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Pretende-se, com esta breve análise, trazer à luz, a outra faceta do “Rapper-mor”, Azagaia. Pois, a reação da opinião pública, no geral, em torno da partida do autor dos famigerados álbuns Babalaze e Kubaliwa, para a sua última morada é, primariamente, associada ao seu arrojo em abordar temáticas sociais, as mazelas experimentadas pelos moçambicanos no seu dia-a-dia, ou seja, o caracter socialmente interventivo da sua música. No entanto, há uma outra dimensão em sua lírica – a estilística.

 

Entenda-se, por estilística, como o uso da linguagem com fins estéticos, conferindo carga emotiva aos seus versos, ou seja, o processo de manipulação da linguagem para que esta não se resuma apenas a função de transmitir uma mensagem, mas também de criar um efeito emotivo e afetivo da parte de quem a recebe. A estilística na lírica do Azagaia é fundamentalmente caracterizada por esse recurso. É precisamente aí que reside e se manifesta uma das grandes qualidades artísticas em sua lírica. É, exemplo disso, a sua obra “As Mentiras da Verdade” rica nesse recurso linguístico, que impressiona pelo uso de linguagem figurada e jogo semântico meticulosamente calculados.

 

Muito a propósito do acima, as Faculdades que se dedicam aos estudos das Letras (nomeadamente estudos linguísticos e literários), precisam de estudar a obra do Azagaia nesta perspectiva. Foi, com muito agrado, que tomei conhecimento de uma monografia para a obtenção do grau de licenciatura em Literatura Moçambicana, por um estudante da Faculdade de Letras e Ciências Sociais da Universidade Eduardo Mondlane, intitulada “A Crítica Social em Azagaia”. Penso que este é um passo na direção certa, para compreensão plena, preservação e valorização do inestimável legado do músico. Que o Rapper-mor viva eternamente através de muitos e mais estudos sobre a sua obra!

 

Azagaia pode ter estado no engendramento e repercussão de um novo subgénero, dentro do grande género musical do RAP, pela forma inovadora e diferenciada de fazer e representar este género musical, escapando do traço vigente e dos seus vícios, facilmente diagnosticáveis por sintomatologias de letras exaltando valores de alienação cultural, apologia à ostentação, indecência e muita baboseira à mistura, etc. O autor do tão aclamado “Povo no Poder”, soube, com mestria, ser imune a este flagelo, tendo enveredado por outras avenidas, abordando em suas músicas, temáticas consentâneas com a realidade social vigente, num perfeito casamento com as suas qualidades de exímio “songwriter” – onde ficou proeminente a doce estilística em sua lírica! Vale muito a pena estudar a sua música também nesta perspectiva.

 

O manancial da obra do Azagaia permite que esta possa ser estudada de várias perspectivas, nomeadamente sociopolítica, filosófica, literária e linguística, entre outras.

 

Azagaia veio do Povo e ao Povo pertencerá! Azagaia é o Povo no Poder!

segunda-feira, 20 março 2023 11:26

Ordens superiores?

mia couto

Publiquei no passado sábado um texto nas redes sociais encorajando os jovens a perpetuar a memória do cantor Azagaia. Alertei sobre a necessidade de se protegerem contra o aproveitamento oportunista de partidos políticos. Enviei esse texto para a Carta de Moçambique quando as forças polícias começavam a reprimir violentamente a manifestação de jovens em Maputo.

 

Ainda esperei por alguma explicação, algum pedido de desculpa, alguma razão que explicasse esse acto de violência contra uma marcha que estava devidamente autorizada. Esperei em vão. Durante todo o dia os noticiários dos principais canais televisivos reagiram como se nada tivesse acontecido. Nem uma linha por parte dos jornalistas. Nem uma palavra por parte de qualquer dirigente. Este silêncio constitui uma espécie de reedição do gás lacrimogénio que abundantemente foi lançado nas ruas de Maputo. Esse silêncio é demasiado ruidoso, essa ausência é demasiado indiscreta.

 

Considero inclassificável o comportamento das forças policiais reprimindo o que devia ser protegido, criando desordem onde havia ordem, atropelando a lei perante um evento legal.

 

Os jovens que queriam desfilar nas ruas da capital estavam desarmados, não representavam nenhuma ameaça à ordem ou tranquilidade pública. O funeral de Azagaia mostrou o tamanho da frustração e descontentamento de muitos jovens nas cidades de Moçambique. A polícia que cumpriu “ordens superiores” agigantou esse descontentamento. Há ordens “superiores” que criam desordem e inferiorizam os seus autores.

 

A nossa maior conquista, depois da Independência, foi o calar das armas após dezasseis anos de guerra fratricida. Essa conquista aconteceu porque houve diálogo, houve vontade de escutar aqueles que pensam de modo diferente. Se fomos capazes de abraçar os chefes de um exército armado por que razão espancamos jovens que se apresentam desarmados, respeitando as normas democráticas do direito à palavra e à manifestação pública?

 

Não imagino o que motivou a “ordem superior” que deu luz verde à violência policial. Mas estou certo de que a única ordem superior correta apontaria exatamente na direção oposta. Uma ordem que encorajasse a escutar estes jovens que amam o seu país, uma ordem que protegesse o espaço onde se pudessem expressar livre e pacificamente.

 

Mia Couto

sábado, 18 março 2023 15:23

Recado aos jovens

mia couto

Muitos jovens choraram a morte do Azagaia. Esses jovens querem perpetuar o legado do seu herói. Esse legado é feito de uma matéria preciosa: a força da moral e da coerência. Azagaia teve o raro mérito de enfrentar adversários sem esperar que, em troca, lhe fossem concedidos poderes nem privilégios. Não queria carreira política. Não usou os outros para seu próprio benefício. Não quis ser famoso nem empresário ou político de “sucesso”. Não foi um moço de recados de nenhuma força política. O segredo da sua popularidade foi simples: ser verdadeiro, generoso e genuíno.

 

Agora que ele morreu, surgem entidades políticas que pretendem tirar proveito do seu legado. Algumas dessas forças políticas foram alvo da crítica do Azagaia. O nosso rapper criticava os que usufruem do poder e os outros que, se apresentam como da “oposição”, mas que pretendem apenas um lugar no banquete. São estas as palavras do mano Azagaia:

 

“...E se eu te dissesse

 

que a oposição e o governo não diferem

 

e comem todos no mesmo prato...”

 

Esses políticos e deputados que agora se penduram no prestígio do Azagaia deviam fazer o seu próprio trabalho de casa. Tiveram oportunidades excelentes para granjear respeito. Por exemplo, das vezes em que que se votou na Assembleia da República o aumento dos salários e das regalias dos deputados onde estavam esses que agora se reclamam combatentes da moral e defensores dos pobres? Algum deles votou contra essas repetidas propostas? Nunca. Braços de todos os partidos representados na Assembleia ergueram-se em plena unanimidade. E fizeram-no num momento em que se pediam sacrifícios aos demais cidadãos do país.

 

Por respeito ao Azagaia e por respeito à verdade é preciso que estas vozes da juventude se demarquem destas tentativas de aproveitamento (sejam elas do governo ou da oposição) e se apresentem como uma voz genuína, inovadora e construtiva.

 

Mia Couto

freddy quelim min
 

A solidariedade para com as gentes de Zambézia afectadas pela virulência do ciclone FREDDY acontece a dois níveis. Como sempre os movimentos de solidariedade nascem das raízes humanas, das pequenas elites tomando iniciativa na ausência do Estado, comum em Moçambique.

 

Na Beira do IDAI foram pequenos grupos de convivas de café no Chamuari que puseram mãos à obra. A solidariedade no IDAI foi um marco indelével: o país mexeu-se e da capital zarpou um navio cheio de mantimentos, chegando a tempo de serem distribuídos enquanto era necessário.

 

O que está a acontecer com a Zambézia neste campo da solidariedade civil!?

 

Eis o que apurei:


Há dois grupos no terreno, cujos membros e coordenação confluem na rede social Whatsapp. O "Zambézia no Coração" é malta de origem espalhada pelo país, seus amigos conectados nessa rede, através da qual fundos são angariados e ajuda em espécie, de não perecíveis, idem.

 

A conta bancária para a recepção de dinheiro é de Edna Namitete, escolhida a dedo por causa de sua alegada idoneidade. O conceituado jurista Abdul Carimo Issa, o Buda, é uma das faces mais visíveis deste grupo, que já tem estado a transferir dinheiro para Quelimane. O movimento está a coletar bens em Maputo mas o dilema será mesmo como transportar para a Zambézia.

 

Para além da "Zambézia no Coração" existe o grupo "Todos pela Zambézia", baseado em Quelimane. Este grupo está a distribuir comida a quem não tem o que comer. São milhares não só em Quelimane e arredores mas também em Mocuba e na isolada Maganja da Costa. O que as pessoas precisam é de comida.

 

Reporta-se que o IGND está a distribuir bens alimentares não confeccionados mas o que as pessoas precisam é de comida, frise-se. De acordo com o INGD na Zambézia, 211.784 encontram-se deslocadas. Cerca de 50 mil pessoas foram recolhidas para em 49 centros de acomodação, onde estão a receber ajuda.

 

O paradoxo é esse mesmo: o grupo "Todos pela Zambézia" serve comida quente e o INGD oferece produtos não confeccionados a pessoas que não têm utensílios para transformar esses bens em comida.

 

O transporte de eventuais ajudas colectadas em Maputo vai ser um problema. Mas a grande dúvida é se a solidariedade maputense vai ser espontânea e robusta como foi com o IDAI. Na altura, março de 2019, o Porto do Maputo abriu dois armazéns que receberam víveres e roupas, que foram enviadas para a Beira através do “Border”, um “combo vessel”, que também tem capacidade para 400 contentores.

 

Os efeitos do Freddy na Zambézia ainda não despoletaram semelhante onda. Dúvida-se que isso venha acontecer, a nao ser que a mobilização reforce sua comunicação.. Há poucas semanas, as cheias no sul de Maputo mobilizaram a solidariedade local, com suas pontes de afectos.

 

Mas os afectos pela Zambézia ainda nao surgiram como uma onda rasgando a indiferença. O facto é que as pessoas estão cansadas. Sobretudo quando não vêm da parte do Estado uma resposta firme.

 

O Porto do Maputo está de plantão à espera...Mas para além dos grupos zambezianos, pouco se vê. Em Maputo, parece que as pessoas estão concentradas no pós-morte do artista com suas azagaias empunhadas.

 

O dilema de transportar o grupo Zambézia no Coração é real. Uma companhia de telefonia terá oferecido 10 toneladas de produtos diversos. Como se trata de emergência, essa oferta devia já estar a caminho da Zambézia, e o ideal seria por via aérea. Há quem sugeriu que a LAM pudesse fazê-lo de noite, com seus aviões comerciais. Mas para isso é preciso que a decisão política saia dos gabinetes. (Marcelo Mosse)

 
sábado, 18 março 2023 10:12

Adeus porta-estandarte do povo

azagaia asas

É claro que, sobretudo como africano, havia muito que conhecia a palavra azagaia, essa lança de arremesso mais ou menos curta e afiada, usada na África Austral para caçar animais. A sua versão masculina – o Azagaia – é que só ouvi falar pela primeira vez em 2007, através de um amigo e colega que à época era fotógrafo da agência Lusa em Maputo. Ao final da tarde desse dia, o Pedro, à mesa do café, disse-me: “Hoje fomos entrevistar um jovem rapper cheio de power. Chama-se Azagaia. Tem uma música [As mentiras da Verdade] com uma letra muito poderosa. É filho de pai cabo-verdiano e mãe moçambicana.” Foi assim a minha estreia com o Azagaia.

 

Eu, que nunca me interessei especialmente pela cultura Hip Hop, dei por mim a ouvir Azagaia e as tais letras poderosas que as batidas tornavam-nas ainda mais poderosas. Aliás, o próprio me confessou, numa entrevista que lhe fiz em 2014 sobre a história do rap moçambicano, que as letras lhe fascinavam muito mais do que a batida. “Sempre gostei de poesia, o rap é uma forma de literatura”, disse-me.

 

O seu amor à poesia levou-o, com apenas nove anos, em 1994, a escrever a primeira letra, logo a seguir às primeiras eleições multipartidárias. Chamava-se “Já pariu o ventre democrático”. Falava das eleições, da democracia, da esperança mas também da dependência externa e dos problemas da pobreza endógena. Nestas primeiras letras, embora adaptadas ao momento, sentia-se ali Craveirinha, Noémia, Nogar.

 

Azagaia procurava, sofregamente, conhecer o seu país, na sua multidisciplinaridade. A história, a literatura, a poesia, a música, a dança, o povo e a sua essência. Só assim, achava ele, conseguia a plenitude das suas letras, tocando todos os pontos fraturantes da sociedade moçambicana. E o povo - de onde ele emergiu e do qual, apesar da fama, sempre fez parte - via-se ao espelho de uma forma como nunca tinha acontecido.

 

Azagaia escolheu, desde o início, o seu lado da barricada. Com a sua música, montou uma trincheira e disparou, sem cessar, contra os inimigos do povo, não aqueles inimigos do povo do imaginário soviético, mas sim contra os que atropelam diariamente a sua dignidade. Azagaia é produto do verdadeiro povo, aquele que todos os dias se ensardinha na lata de um my love; aquele que sofre na carne os desmandos e o autoritarismo da polícia; aquele que diante de uma chuvada tem de dormir em cima da mesa; aquele que quando o pão sobe volta a dividir o indivisível; aquele que não tem dinheiro para o refresco que apressa o atendimento no hospital; aquele que é frequentemente enxotado para a berma quando os importantes desfilam nos seus carros de luxo; aquele que veste capulana e camisete com o rosto dos “senhores” não por gosto mas por necessidade.

 

Azagaia foi, permanentemente, o porta-estandarte deste povo em sofrimento. E, por isso, o povo, reconhecido, ocorreu em massa para lhe prestar a derradeira homenagem na passada terça-feira, no coração do poder autárquico. Pelo menos nessa manhã, o Povo esteve no Poder. Os corruptos, os bandidos, os assassinos estiveram fora, cumprindo-se, por umas horas, o sonho de Azagaia.

 

*Opinião estritamente pessoal.

JoaoNhampossanovaa220322

Os cidadãos, fãs e seguidores do Azagaia, considerado herói do povo, decidiram organizar uma marcha nacional agendada para o dia 18 de Março, que, em princípio, terá lugar em todas as capitais provinciais, em homenagem ao rapper, ícone do hip hop lusófono.

 

No entanto, há bastante tempo que, do ponto de vista prático, os cidadãos não são permitidos exercer o direito à liberdade de manifestação, sobretudo os do tipo marcha, na via pública. Aliás, para o efeito da denegação dessa liberdade aos cidadãos, o governo de Moçambique, recorrentemente, através da sua força policial, impede ilegalmente o exercício do direito à manifestação pacífica pelos cidadãos ou grupos sociais, seja por via de ameaças, intimidação, detenções arbitrárias, agressão física, baleamentos, tortura e outros maus tratos que consubstanciam violação dos direitos humanos, para além de argumentos infundados nos termos da lei, de que a manifestação não foi autorizada, quando a realização da manifestação não carece de qualquer autorização pelos órgãos da administração pública. Neste quesito, a Ordem dos Advogados de Moçambique elaborou e publicou um caderno sobre o exercício do direito à liberdade de manifestação que muito bem explica os cidadãos os passos legais para o seu exercício e limitação pelas autoridades.

 

Curiosa e estranhamente, são apenas permitidas as manifestações que visam exaltar ou bajular o governo do dia, especialmente o Presidente da República e o partido no poder.

 

Perante essa situação, preocupa a “vista grossa” que fazem as instituições de justiça relevantes nesta matéria, com destaque para o Ministério Público, entanto que garante da legalidade, sem, no entanto, ignorar o papel da Comissão Nacional de Direitos Humanos e o Provedor da Justiça que, pelas suas atribuições e competência em matéria de direitos humanos e realização da justiça, deveriam ser mais interventivos e incisivos com vista a garantir o respeito pelo exercício da liberdade de manifestação nos termos da lei.

 

A morte e o legado do Azagaia, conforme ficou notório pela enchente e manifestação de diversa natureza no seu funeral, abriu uma grande janela senão uma grande porta mesmo para o despertar do povo relativamente à salvaguarda dos seus direitos e liberdades fundamentais, bem como para o efectivo exercício dessas liberdades contra a má-governação, abuso de poder, opressão, corrupção, discriminação e violação dos direitos humanos em busca da almejada justiça e bem-estar social de todo o povo.

 

Assim, amanhã, dia 18 de Março, será o primeiro grande teste dos cidadãos face ao combinado com o Azagaia: Povo no Poder! Todavia, será que este povo há muito intimidado pelas autoridades terá a coragem de levar a cabo a marcha nacional em homenagem ao seu herói, independentemente de autorização da marcha pelas correspondentes autoridades, o que não é condição legal para o efeito? E se for impedida a marcha sem fundamento legal, será que esse povo está preparado para demandar sobre várias formas a administração pública em causa e exigir responsabilidades em tempo útil? Será que os cidadãos que pretendem marchar pacificamente amanhã em homenagem a este ícone do hip hop lusófono têm a necessária coragem deste para não se deixar intimidar em lutar pelos seus direitos e liberdades fundamentais?

 

Azagaia morre e deixa riquíssimos ensinamentos de revolução e combate contra a opressão num contexto de excessiva limitação do espaço cívico, de violação dos direitos humanos e de perseguição dos activistas sociais, dos críticos da má-gestão do bem público e da prática cada vez mais acentuada do discurso de ódio contra as organizações da sociedade civil e liberdade académica.

 

Portanto, pela euforia popular e vontade de colocar um basta nos abusos de direitos e liberdades, bem assim no cada vez mais empobrecimento dos mais pobres, Azagaia torna-se numa espécie de Jesus que morreu para nos salvar. Será que temos mente liberta bastante para perceber o sentido e o alcance do princípio constitucional de que a soberania reside no povo e assumir esse poder? Veremos no teste de amanhã…

 

Por: João Nhampossa

 

Human Rights Lawyer

 

Advogado e Defensor dos Direitos Humanos

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