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segunda-feira, 28 novembro 2022 09:49

Tortuosos Caminhos da Paz na Ucrânia

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No décimo mês de confrontação no Podzol ucraniano, com a União Europeia totalmente de rastos para manter a Ucrânia em pé de igualdade no campo de batalha e a Rússia encurralada politica e economicamente, os credores da guerra já têm assegurado o retorno da sua ajuda financeira. Seja com contratos de lend-leasing, ou pacotes de sanções feitos à medida da inutilidade do papel da ONU e suas agências especializadas, agora é tempo de se discutir a gestão dos proventos da guerra, no break-even criado pelos recursos financeiros congelados da Federação Russa.

 

Cai por terra o argumentum ad nauseam Europeu da ameaça do totalitarismo ao seu estilo de vida impoluto, para se livrar do espartilho energético russo e do colete de forças de mão-de-obra chinesa, quando se assiste ao ocidente em corrupio pelo mundo afora, assinando tratados com estados não menos totalitários e corruptos, em condições financeiras pouco favoráveis e risco sistémico, encarecendo os custos das suas cadeias de produção.

 

Joe Biden tem contudo muitos motivos para sorrir e acreditar na reviravolta económica dos EUA face ao ameaçador papão chinês que lhe ameaçava tirar o almoço. Conseguiu numa assentada tudo o que queria. Derrotou os adversários políticos internos e externos. Arrumou com a rebeldia económica da Alemanha e da França por muitos anos. Transformou a Grã-Bretanha num novo Estado Associado dos EUA. Vergou o bicentenário falso moralismo nórdico com a teoria do Medo. E – o mais importante - convenceu o seu eleitorado das intercalares que a velha fórmula da política da canhoeira está viva e recomenda-se, quando se sabe esperar e se tem como aliado idiotas úteis endinheirados, instantaneamente paridos pela Quarta Revolução Industrial.

 

Sem surpresas, produziu-se uma imediata inflexão no habitual tom exaltado do comediante de Kiev. Fala-se agora de paz. Mas pouco se sabe ainda o preço que todos estaremos dispostos a pagar por ela. Porque os termos actuais dos credores da guerra, não encontram ainda o eco do lado de Moscovo. E com isso, as hipóteses de descarrilamento das boas intenções podem se confirmar depois do Inverno, com outros actores e consequências imprevisíveis.

 

O ponto de partida é saber se os EUA estarão dispostos agora a abdicar da doutrina Wolfowitz, que faz da  Rússia um inimigo eterno que deve ser esmagado económica e politicamente pelo ocidente, no limbo de uma confrontação nuclear. A questão ucraniana mostra que a corda já esticou até ao limite aceitável pelas partes, logo os tortuosos caminhos para paz devem ser pensados com a cabeça fria.

 

Em primeiro lugar, há que discutir os termos de um Tratado de Paz com garantias geopolíticas suficientes para acalmar os receios da Rússia. Parece óbvio que a aproximação geográfica da NATO ao perímetro de defesa russo se adensou com o conflito ucraniano, tanto no Báltico, como no Mar Negro, não ajudando a resolução do conflito por meios pacíficos. Sendo assim, nada mais resta a Moscovo do que se preparar para uma longa confrontação militar na Ucrânia, que a maioria dos países da NATO não deseja prolongar.

 

Por isso, o estatuto neutral da Ucrânia, similar ao que alguns países nórdicos então abraçaram é o ponto de partida para qualquer negociação, nem que isso tenha de ser equilibrado com a devolução dos territórios ocupados por Moscovo ao arrepio dos tratados internacionais que, apesar tudo, ainda são a única bússola orientadora que nos resta no meio da tormenta. Esta necessária cedência russa daria vazão a posição ucraniana em ver preservada sua integridade territorial nos limites herdados da ex-URSS em 1991.

 

No entanto, a resolução do problema tem de ser encontrada com paciência e de maneira construtiva. Existem casos precedentes no Direito Internacional que podem servir de base para um putativo acordo conducente a paz, por exemplo,  atribuir a Crimeia um estatuto que resvale entre Guantánamo e Hong-Kong.

 

O caso Guantánamo é aqui trazido à colação para relembrar como a Emenda Platt levou um estado soberano latino-americano enfraquecido pela ajuda internacional, hipotecar a sua independência politica em favor de interesses geopolíticos dos EUA para se libertar do jugo da potência colonizadora europeia, com um contrato de arrendamento vitalício de uma base militar. E a resolução do problema de Hong-Kong parece ser útil para se entender como uma futura superpotência, então derrotada militarmente por uma potência colonizadora global, concorda em adiar por século e meio a discussão da sua integridade territorial até ao momento em que a geopolítica estivesse alinhada com a sua economia.

 

Por outras palavras, a devolução da Crimeia pela Rússia antecedida de um tratado de aluguer das instalações militares estratégicas que Moscovo actualmente mantém naquele território por 50 anos, tal como hoje se verifica no cosmódromo de Baikonur no Cazaquistão, é uma boa hipótese de trabalho que as partes poderiam explorar, pois daria tempo suficiente para Moscovo refazer sua politica de defesa militar em relação a NATO e a maturidade politica para a Ucrânia se movimentar no concerto das nações.

 

Em segundo lugar, temos a questão do Donbass e outros territórios recentemente incorporados na Federação Russa, onde também é legitima a pretensão ucraniana em reavê-los sem restrições, mas não menos é o anseio dos seus habitantes nativos em preservar tradições religiosas, culturais e linguísticas seculares. E aqui a ONU deveria ter tido um papel mais actuante e não servir de mera caixa de ressonância dos interesses geopolíticos do ocidente. Sem querer falar de possível genocídio pelo volume de morte e destruição que se assiste desde 2014, é incompreensível que às autoridades de Kiev seja dada carta branca para expurgar tudo que seja russo dentro e fora das suas fronteiras, abrindo a caixa de Pandora no desporto, cultura e até na ciência. Os fait-divers da qualificação europeia e a tentativa de substituição do Irão pela Ucrânia no Mundial de Futebol no Qatar, são exemplos refinados desta hipocrisia politica.

 

Esta postura xenófoba de Kiev não tem paralelo senão nos anais do Holocausto Judeu ou nas famigeradas bulas papais do tempo da Inquisição. Quando as pessoas comuns são multadas por falar russo. Ler livros em russo. Ou simplesmente escrever a Letra Z para soletrar Zubaida. Então perde-se a essência da causa.

 

E isto está evidenciado no Diário Oficial daquele país a quem a União Europeia promete acolher de braços abertos no metafórico Jardim de Josep Borrell. Esta mesma Europa, que tanto se indigna nos fóruns internacionais com as atrocidades no Afeganistão, no Myanmar ou no Irão. Imagine-se o que não faria se estes países multassem os seus cidadãos por falar Inglês em público.

 

Com tanto extremismo exacerbado no leste Europeu, o precedente da Bósnia-Herzegovina ganha corpo na futura organização politica do estado Ucraniano, que se deveria transformar num Estado federal, com as liberdades religiosas, linguísticas e culturais fosse preservadas por leis aprovadas por seus próprios concidadãos. Nada obsta que o ucraniano se torne naturalmente numa língua franca disseminada pelo Donbass pela ordem natural das coisas. Sobretudo quando este país se unir cada vez mais a União Europeia, pela imensidão de recursos humanos e materiais relativamente baratos que possui, que certamente estarão na linha da frente para contrapor o expansionismo económico chinês.

 

Com as vantagens socio-económicas daí advindas, grandes investimentos da União Europeia e dos EUA vão ser guiados por factores sociológicos e antropológicos, onde o ucraniano terá precedente em relação ao russo como língua de trabalho. O mais provável é que os ucranianos do Donbass se tornem bilingues ou trilingues. O caso dos EUA – que não tem nenhuma língua oficial federal - e de Hong-Kong também, mostra como a adopção de um idioma oficial pelos habitantes nativos se faz mais pela necessidade financeira e integração social, do que por meras disposições judiciais e incitação do ódio travestidos de patriotismo.

 

Em terceiro lugar e como consequência directa das questões anteriores, há o aspecto económico que está na génese do presente conflito. Sendo irreversível a integração da Ucrânia na União Europeia, será necessário revisitar as causas que estão na base da crise económica que debilitou o então regime pró-russo de Yanukovich e culminou com a revolução da praça Maidan. Que é o efeito plano inclinado que a chamada Zona Franca da UE criou no primeiro momento em que a Ucrânia teve de alterar o seu quadro legislativo para se aproximar economicamente de Bruxelas. Criou-se uma situação em que o fluxo de bens e serviços europeus transitavam livremente para o mercado russo isentos de taxas, mas o percurso contrário oriundo da Rússia era bloqueado pelas imposições europeias.

 

Ninguém acredita que com a paz novamente instaurada naquelas paragens,  as fronteiras e os negócios com a Rússia permaneçam fechados. Pois se houver alguma legitimidade da ONU em apelar ao pagamento de indeminizações pela Rússia por causa do presente conflito, então que se faça também com investimento russo igualmente na Ucrânia, em termos aceitáveis nos tratados da OMC e não guiado por proteccionismo económico da União Europeia ou da OCDE.

 

Porque não interessa ao ocidente que este imenso país da Eurásia se vire definitivamente para a Ásia. E nem que espere que Moscovo se conforme com a adesão ucraniana a Europa sem entendimentos prévios sobre o levantamento progressivo das sanções económicas e futuras alterações aos estatutos da ONU, particularmente, na quadro de actuação do FMI, Banco Mundial e OMC, face ao papel das emergentes potências regionais do BRICS na arquitectura de segurança mundial. Nada será como antes.

 

Sem estas medidas cautelares, serão letra morta quaisquer “linhas vermelhas” que as partes contendoras vierem a estabelecer para a preservação da paz na Ucrânia, incluindo a não proliferação nuclear, cibersegurança, preservação do meio ambiente e outros tópicos não menos importantes.  

 

Ricardo Santos

Sir Motors

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