de topo. Lá se ouviu de tudo: desde abordagens mais ou menos equilibradas a adorações, adulações, sacralizações ou endeusamentos. Houve quem chamou de simpósio de guebuzistas para adulação a Armando Guebuza, uma verdadeira procissão de endeusamento ao antigo chefe de estado! Opiniões e opiniões!

 

Um dos momentos mais altos, senão o mais alto, foi a intervenção algo enigmática do próprio homenageado. Naquela sua contundência verbal peculiar, não se fez de rogado nem piedoso: “...se o colonialismo português não conseguiu calar-nos, vencer as nossas convicções, não são os nossos camaradas que vão conseguir fazer…” - disparou um… B21!, para os estudiosos decifrarem. Eixxxi!... - como diria alguém indignado.

 

Podemos comparar o colonialismo aos camaradas do partido? Talvez. O ex-presidente terá muito provavelmente elementos suficientes para uma inusitada comparação. Não será algo exagerada? Talvez, mas, uma vez mais, o ex-chefe de estado terá as suas razões!

 

Agora, olhando para o conteúdo da proposição, será que é possível calar alguém? Será possível arrancar de alguém as suas convicções íntimas? Em devido tempo, Ernest Hemingway já contribuiu para uma possível resposta a esta pergunta: “Um homem pode ser destruído, mas nunca derrotado”! - disse o grande escritor americano. Acredito profundamente que, de facto, um homem com convicções pode ser destruído, sim, mas nunca vencido.

 

Mas, mais ainda: será que é possível calar a um antigo chefe de estado? É possível calar alguém com milhões e milhões de seguidores, alguns dos quais vimo-los no simpósio despindo-se até de suas personalidades e academicidades e endeusa-lo freneticamente? Não acredito. Não creio que seja possível calar a um homem modelo para meio mundo. Não creio que seja possível calar um homem de convicções muito fortes quanto Armando Guebuza, que, como disse, nem o colonialismo o conseguiu, menos os seus camaradas (incluindo Samora Machel) ao longo destes anos todos de militância.

 

Outrossim, também acredito que nenhum dos seus camaradas tenha a mais pequena intenção de calar Guebuza, ou arrancar-lhe as convicções. Pode haver divergências de todo o tamanho, mas… calar-lhe! I don’t think so! Visão míope?... talvez!

 

Compreendo e muito bem que o antigo chefe de estado, humano afinal de contas, peregrino, com sentimentos e emoções, esteja profundamente abalado com muitos desenvolvimentos de vária índole ocorridos após a sua saída do poder. Quem não estaria? Alguns de nós muito provavelmente colapsariam. Mas ele (e a família) aguentaram e continuam aguentando. São fortes, como bem o disse. Por isso, compreende-se perfeitamente o desabafo, não tanto mais do que isso... Não acredito que, com a idade que tem, ainda queira continuar a falar alto, ou muito alto.

 

Já falou alto bastante. Mais ou menos 80 anos, dado que começou muito cedo a… falar! Merece descanso. Mas merece também não ser calado!

 

segunda-feira, 27 fevereiro 2023 08:16

Magafusso: “Três dedos três cores”

AlexandreChauqueNova

Em Maio do ano passado, o artista plástico Magafusso saíu da Maxixe com os seus quadros no regaço e foi expô-los na Fundação Fernando Leite Couto, em Maputo, um espaço que ele considera uma montra importante e impresicindível no mundo cultural em que vivemos. E o título da mostra é esse mesmo: “Três dedos três cores”.

 

Pode ser  a súmula da própria vida, e a vida são as cores que Magafusso explora nos seus quadros para reivindicar, com olhar profundo, a liberdade, ou para nos dar a luz e o amor. De graça. Ele tem a consciência da responsabilidade que lhe cabe como artista, ou seja, sabe que é um candelabro indispensável. Uma bóia luminosa que nos vai sinalizar a direcção certa a tomar no  imenso mar existencial. Que nos acolhe a todos.

 

O título desta exposição tem uma ligação inabalável entre esses três elementos: os dedos da mão que segura o pincel, a mente e a pintura. Então, ao longo das obras ora patentes e agora recolhidas para a sua galeria na Maxixe, e outras tantas vendidas no local e a posterior, podemos perscrutar um sentimento radical de Magafusso perante a arte. Teremos, em algum ponto do andamento da exibição, não propriamente um grito, mas um rito, porque quem apela a permanente vigilância sobre a identidade africana, cumpre um rito.

 

São (eram) 22 obras que nos levarão, num determinado compasso, ao limbondo, dança dos macondes, que usam, mais do que a boca, o corpo para falar. Magafusso inclina-se aqui, neste quadro particular onde a dança parece ser a síntese da humanidade, perante o movimento mágico do esqueleto revestido de carne, lembrando-nos que toda a beleza passa pelo corpo, que não tem limites. De forma que o artista estampa isso como quem diz: depois de todas as batalhas e de todas as guerras e de todas as fomes e de todas as mortes, é preciso dançar.

 

“Três dedos três cores” não é um porto de partida, muito menos de chegada. Até porque a jangada de Magafusso não tem âncora. Desde que apresentou a sua primeira exposição individual (Silingo) em 1989 na cidade de Inhambane, nunca mais dormiu. Está sempre acordado, ou melhor, é constantemente acordado pelas obras que falam alto sobretudo nas noites, quando ele está deitado na cama dormindo em sono profundo.

 

Esta é a nova página do artista nascido na Maxixe, sem saber que já no ventre da sua mãe tinha sido escolhido para reverberar como ponto de orientação. É por isso que tem essa capacidade de descortinar o oculto, e remover os escolhos do caminho por via do pincel. E, na verdade, sentimos nesta mostra a grande vénia que Magafusso tem pelo belo. Por isso, com a leveza dos dedos, todo este manancial artístico é tratado com delicadeza.

 

O resto fica por conta de quem vai contemplar o estendal de várias arestas (agora na galeria do artista, na Maxixe), que incluem a fome, a guerra, o arrebatamento das mulheres fazendo tranças livremente, a caça furtiva destruitiva da fauna, a música e, se calhar, teremos a dança no cume de tudo. Mas como onde há luz há amor, o amor vai prevalecer acima de todos os quadros. Porque as guerras – segundo o próprio Magafusso - são sinónimo de que a cegueira habita as nossas mentes.. “Temos que ser curados na piscina de Siloé”.

segunda-feira, 27 fevereiro 2023 07:33

O Direito à Ilusão

NandoMeneteNovo

Durante a campanha pelo perdão da dívida de países pobres altamente endividados, que incluía Moçambique, era comum considerar que os países nórdicos eram os credores benevolentes e de que os maus da fita eram os credores tradicionais ocidentais.

 

Os primeiros porque emprestavam/doavam e não violentavam e os segundos porque violentavam, atendendo os condicionalismos para a recepcção do apoio que, até certo ponto, beliscavam a soberania dos devedores.

 

Esta ideia foi desconstruída numa palestra organizada por uma coligação nacional da sociedade civil criada para os esforços do perdão. O palestrante socorreu-se do facto dos países nórdicos também condicionarem a ajuda a um acordo com as instituições de Bretton Woods (FMI e Banco Mundial) - as que capitaneiam, segundo a crítica feita, o capitalismo pelo mundo – para inferir de que eles eram tão iguais ou piores quanto os credores tradicionais ocidentais. Foi o degelo.

 

Em reacção, Irâe Lundin, saudosa académica, professora universitária e activista social, agradeceu os ensinamentos, mas, no entanto, referiu que preferia continuar a acreditar na ilusão de que os nórdicos eram os benevolentes, pois, concluindo o pensamento dela, também nos assistia uma espécie de “Direito à Ilusão”.

 

Este direito veio-me à memória em pleno jantar de São Valentim quando perguntado se alguma vez, na vida, já derretera o coração de alguém. “Sim” foi a resposta, acrescentando que fora durante uma viagem à Europa.

 

No destino, enquanto o avião rolava para o estacionamento, fui dobrando com mestria, ginga e pinta a manta do avião, tendo, em seguida, colocando-a elegantemente na bolsa da poltrona. Nesse instante oiço um arrebatador “Wonderful!” (Maravilhoso) que me corta a profundeza da espinha. Era a voz, por coincidência, de uma bela nórdica e ocasional companheira de viagem.

      

Desde então - passam mais de 15 anos - tenho relatado este episódio a amigos como o apogeu da arte na esfera da conquista, tanto é que derretera o coração da bela nórdica. Um gostinho posto em causa, mal acabara de contar, com a acusação de que o “Wonderful” fora, na verdade, por eu não ter furtado a manta do avião. Que maldade!

 

À luz do (meu) “Direito à Ilusão,” ainda que o “Wonderful” fosse por uma outra razão, prefiro continuar a pensar que a bela nórdica se apaixonara por mim. Gosto e soa bem!

 

Decorrente do exposto, e para terminar, dei-me conta de que possa ser por isso, o “Direito à Ilusão”, que se justifica que ainda haja quem acredite nas promessas de nossos governantes, suas políticas públicas e, até, de que haja mesmo Governo.

Fez-se jornalista em meados da década 80 do século XX, quando se viu a debitar habitualmente o seu gene de cidadão cultural na Gazeta de Artes e Letras da Revista Tempo, que tinha como coordenador o escritor Luís Carlos Patraquim. Não só escrevia de ofício, como não perdia as na altura habituais tertúlias literárias na Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO) e as sessões de m’saho que tinham como palco o Jardim Tunduru, conforme contou-me um veterano do jornalismo pátrio que com ele partilhava as máquinas de escrever da e na Tempo.

 

Na década de 90 do mesmo século, logo nos seus primórdios, Nelson Saúte (NS), o sujeito de quem falo, estreita-se como escritor, mas sem dissociar-se duma das técnicas do jornalismo, que é também um dos seus géneros: publica em 1990 A Ponte do Afecto, seu primeiro livro, que é uma colectânea de entrevistas a escritores portugueses.

 

Inspirado nos dissabores da famigerada guerra dos 16 anos, mais concretamente no camião transportando cadáveres feitos algures em Maluana em plena avenida Eduardo Mondlane, qual epicentro da capital do país, a caminho da morgue do Hospital Central de Maputo (HCM) e sob escolta de Marimbique, um personagem por sinal por si amado, NS viria a publicar, em 1998, o romance Os Narradores da Sobrevivência, no qual procura fazer o que os antropólogos chamariam de etnografia de Moçambique dos anos 80 do século passado, contando em profundidade como se conjugava, por aquelas alturas, o verbo sofrer. Fá-lo com histórias de cenas sobre o carapau. O repolho. Os ‘grupos dinamizadores’. As bichas. Ou seja, com quase tudo.

 

Aliás, é no post scriptum do Os Narradores da Sobrevivência onde ele relata, distante das entrelinhas, o que aquele período da nossa história colectiva significa:

 

“Os anos 80 foram anos dramáticos. Foi o tempo em que experimentámos a miséria mais abjecta em termos materiais. Onde os homens despojaram-se da sua humanidade e vestiram a bestialidade oculta na sua personalidade. Foram os anos da morte, da violência das armas que em humanas mãos serviram para destroçar os mais belos projectos igualmente humanos que havia entre nós e reduzir o homem moçambicano à condição de coisa nenhuma” (pág. 141).

 

Bem vistas as coisas, de memorialista, conforme o catalogo no título deste texto, NS tem o facto de tomar o passado como seu referencial literário, como seu imaginário criativo, mas ajudando os seus leitores a perceberem, a partir do que produz, o presente, que, nalgumas vezes, até parece sósia do passado.

 

Os dois trechos abaixo, igualmente extraídos do Os Narradores da Sobrevivência, me parece dizerem, com as necessárias adaptações, muito dos que, durante dois anos (2017-2019), sensivelmente, recusavam que Cabo Delgado estivesse sob ataque terrorista, bem assim do que fenómenos como exclusão social e desestruturação da família enquanto agente de socialização primária podem fermentar:  

 

“Onde é que se viu, pá? Uma guerra aqui? Já parece que os tipos que escrevem nos jornais têm a paranóia dos filmes americanos. Esta malta anda maluca, Jone. Isso é lá no cinema. Aqui está tudo calmo, pá. Aqui não há crise” (pág. 62).

 

“Às vezes aparecem esses molwenes, esses meninos que mendigam nas ruas, os sem ninguém, vêm aqui sentarem-se com os velhos. Brincam no colo da velhice (...). Eles são filhos do sofrimento. Nasceram do ventre da desgraça. Foram paridos pela miséria. Eles, sim, um dia hão-de fazer guerra” (pág. 64).

 

Nas entrelinhas do seu livro de poesia A Pátria Dividida (1993), acha-se representado o Moçambique actual, marcado por várias corridas, muitas delas atabalhoadamente conclusas ou mesmo a marcha atrás, como o são os dossiers ‘Proposta de Lei das Associações’ e ‘Eleições Distritais’, talvez por conta de “desenrascanços” políticos.

 

‘Sob o Olvido da Cidade’ (pág. 42) é um dos poemas que integram A Pátria Dividida:

 

“Pelo grito nomeamos

 

cabelos olho nariz

 

lábios boca

 

dorso seios umbigo

 

púbis nádegas.

 

O corpo que amamos

 

na posse da loucura.”  

 

Em 1998, tive o privilégio de conhecer NS ‘em pessoa’, enquanto co-facilitador de um Curso de Especialização em Jornalismo Cultural, com dois meses de duração, oferecido, em Maputo, pela União Europeia a jornalistas culturais dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP). Nesse curso, no qual tinha como colegas jornalistas como Gil Filipe, Frederico Jamisse, Belmiro Adamugy, Eduardo Constantino e Policarpo Mapengo, NS revelou-se não só como um exímio intelectual e homem de cultura, mas como, também, uma pessoa frontal, convicta, amiúde até com parcas doses de diplomacia, o que em educação de adultos talvez seja um valioso activo.

 

Terá sido isso que concorreu para que NS se incompatibilizasse com alguns dos colegas desse curso, sobretudo os angolanos, com destaque para o ‘kota’ Sá de Carvalho, que teve solidariedade incondicional dos seus patrícios...

 

Foi pelos dias daquele curso que, através de NS, conheci certas figuras incontornáveis do chamado jornalismo moderno, como a italiana Oriana Fallaci, autora da célebre obra Uma Entrevista com a História (1972), e o excêntrico actor Gerard Depardieu, habitualmente conhecido como francês, mas de há uns anos para cá russo, por motivos que não cabem nestas linhas.

 

Em Os Habitantes da Memória, livro que NS fez publicar em 1998, corporizado por entrevistas a um grupo selecto de escritores moçambicanos, resulta claro que o seu ADN literário foi consideravelmente influenciado por Oriana Fallaci. Da entrevista ao saudoso jornalista e escritor Heliodoro Baptista (HB), inserta nesse livro, vale sempre a pena ver o que abaixo se transcreve:

 

“[NS] Há um hiato de cinco anos na tua vida como jornalista. Foi um momento de terrível confrontação com o regime. Qual é o teu testemunho sobre esse tempo em que estiveste silenciado?

 

[HB] Fui impedido de trabalhar e, sobretudo, de ser jornalista. A ordem era que eu não podia ser jornalista neste país. Estava à espera de ir para Maputo trabalhar no Notícias. Deixara o Diário de Moçambique, podia ir para o Notícias, Tempo, AIM (Agência de Informação de Moçambique) ou INC (Instituto Nacional de Cinema), sei lá, para um lugar onde podia ser jornalista. Um dia, o Botelho Moniz manda dizer-me que o Sr. Armando Guebuza precisava de falar comigo com muita urgência. Estava em casa, pus uma roupa qualquer e fui assim mesmo. Lembro-me que ele estava no Palácio que era do antigo governador colonial, havia uma série de oficiais superiores, saíam e entravam, era uma fase de grandes movimentações de guerra. Depois de ele ter atendido esses oficiais, fomos para um jardim onde ele estava instalado com bebidas, amendoins, castanhas de caju, bolachinhas, requintes para a altura. O Botelho Moniz acompanhava-me. Ele fez o intróito com o Armando Guebuza. Lembro-me que se falava numa purga na China – a do “Bando dos Quatro”. Lembras-te? Ele dizia: ‘Ah, aquilo é muito aborrecido porque o comunista nunca deve fazer isso a um camarada seu’. Não fez mais nenhum comentário. Depois, começou a fazer-me perguntas deste tipo: ‘Conheces o Jorge Amado?’. ‘Sim conheço. Conheço muitos livros de Jorge Amado’. ‘Não, estava-me a referir àqueles livros que eu li’. Acabou por dizer-me que tinha lido Os Subterrâneos da Liberdade. O Jorge Amado já tinha ultrapassado essa fase do comunismo. E, depois, mudando de assunto: ‘Não interessa, nós estamos preocupados consigo, com a sua situação...!’. Como se ele não fosse o responsável por essa situação! Como se não fosse ele a dizer que eu não podia trabalhar. Isto, sete meses depois de eu estar no desemprego, sem receber. Então, fez esta proposta concreta: ‘Nós temos várias ideias’ – eu penso que uma delas era o campo de reeducação – ‘mas uma das ideias, aliás, já falei aqui com o Botelho Moniz, é que você vai trabalhar para uma empresa’. Não disse qual era a empresa, mas eu presumo qual; e não precisou se era na Beira ou fora. Só disse que não faltaria absolutamente nada na minha casa. Disse: ‘Peço que veja isto, aos seus filhos, à sua mulher não faltará nada em casa, todos os meses haverá um rancho substancial para si e aqui o camarada Botelho Moniz vai-se encarregar disso. Ele tem essas instruções. O que é que você acha? Pense bem, ainda tem alguns dias’. Respondi: ‘Eu não penso nada uns dias, digo-lhe já o que é que eu penso. Digo que não. Digo que eu sou jornalista desde 1970 e vou continuar a ser jornalista. É esta a minha palavra, é esta a minha resposta’. E ele: ‘Mas, está bem, pronto, pense nisso. Fica assim. Você pense!’. E o pensar transformou-se em cinco anos sem trabalhar” (págs. 98 e 99).

 

Em 2002, entrevistei Armando Guebuza, poucos meses depois de ser eleito, numa sessão do Comité Central da Frelimo daquele ano, secretário-geral do partido e candidato presidencial nas eleições de 2004, tendo-o questionado sobre o que o teria levado a aplicar a “lei da secagem” – tomando de empréstimo a expressão de Marcolino Moco – ao jornalista e escritor Heliodoro Baptista, ao que respondeu: “Não me recordo”.

 

Muitos estarão recordados do NS comentador político, sobretudo na TVM, na segunda metade da déceda 90 do século XX, quando acabava de regressar a Moçambique – depois de se licenciar em Ciências de Comunicação, em Portugal – a convite do finado Mário Dimande, antigo Presidente do Conselho de Administração (PCA) dos Caminhos de Ferro de Moçambique (CFM), para assumir as funções de assessor de comunicação do Conselho de Administração daquela empresa pública. Era ele um comentador político muito descomunal para aquele tempo!

 

Recordo-me tê-lo visto adentrar-se na minha casa da Rua 9 do bairro de Mahlazine, através da TV, para comentar os “debates” daquele dia na Assembleia da República. Sem papas na língua, disse, e cito de memória: “Muito vergonhoso ter um Parlamento assim. Isto não pode ser. Somos merecedores de respeito enquanto contribuintes. A continuar assim, era melhor que aquilo se chamasse escolinha do barulho e não Assembleia da República”. Com essas declarações contundentes, parece ter terminado o percurso de NS enquanto comentador político!

 

Em 2001, NS é nomeado administrador executivo dos CFM, no consulado do então PCA Rui Fonseca, ao que me foi dito por um quadro sénior daquela empresa “no intuito de conduzir o complexo processo de racionalização da força de trabalho, o que implicava a redução do efectivo de 20 mil para cerca de três mil trabalhadores”.

 

Ainda nos CFM, é-lhe atribuído o mérito de ter estimulado a promoção de jovens técnicos e a descoberta de talentos. Através duma iniciativa por si desenhada, denominada “Conversas às Sextas”, os técnicos da empresa tinham a oportunidade de conversar informalmente com o PCA, de onde se revelaram colaboradores que representavam ‘mais-valia’, por via do que se tornaram depois, e muitos deles continuam hoje, gestores de topo dos CFM e de empresas concessionárias do sector ferro-portuário de Moçambique.

 

Bastante rigoroso, conforme testemunhei quando com ele colaborei, ainda que episodicamente, em certos projectos editoriais, bem assim quando com ele interagia habitualmente nos primórdios do semanário ZAMBEZE, de que eu era chefe de redacção e ele colunista, NS é, em bom rigor, um profissional amiúde incompreendido por muitos, provavelmente pela sua conhecida vaidade e sentido crítico.

 

Actualmente com mais de 10 livros publicados e ainda ligado aos CFM, de cujo museu é curador, além de ser editor da Marimbique, Nelson Saúte, um escrevinhador de memórias tanto em diversas disciplinas literárias como em prosas tributárias que tem regularmente produzido e publicado no jornal digital Carta de Moçambique, é hoje, 26 de Fevereiro, aniversariante, completando 56 anos.         

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