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terça-feira, 13 dezembro 2022 14:21

O exemplo de Sumia Suluhu Hassan

Conforme reza a história, a República Unida da Tanzania tornou-se independente a 9 de Dezembro de 1961. Portanto, sexta-feira passada, completou 61 anos após ter cessado de ser colônia da Alemanha desde a Conferência de Berlim e, depois, tutela do Reino Unido.

 

Como bons africanos que somos, estavam marcadas celebrações à escala nacional, festas de arromba e um banquete de estado à nossa boa maneira. Tudo orçado em nada mais nada menos que cerca de 450 mil dólares norte-americanos. Bom… para nós, moçambicanos, que, nos últimos sete anos, passamos a vida a ouvir 2.2 mil milhões de dólares… contas bancárias pessoais com oito milhões e meio de dólares, 33 milhões e por aí fora, meio milhão de dólares pode não parecer nada… até não é, comparativamente! Na nossa moeda, são uns 28 milhões de meticais! E dão para… equipar um pouco melhor um dos hospitais gerais!

 

No lugar de festas de arromba, banquetes ou festanças, decorreram o que designaram de diálogos públicos sobre o desenvolvimento! A chefe de Estado tanzaniano decidiu cancelar todas as festanças e mandar os 450 mil dólares para a construção de oito dormitórios para crianças com necessidades especiais! E não estamos a falar de aniversário qualquer… estamos a falar de sessenta e um anos de uma nação. Não entendamos mal a Sra Sumia Suluhu: ela não mandou não se celebrar o sexagésimo primeiro aniversário do seu país. Não, não! Mandou, sim, redirecionar os dinheiros que estavam para serem gastos nas festanças e banquetes. É possível festejar, celebrar uma efeméride sem gastar rios de dinheiro. Ou gastando-se o mínimo dos mínimos! Realizando sessões de profunda e séria reflexão sobre a vida e o rumo do país. E os diálogos públicos sobre o desenvolvimento são, também e por excelência, momentos importantes para e no progresso de um país! E exemplo de celebração inteligente.

 

Mas não é a primeira vez que um governo tanzaniano cancela celebrações de pompa e circunstância do dia da independência do seu Estado. Em 2015 e 2020, o então presidente, John Magufuli, procedeu da mesma forma e direcionou os fundos orçamentados para a construção de uma estrada e para a aquisição de equipamentos médicos, respectivamente.

 

Está aqui um exemplo de onde ir buscar dinheiro se queremos fazer contenção de despesas públicas, de se ser comedido e racional. Todos os dias queixamo-nos de que não temos dinheiro para isto e mais aquilo, mas passamos a vida em acções e actividades perfeitamente supérfluas e dispensáveis, ou em viagens completamente desnecessárias.

 

Assim que estamos em fim de ano, havemos de ouvir de sumptuosos banquetes de estado, festanças com convidados na casa dos milhares e com réplicas nas províncias até ao distrito.

 

Há uns bons anos, fui convidado a um daqueles banquetes de fim de ano. Ali devia haver mais de dois mil convidados, entre os chamados quadros e figuras nacionais e respectivas esposas. E alguns quadros levavam consigo filho ou filhos!... E ali comeu-se e bebeu-se pela medida grande; do bem e do melhor! Não que o chefe de Estado não possa oferecer um banquete aos quadros nacionais. Pode e deve. Mas, se o espírito é de fazer a contenção de custos, melhor utilização dos considerados parcos recursos, também pode fazer uma coisa mais modesta, simples e econômica: um cocktail com menos convidados! Diálogos públicos sobre o desenvolvimento!

 

E esses dinheiros todos poderiam ir para outros fins sociais que temos tantas necessidades, ou para melhorar a nossa famosa EN1. Não resolveria todos os problemas do país, é certo, mas resolveria um ou outro, o que não é menos importante.

 

ME Mabunda

segunda-feira, 12 dezembro 2022 18:02

Filipe Nyusi: A freed man in US

pr mozvisita min
segunda-feira, 12 dezembro 2022 09:52

Catidza Maguirimussa

AlexandreChauqueNova

Desembarcamos por volta das 13 na ponte-cais de Inhambane, vindos de Linga-Linga, lugar paradisíaco para onde tenho ido nos últimos anos com alguma regularidade, depois de ter sido convidado pela primeira vez em 2019 por Peter Vurukudzu, um zimbabweano excêntrico capaz de arder à mínima faúlha. Hospedo – sempre que vou – em casa dele, localizada num outeiro, isolada das demais residências que não são tantas. É uma habitação ampla, coberta de colmo maciço com paredes de tijolo e, assim com este material, transmite para o seu interior um ambiente fresco e agradável.

 

É um privilégio estar na casa de Peter Vurukudzu, de onde se pode contemplar eternamente o Índico, é um regalo. Daqui ainda se ouve o esbater das ondas na areia da costa, e à noite, o hulular do mar é um afago para o corpo e a mente e a alma. Tenho saudades de voltar sempre, e Vurukudzu já me disse, venha quando quiseres, a casa é tua.

 

Como estava dizendo, desembarcamos por volta das 13 na ponte-cais de Inhambane, mas quem vinha conversando comigo ao longo da viagem é Catidza Maguirimussa, mulher de palavras austeras, livre de bater na minha mão em cada riso, como se já nos conhecessemos de outros caminhos. Estamos sentados lado a lado, enconstados um ao outro de tal modo que o roçagar das nossas roupas e um pouco dos nossos corpos, perturbavam-me e fiquei com a sensação de que ela também sentia-se mexida.

 

Era eu quem mais falava e Catidza ouvia-me com atenção. Fazia-me perguntas por vezes acentuadas  e eu respondia com hosnestidade, sem o receio de que não conheço esta mulher que se desabrocha para mim sem nenhum complexo de me tocar no corpo e bater a minha mão em cada riso. Preferi acreditar na sua sinceridade, no seu fascínio por mim, um homem que ela nem conhece.

 

Descemos e começou a chover, se calhar para gáudio de Catidza, que abriu o enorme guarda-chuvas cobrindo-nos aos dois, de tal modo que os nossos corpos vão continuar em contacto, num encosto agora mais assustador porque ela abraçou-me, tornando mais flexível a mobilidade, e naquelas condições perdi a capacidade de arvorar qualquer palavra, nem que fosse para dizer idiotices. Foi ela então que se adiantou, dizendo aquilo que tenho dito em muitos momentos: “adoro a chuva”!

 

Estamos quase no fim do tabuleiro da ponte, que na verdade é onde ela começa, as pontes começam de fora para dentro. Era necessário que dissesse alguma coisa, mesmo sabendo que o meu quoficiente de inteligência é sumário, então repeiti o que Catidza tinha dito : “eu também adoro a chuva”!

 

Chove chuva fininha sem molhar, mesmo assim, os nossos corpos que se unem em marcha desinteressada. Senti que já não éramos nós que íamos, éramos levados por força desconhecida. Fomos conduzidos sem resistir ou tentar fazê-lo,  à varanda da loja do Damodar Jethá “Jethá da esquina”, que seria afinal o ponto da nossa bifurcação.

 

- Muito obrigado pela companhia, Catidza, obrigado por me teres protegido da chuva.

 

Ela estendeu-me a mão e disse, leva-o para te lembrares de mim, um dia a gente se encontra por aí.

 

Peguei no guarda-chuva, abraçamo-nos profundamente e depois fiquei ali a assistir - depois de me deixar com o seu cartão de visitas - a mulher que descia como um anjo até perder-se no desvio da antiga Sapataria Bernardo. Chama-se Catidza Maguirimussa.

segunda-feira, 12 dezembro 2022 08:39

Lipondo - O buraco

Terapia surda

 

Doroteia, nome grego, que significa dádiva de Deus, decidiu quebrar os seus silêncios e se libertar de suas amarras, curando as suas próprias feridas e traumas. Ela escreve o seu primeiro livro e, com base em factos reiais, pretende dizer à sociedade e ao mundo que, muitas vezes, as famílias se enchem de cuidados para que nada de mal aconteça, aos seus filhos, fora de casa, porém, não têm os mesmos cuidados, dentro de casa, e nem sequer passa pelas suas cabeças que o perigo pode estar tão iminente.

 

Lipondo ou Terapia da Fala é uma narrativa que nos conduz para o pior que rapazes e raparigas podem, alguma vez, passar na infância. Entender a profundidade e o âmago destas revelações equivalem a compreender a condição humana e as formas de vida que o ser humano impõe a si próprio, para coexistir e sobreviver, ou se autodestruir. São os caminhos perversos que mais do que tornar a peregrinação um momento aprazível, fazem dela uma outra forma de suprir a existência e felicidade do próprio ser humano. Destituir o essencial da nossa condição significa iniciar outra guerra tão mortífera como a guerra das armas.

 

Estes textos navegam entre diferentes géneros literários. Algumas vezes mais poéticos, outras agrestes e até ficcionais. São como diria Hannah Arendt, a súmula da própria condição humana ou da perversidade dessa mesma humanidade. Sugiro, então, uma leitura cuidada e com tempo, um momento disruptivo e de desassossego. Uma caminhada sofrida e mística. Estamos diante desse buracão, que nos persuade a revisitar temática sobejamente debatida, com estatísticas perturbadoras, porém, cujas soluções continuam tão utópicas, como imprevisíveis e, convenhamos, incompreensíveis. 

 

Estas são as histórias de várias vítimas da violação de direitos humanos, de direitos da criança e do direito de viver um mundo de sonhos e aspirações. Ela descreve, jamais livre, que jaz como menina de saia escocesa vermelha, uma menina morta e sem voz. O funeral profanado de uma infância, a esperança esmiuçada da eternidade dos seus sonhos. Aqui jaz uma inocência; e aqui jaz uma existência.

 

Por vezes, e em certos momentos, a vida nos conduz para os seus próprios fins e destinos. As marcas de um sofrimento que impelem uma relação psicológica distorcida entre o corpo e a mente. Tudo vira disfuncional. Com a autora, essa sensação de não pertença aconteceu. Sentiu, ao longo de anos, um misticismo destorcido da carne distanciada da mente e do seu intelecto. O corpo deixou de ser, somente, o fenótipo, o visível, mas, também, a parte sensorial e mais notável. Passou, uma vez tatuado pelos traumas, à matéria, no seu estado físico material, como provam todas as lições metafísicas, onde o todo se desencontra das suas partes, se descomunga, atravessando as linhas do imaginário e do inalcançável. Só a força de vontade e o desejo de superação podem falar mais alto.

 

Eu sou Doroteia ou Dorinha ou, se quisermos, uma mulher de lutas. Pouco mais do que dádiva de Deus, também, posso ser luz; a fonte de energia suprema que nos liberta de todas as trevas, escreve a autora. É doloroso e repugnante reler estas descrições porque se tornaram senso comum, numa sociedade que se debate com gravidez precoce, casamentos prematuros, com mães que são crianças. Um pouco por todo o país, estas verdades morrem ao sabor do vento e quase deixam de indignar.

 

Relendo Lipondo, e essa apologia ao buraco, um buraco invertido, porque passamos a conhecer o seu interior, sem antes nos atinarmos à superfície, nos recordamos, também, de George Orwell que versou, nas suas obras sobre a paz, a liberdade, a escravidão, sobre a ignorância e a força. Por conseguinte, ele afirmava, que a consolidação do silêncio se comparava ao exercício do direito a voz desse mesmo silêncio. Exercitar o silêncio exigia coragem, da mesma forma que exigia a intuição para a inacção. Libertar a voz era uma terapia, não completa, mas a possível.

 

Doroteia toca nos extremos, aqueles paradoxos que levam as verdades para o túmulo. Dizia, no começo, que recomendaria uma leitura invertida. Os valores do bom senso também se inverteram. Forçar as crianças, mesmo antes da sua puberdade, a uma relação sexual repetida, tem mais do que perverso, tem maldade e indignação. Desumano e malicioso. Pior quando acontece no tecto da mesma família que julga estar a conviver e a educar. O resto da narrativa suaviza os impactos. Factos consumados e essa busca pela superação e compaixão. Reter aquilo que mais nos pertence, o nosso corpo. 

 

O Prefácio deste livro, que tem a missão de orientar o sentido das nossas leituras, fala numa descrição magnífica, mas, igualmente, numa matéria que faz chorar do princípio ao fim, não só pelo inaceitável, mas, igualmente, pelo facto de serem situações recorrentes e que alcançam milhares de Doroteias, naquilo que elas têm de mais sagrado, que é o seu corpo.

 

O abuso sexual de menores e, igualmente, de qualquer outra mulher, de qualquer idade, continua um crime repugnável, que iliba o criminoso e pune, duplamente, as suas vítimas. Estes actos infames e violentos e, muitas vezes, desproporcionais, não geram, apenas, a dor e a revolta, mas, enterram e sepultam a mulher e seus sonhos. Eles vão acontecendo a cada segundo, todas as horas, todas as semanas e, muitas vezes, nos mesmos locais.

 

O nosso país vive esta encruzilhada. O mundo também. São as histórias de terror que ninguém preza escutar. As aporias que, jamais, nos esforçamos a resolver, e os mantos do pior com que o ser humano tem de conviver, a bom rigor, os dissensos com os quais convivemos e, também, em silêncio, nós os homens, ou nós os pseudo-homens.

 

Quebrar as barreiras do silêncio, como diz Doroteia, tem a missão de tornar em inspiração para outros e para outras. Esse é o sinal de luz, como refere Dorinha.

 

É necessário que todas as Doras de Moçambique se inspirem na jornada do autoconhecimento. Estas mulheres têm que provar que homem nenhum tem poder sobre elas e nós, que escutamos estas declarações, destas vítimas da violência, precisaremos de entender que só exercitando o poder de escutar, de ajudar e de ser solidário, fará de nós próprios, pessoas mais corajosas, destemidas, solidárias e fraternas.

 

Precisamos de acreditar que temos, todos, um propósito, pois as histórias de nossas vidas começam muito antes de qualquer escrita ou de qualquer leitura. O sinal da luz está sempre presente nas planícies, nas montanhas, na infinita superfície do mar, no interior de qualquer lipondo. Que esta leitura nos ajude a transformar uma terapia surda em acções que nos libertem e que nos ajudem a falar, sem medos, sem receios e em busca de uma cura que tenha o sentido de todos os sons e de todas as cores das canções. Quando as mulheres vítimas de violência sexual poderem falar, elas serão e estarão empoderando todas as mulheres que vieram antes delas próprias, e até, daquelas que ainda não passaram por esse trauma.

segunda-feira, 12 dezembro 2022 07:59

Os Invisíveis, por Soraia Abdula

Quem são os Invisíveis?

 

Não… a pergunta devia ser “quem podem ser os invisíveis, quando lhes é dada a oportunidade certa?”

 

Em Setembro de 2022, a Sociedade de Desenvolvimento do Porto de Maputo (MPDC), a Plataforma Makobo e o Conselho Municipal de Maputo inauguraram o Kaya, em plena Baixa da Cidade. Mais do que um refeitório social que distribui 100 refeições gratuitas por dia, de segunda a sábado, o Kaya propõe ser uma casa de oportunidade, de igualdade, uma esperança de um futuro melhor para quem vive na rua e sobrevive da rua.

 

A ideia para esta coleção surgiu neste contexto de inclusão social, inspirada nestas pessoas que a sociedade rotula e esquece, e a quem não é dada outra opção senão a da sobrevivência diária. Partiu também da experiência vivida pela MPDC na implementação de projectos com outros” invisíveis”, as pessoas com deficiência, cuja causa de visibilidade tem abraçado no projecto Porto + (um projecto de emprego inclusivo).

 

A colecção de streetwear Os Invisíveis, apresentada no dia 9 de Dezembro no maior evento de moda em Moçambique – o Mozambique Fashion Week - é um conceito da MPDC, totalmente desenhado por Vanda Pereira, designer de moda de formação, presente nas primeiras edições do MFW e que é uma profissional de comunicação dedicada no Porto de Maputo. Os modelos que apresentaram a colecção são, na sua grande maioria, beneficiários do Kaya. A colecção está dividida em 4 linhas (“Os escondidos”, Os camuflados”, “Os techno” e “Os adaptados”), cada uma expressando um aspecto diferente das ruas.

 

Tal como a colecção, o projecto Kaya (um programa de inclusão social), visa dar visibilidade aos seus beneficiários e tem como objectivo, além da solidariedade, capacitar este grupo por forma a devolver-lhe a dignidade, e dar-lhes as ferramentas necessárias para a sua  reinserção social. Alguns dos modelos irão iniciar em breve um curso de corte e costura. Outros, irão ter estágios técnico-profissionais nas muitas empresas parceiras que se têm vindo a juntar ao projecto. O objectivo é continuar a encontrar caminhos de inclusão social destas pessoas que vivem à margem da sociedade. Para que um dia não haja invisíveis!

 

Quanto à colecção “Os Invisíveis”, as roupas serão vendidas e o produto da venda reverte a favor do Kaya. O próximo passo, é o estabelecimento de uma marca própria, produzida pelos próprios “Invisíveis”, de modo a que esta se torne uma fonte sustentável de renda para projectos de apoio a famílias que se encontrem em situação de exclusão.

 

Desde a sua abertura o Kaya já cadastrou 943 pessoas e serviu 6018 refeições.

A imprensa nacional e internacional, incluindo a media social, as chamadas redes sociais, informam ao público em geral que a Procuradoria da República da Cidade de Chimoio, na Província de Manica, decidiu instaurar um processo-crime contra a produção de um vídeo infantil de natureza pedagógica e de manifestação crítica contra a actuação corrupta da Polícia de Trânsito que se pressupõe tratar-se da Polícia da República de Moçambique (PRM). Esta manifestação crítica foi feita através de produção de um vídeo artístico teatral, cujas personagens são três crianças ainda em tenra idade (6 anos de idade). A Procuradoria da República da Cidade de Chimoio, através de uma alegada nota de esclarecimento, no seu entender, confirmou a existência do referido processo-crime, com trâmites no Tribunal Judicial da Cidade de Chimoio, procurando, erroneamente, dar a entender que instaurou o mesmo em protecção dos petizes envolvidos na cena do vídeo artístico.

 

O vídeo em questão é, indubitavelmente, revelador de um exercício de cidadania de elevada qualidade, no qual se exalta não só a liberdade de manifestação, mas, sobretudo, a liberdade de criação cultural e a liberdade de expressão que estão constitucionalmente consagrados. Atenção que nos termos do n.º 2 do artigo 47 da Constituição da República de Moçambique (CRM), as crianças têm a prerrogativa de exprimir livremente a sua opinião, o que é também consolidado com o direito à liberdade de expressão que todos os cidadãos têm em conformidade com o artigo 48 da CRM.

 

Nos termos do n.º 1 do artigo 94 da CRM “Todos os cidadãos têm direito à liberdade de criação científica, técnica, literária e artística.” Por sua vez, o n.º 2 do mesmo artigo refere expressa e inequivocamente que o Estado promove a prática e a difusão das artes.

 

No entanto, a instauração de processo-crime pela Procuradoria de Chimoio contra a produção e divulgação do vídeo em questão, alegadamente por se tratar de crime de exposição de menor e contra o Estado, constitui acto de ameaça, intimidação e limitação infundada do livre exercício da cidadania e das liberdades fundamentais de manifestação, de expressão e de criação cultural. No mesmo sentido, a conduta da Procuradoria da Cidade de Chimoio contraria o comando constitucional que obriga o Estado a promover a prática e a difusão das artes conforme previsto no supra referido n.º 2 do artigo 94 da CRM. O efectivo julgamento de presente caso “Valter Danone” pelo Tribunal Judicial da Cidade de Chimoio é também assustador e preocupante para um Estado de Direito Democrático e de Justiça Social, conforme é, constitucionalmente, Moçambique.

 

Em bom rigor, a liberdade cultural na sua vertente artística, é um meio adequado e legal para o exercício da liberdade de expressão e do direito à liberdade de manifestação no contexto do exercício da cidadania que permite a crítica à actuação da Administração Pública, de quaisquer entidades públicas ou privadas, incluindo a PRM, com vista a maior credibilização do Estado aos olhos dos cidadãos.

 

Através do vídeo em causa, que é de natureza artística com cunho constitucional, se efectivou a liberdade de informação e de comunicação para a sociedade em geral sobre o comportamento da Polícia de Trânsito, e da PRM no geral, cuja função constitucional é garantir a lei e ordem, a salvaguarda da segurança de pessoas e bens, a tranquilidade pública, o respeito pelo Estado de Direito Democrático e a observância estrita dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos, conforme estabelece o n.º 1 do artigo 253 da CRM.

 

Ora, há mais de 10 anos que a conduta corrupta da PRM, expressa no vídeo didáctico em apreço das “flores que nunca murcham”, tem ocupado lugar de relevo na informação anual do Procurador-Geral da República à Assembleia da República sobre o estado geral do controlo da legalidade no País. Não é segredo para ninguém, tanto é que está em documentos oficiais do Estado e que são de domínio público. Pelo que, o vídeo em questão apenas está a traduzir em linguagem e forma mais simples o conteúdo dos informes da Procuradoria-Geral da República (PGR) sobre a conduta corrupta da PRM.

 

Outrossim, o criminalizado vídeo está a traduzir a mensagem do Comandante-Geral da PRM que vezes sem conta veio a público denunciar actos de corrupção da Polícia de Trânsito, incluindo na Província de Manica, chegando mesmo a mostrar preocupação pela imagem de vergonha que a Polícia de Trânsito transmite aos cidadãos dos Países vizinhos de Moçambique, vítimas de extorsão pela PRM. Aliás, neste contexto, o Comandante-Geral da RM chegou a mandar significativos grupos de Polícia de Trânsito para a reciclagem.

 

Daí que, se o vídeo em causa é pejorativo para a PRM e representa crime contra o Estado, também devem ser os informes da PGR e do Comandante-Geral da Polícia que revelam exacerbada corrupção no seio da PRM, com destaque para a Polícia de Trânsito.

 

Da interpretação do disposto no n.º 2 do artigo 56 da CRM, é fácil perceber que a liberdade de criação cultural pode ser limitada em razão da salvaguarda de outros direitos ou interesses protegidos pela Constituição, como é o caso da salvaguarda da ordem e tranquilidade públicas, respeito pela soberania e pelos órgãos do Estado, o que não se verifica no caso “Valter Danone.”

 

Como é fácil de notar, o vídeo cultural em causa não constitui qualquer ameaça ou desrespeito pela soberania do Estado, nem desprezo à PRM, até porque a prática da liberdade cultural é feita na boa-fé e com o intuito de chamar à reflexão sobre a má actuação da Polícia de Trânsito a bem da boa administração Pública ou da boa governação e realização da justiça e dos direitos humanos.

 

A instauração de processo-crime no caso em apreço pela Procuradoria da República da Cidade de Chimoio e a efectiva realização do julgamento pelo Tribunal Judicial da mesma cidade são evidências inequívocas da podridão de um sistema de justiça fantoche que está ao serviço da ditadura e das práticas de abuso de poder e de direitos, num contexto de institucionalização da intimidação e desprezo pelos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos. Urge, portanto, chamar à colação os preceitos legais relevantes para a responsabilização por instauração de processo-crime baseado na má-fé e abuso de autoridade contra a Procuradoria da República da Cidade de Chimoio.

 

João Nhampossa

Human Rights Lawyer

Advogado e defensor de direitos humanos

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