O surgimento do Estado Social, que se caracteriza pela prestação de serviços públicos e fornecimento de bens públicos pela Administração Pública ao cidadão, exige grandes investimentos públicos e angariação de recursos financeiros significativos nem sempre disponíveis em abundância. Tradicionalmente, para lograr tal objectivo o Estado Social financia-se através da arrecadação de impostos.
São várias as razões que levam o Estado a realizar directamente a prestação de serviços públicos e fornecimento de bens. Do ponto de vista clássico, na óptica de Jean-Jacques Rousseau é o pacto social entre o Estado e os cidadãos que justifica a assunção por aquele da responsabilidade de satisfazer as necessidades colectivas. Mas, por outro lado, razões de mercado ou estratégicas podem justificar, igualmente, a intervenção do Estado na prestação de serviços públicos. Não raras vezes, algumas áreas em que manifestamente os serviços a prestar para assegurar as necessidades colectivas não são lucrativos, eles não atraem a intervenção do sector privado. Noutros casos, na natureza própria das necessidades em causa, como seja a necessidade de segurança, ou por razões de estratégia política, o Estado entende não convir a intervenção do mercado para a satisfação das necessidades colectivas.
Por estas e outras razões, o Estado Social empenhou-se directamente, numa primeira fase, na provisão de bens e serviços públicos através do modelo de administração directa, que é aquele em que as actividades voltadas à satisfação das necessidades colectivas são realizadas pelo próprio Estado. Como é fácil de prever, o modelo de administração directa exige uma máquina administrativa de grande dimensão e complexa, dependente duma cadeia de comando centralizado, com o risco de, por vezes, se denotar ineficiente e ineficaz para satisfazer a demanda. Em Moçambique, a grande ofensiva política e organizacional desencadeada pelo Presidente Samora, nos anos 1980 do século passado (XX), mostrou os riscos da administração directa do Estado em diversos sectores.
Deste modo, como as necessidades colectivas são contínuas, crescentes e em constante evolução, a sua satisfação tornou-se, ao longo do tempo, cada vez mais complexa e dispendiosa, o que justificou a busca de outros modelos organizacionais do Estado Social, para melhorar o fornecimento de bens públicos e a prestação de serviços, mediante a criação, por exemplo, do Sector Empresarial do Estado e Institutos Públicos. Portanto, o Estado Social enveredou pela chamada administração indirecta do Estado, que consiste na criação de entidades públicas, mas distintas do próprio Estado, que se ocupassem da satisfação de necessidades colectivas específicas, anteriormente geridas pela via da administração directa.
A constante busca pela eficiência do Estado, num contexto de democratização do país e eficiência da economia, fez com que, de igual modo, o Estado Social optasse por fazer intervir o sector privado em sectores tradicionalmente reservados à intervenção directa e indirecta do Estado. Generaliza-se uma nova fase dum Estado Social caracterizado pela chamada Privatização da Administração Pública, que consiste, por um lado, na adopção de instrumentos de gestão privada (por exemplo, o Estado transforma empresas públicas em sociedades anónimas de capitais mistos) para a gestão de bens e serviços públicos. Por outro, pela intervenção do sector privado no fornecimento de bens públicos e prestação de serviços públicos através da privatização do sector empresarial do Estado, mormente mediante a venda de empresas estatais e públicas para privados, ou através de concessões de bens e serviços públicos a privados.
Actualmente, pode dizer-se, com certa segurança, que a técnica da concessão de bens e serviços públicos constitui a forma mais generalizada de valorização económica dos referidos bens e serviços públicos. Portanto, pela via da concessão os bens e serviços públicos são explorados por um privado que, investindo o seu capital financeiro e humano, fornece bens e presta serviços públicos, fazendo-se remunerar pelas taxas cobradas ao público.
É na evolução das concessões de bens públicos e serviços públicos, como instrumentos do exercício do poder público, que surgem as Parcerias Público Privado (PPP´s), que constituem objecto deste artigo de reflexão.
De um modo geral e conforme resulta do atrás exposto, as PPP´s fazem parte das várias formas de intervenção do sector privado na gestão e exploração dos bens públicos e serviços públicos, situação ditada, fundamentalmente, não apenas por razões de eficácia e eficiência, mas também pela necessidade de captação do capital privado e da sua capacidade de organização e gestão.
Embora alguns segmentos da opinião pública se posicionem contra as concessões, por via, neste caso, das PPP´s, por verem nelas apenas uma forma de alegado enriquecimento do sector privado à custa de bens e serviços públicos, a verdade é que há enormes vantagens para o Estado advindas da intervenção do sector privado no fornecimento de bens públicos e prestação de serviços públicos.
Procuramos, neste artigo, expor as oportunidades oferecidas pelas PPP´s e pelo mercado de valores mobiliários (Bolsa de Valores) para a expansão da intervenção do cidadão na gestão e exploração dos bens e serviços públicos. Para o efeito, apresentamos, em primeiro lugar, o conceito e natureza das PPP´s, para, em segundo lugar, apresentarmos as PPP´s como meios de exercício do poder público pelo sector privado. Por último, demonstramos como as PPP´s podem, por via da Bolsa de Valores, contribuir para a democratização e massificação da participação dos cidadãos na gestão e exploração dos bens e serviços públicos.
A intervenção do sector privado na provisão directa de bens e serviços públicos pode realizar-se através de três formas estabelecidas na Lei n.º 15/2011, de 10 de Agosto (Lei das Parcerias Público Privado, ou Lei das PPP´s), nomeadamente através das parcerias público-privadas (PPP´s), Projectos de Grande Dimensão (PGD) e Concessões Empresariais (CE). Importa, pois, perceber em que consiste esta ideia de PPP´s em termos de conceito e natureza.
De acordo com o disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 2 da Lei n.º 15/2011, de 10 de Agosto (Lei das PPP´s), as PPP´s constituem empreendimentos em áreas de domínio público ou em áreas de serviço público no qual, mediante contrato e sob financiamento, no todo ou em parte, do parceiro privado, este se obriga perante o parceiro público a realizar o investimento necessário e a explorar a respectiva actividade, para a provisão eficiente de serviços ou bens que compete ao Estado garantir a sua disponibilidade aos utentes.
Por sua vez, conforme a alínea b) do artigo 2 da Lei das PPP´s, os PGD são empreendimentos de investimento autorizado ou contratado pelo Governo, cujo valor de referência a 1 de Janeiro de 2009 excedia 12.500.000.000,00 MT (doze mil e quinhentos milhões de meticais), enquanto as Concessões Empresariais são as que, nos termos da alínea c) do mesmo dispositivo legal, têm por objecto a prospecção, pesquisa, extracção e ou exploração de recursos naturais ou patrimoniais.
Decorre do preceituado no diploma legal atrás citado que, de um modo geral, em qualquer das suas modalidades as PPP´s representam uma forma inovadora de realização de projectos públicos de grande envergadura, sem necessidade de investimento público, uma vez que elas permitem a participação do sector privado, que além de financiar o projecto, participa na sua concepção, construção ou aquisição e instalação de equipamentos necessários ao funcionamento de serviços públicos, bem como à respectiva gestão, ao mesmo tempo que assumem parte dos riscos associados.
Portanto, resulta do que atrás se expôs que as PPP´s são uma forma de financiamento das necessidades do Estado com recurso ao capital privado para o fornecimento de bens públicos e prestação de serviços públicos.
As PPP´s são, em termos simples, uma forma de concessão de bens públicos ou serviços públicos. Esta é justamente a solução regulatória que resulta do disposto no artigo 40 do Regulamento da Lei das PPP´s, aprovado pelo Decreto n.º 16/2012, de 4 de Julho, que estabelece que são modalidades das PPP´s o contrato de concessão, a cessão de exploração e a concessão de gestão. Não se tratando esta abordagem de um artigo científico, limitamo-nos a descrever estas modalidades sem entrar em críticas às opções conceptuais assumidas pelo legislador.
O contrato de concessão, conforme o preceituado no n.º 2 do artigo 40 do diploma legal atrás referido, consiste na cedência de direitos de desenvolvimento ou reabilitação e respectiva exploração e manutenção de empreendimento novo ou existente em área de domínio público, para a prestação de serviço público ou provisão de bens, sob conta e risco da contratada e mediante a remuneração ao Estado por essa cedência, traduzida na forma de taxa de concessão fixa ou variável. A particularidade desta forma concessionária duma PPP é que o parceiro privado vai investir na construção ex novo ou na reabilitação duma infra-estrutura pública ou um serviço público. Há, aqui, uma maior injecção do capital privado.
Na mesma linha, prevê o n.º 3 do artigo 40 do Regulamento da Lei das PPP´s que o contrato de cessão de exploração consiste na cedência de direitos de desenvolvimento ou reabilitação e respectiva exploração e manutenção do empreendimento, sob conta e risco da entidade contratada e mediante a remuneração ao Estado por essa cedência, através da respectiva taxa de cessão de exploração. Já a particularidade da PPP na modalidade de cessão de exploração, o Estado cede a um privado a exploração dum bem público ou serviço público, o que igualmente pode ser acompanhado do desenvolvimento ou reabilitação e manutenção do empreendimento objecto da concessão.
Por último, a norma constante do n.º 4 do artigo 40 do Regulamento da Lei das PPP´s refere que o contrato de gestão consiste na cedência de direitos de gestão de empreendimento existente e operacional do Estado, sob conta e risco de gestão da entidade contratada e mediante renumeração à entidade contratada e mediante remuneração ao Estado, através do pagamento duma comissão de gestão com base numa parte dos rendimentos gerados pelo próprio empreendimento e a entrega dos resultados de exploração deste à entidade contratante. Nesta modalidade de PPP, o investidor não intervém no desenvolvimento ou reabilitação do empreendimento, uma vez que este existe e encontra-se operacional, cabendo-lhe a sua exploração sustentável.
Pelo facto de nas PPP´s o Estado transferir para o parceiro privado a gestão e exploração de bens e serviços públicos, regra geral essa transferência é igualmente acompanhada da cedência de poder público.
Quando na norma constante do n.º 3 do artigo 2 da Lei das PPP´s o legislador afirma que as funções de soberania não transferíveis não podem ser objecto de parcerias público-privadas, no fundo está a dizer que nas PPP´s pode haver transferência de poderes para o privado desde que tais poderes não façam parte do núcleo de funções constitucionalmente consideradas funções de soberania.
Por natureza, os contratos de concessão permitem o exercício de poderes públicos pelos privados, na medida do estritamente necessário à implementação do empreendimento público cedido através da PPP em causa. Consequentemente, o exercício de poderes públicos de autoridade por entidades privadas serve ao interesse público adstrito à infra-estrutura pública ou serviço público cedido. Portanto, não são os objectivos do parceiro privado na PPP que justificam a cedência do poder público. Os poderes são-lhe confiados segundo o princípio do interesse público.
De todo o modo, o que nos cumpre ressaltar aqui é o facto de, através das PPP´s, permitir-se a participação pública do cidadão no exercício do poder público subjacente à prestação do serviço público. Trata-se duma vertente económica da democracia participativa, em que o envolvimento do sector privado na gestão e exploração de bens e serviços públicos implica uma cedência do correspondente poder público, cabendo ao Estado o exercício do poder de fiscalização, através do controlo da conduta do privado para conformar-se com a lei.
Neste ponto, cumpre-nos destacar dois aspectos fundamentais. O primeiro, que é o financiamento do investimento público através da Bolsa de Valores. O segundo, a necessária criação de condições para que as PPP´s constituam uma oportunidade económica não só para o grande capital, mas, sobretudo, para a massificação do acesso ao mercado de valores mobiliários para a maior parte possível dos cidadãos interessados.
Em Moçambique, a Bolsa de Valores foi criada pelo Decreto n.º 49/98, de 22 de Setembro, como instituto público. Recentemente, a Bolsa de Valores de Moçambique foi transformada em sociedade anónima, através do Decreto n.º 18/2023, de 28 de Abril.
Geralmente, a Bolsa de Valores é tratada como um mercado estruturado e organizado, onde se negociam valores mobiliários, com maior destaque às acções de sociedades de capital aberto. O mercado de valores mobiliários promove o encontro entre os que precisam de capital para investirem na inovação e desenvolvimento das empresas e os que dispõem desse capital para investirem.
De um modo geral, quando as empresas precisam de financiar-se, alternativamente à banca comercial, recorrem ao mercado bolsista, emitindo acções que são colocadas à venda para investidores interessados em capitalizar as suas poupanças para obter lucro dos dividendos das empresas em que investem, ou através da revenda das mesmas acções quando num dado momento estiverem sobrevalorizadas.
Como atrás referido, o Estado pode ceder a privados a gestão e exploração de infra-estruturas públicas e serviços públicos. Estes privados, ao invés de recorrerem à banca comercial, podem recorrer ao mercado de valores mobiliários para se financiarem com vista a investirem em infra-estruturas públicas ou serviços públicos que lhes são cedidos pelo Estado, por via das PPP´s.
A Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e o Desenvolvimento (UNCTAD) encara o mercado de valores como uma boa alternativa para o desenvolvimento de infra-estruturas públicas e serviços públicos, como um mecanismo de os Estados alcançarem facilmente os Objectivos de Desenvolvimento Sustentável.
À luz do princípio constitucional da liberdade de mercado, acolhido na alínea b) do artigo 97 da Constituição da República, o mercado de valores mobiliários orienta-se pelas forças de mercado. Destarte, a participação das empresas no mercado de valores mobiliários é livre. Daí que para que a capitalização bolsista das empresas actue como instrumento duma política pública de massificação do acesso ao mercado, é necessária a adopção de estratégias apropriadas para o efeito.
Desde logo, a adopção duma política pública que torne obrigatória a inscrição na Bolsa de Valores dos parceiros privados que constituam uma PPP com o Estado ou outro parceiro público. Por esta via, as empresas que pretendam estabelecer PPP´s seriam obrigadas a abrir o seu capital para o público, a fim de que qualquer cidadão interessado possa investir as suas poupanças na aquisição das respectivas acções.
Uma tal política vai de encontro com o preconizado no artigo 21 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, nos termos do qual toda a pessoa tem o direito de tomar parte na direcção dos negócios públicos do seu país.
Com efeito, a obrigação de as empresas que firmem PPP´s com o Estado de abrirem o seu capital para o público permitiria que qualquer cidadão interessado e com capacidade financeira para o efeito pudesse tirar benefícios económicos directos da gestão e exploração dos bens e serviços públicos pelo sector privado.
Deste modo, entendemos que as infra-estruturas e serviços públicos não só beneficiariam o público através do uso ou acesso directo, mas também através de ganhos económicos que proporcionariam ao público.
O emergente mercado das PPP´s, através de concessões de obras públicas e serviços públicos, tem um grande potencial de massificar a inclusão económica, através da abertura do capital das grandes empresas ao público, para que este possa investir as suas poupanças.
Uma estratégia desta natureza, que alie as PPP´s e a Bolsa de Valores de Moçambique, traria imensos ganhos, não só pela massificação do acesso ao mercado de valores mobiliários, como, também, por permitir que pequenos investidores busquem capitalizar as suas poupanças, investindo-as. Isso contribuiria, também, para o crescimento económico inclusivo e o empoderamento económico dos cidadãos.
Em nossa opinião, este veículo contribuiria imenso no combate a esquemas ilícitos de investimento, como as pirâmides de investimentos, que criam imensos problemas quando falham. Mas pode, igualmente, contribuir na formalização do mercado informal, na medida em que parte dos recursos financeiros que circulam no mercado informal poderia ser capitalizado no mercado de valores mobiliários.
Temos consciência que a nossa Bolsa de Valores é ainda de pequena dimensão, quer em relação ao tamanho que pode ter no futuro, quer em comparação com outras bolsas dinâmicas de outros países (tendo uma capitalização em % do PIB de 28,54%, 16 empresas cotadas e 26.305 titulares registados na Central de valores Mobiliários).
Com efeito, há ainda muito espaço para o crescimento da BVM no futuro. Uma intervenção estratégica do Estado visando fazer das PPP´s um instrumento para o envolvimento do cidadão no investimento público, através da BVM, S.A., permitiria ampliar o escopo, a liquidez e a profundidade do mercado de capitais, no plano nacional.
Com esta medida de política, dar-se-ia um passo firme na direcção da dinamização do mercado secundário de valores mobiliários, bem como na popularização e democratização do capital em Moçambique.
Nas entrelinhas das notícias da última noite, parece não restarem dúvidas de que Moçambique conhecerá, hoje, sábado, ou nas primeiras horas de amanhã, domingo, o candidato presidencial dito do partido Frelimo, mas que será, na verdade, de uma amostra representativa dos moçambicanos, e não necessariamente da associação privada denominada Frelimo.
Por conta do acima, a escolha ou eleição de candidados presidenciais pelos partidos políticos é um tema suprapartidário.
Mas por que é ou será assim?
A norma da alínea d) do n.⁰ 2 do artigo 146 da Constituição da República de Moçambique (CRM) é, de facto, clara quanto ao facto de a candidatura ser dos eleitores (um grupo destes) e não dos partidos políticos. O papel destes é, em bom rigor, de organizar os eleitores.
De contrário, bastava cada partido político interessado confirmar que tem 10 mil membros e submeter a candidatura, mas não é esse o caso. Cada cidadão deve assinar individualmente o apoio à candidatura. Logo, as candidaturas presidenciais são suportadas pelos eleitores e não necessariamente pelos partidos políticos.
Aliás, é exactamente por isso que o nosso regime admite candaturas sem partido, as ditas candidaturas independentes, que já as tivemos. Até porque não seria exagerado arguir que todo o candidato a Presidente da República (PR), ainda que apoiado por um ou outro partido político, deveria ser tido como formalmente independente dos partidos políticos.
Numa perspectiva progressista, até faria sentido que o processo da escolha dos candidatos a PR fosse em eleições primárias abertas a não membros…
(Ericino de Salema)
Em evento ontem realizado, que se convencionou chamar de conferência de imprensa, o Secretariado Técnico de Administração Eleitoral (STAE) disse, respondendo às perguntas de jornalistas, que nada podia fazer face às notícias postas a circular sobre as alegadas violações às regras do jogo democrático-eleitoral, supostamente porque não havia nenhuma queixa a propósito.
As sobreditas violações tiveram como figuras de cartaz cidadãos filiados ou associados aos três principais partidos políticos do país, nomeadamente Frelimo, Renamo e MDM, em doses desiguais.
O que o STAE disse na “conferência de imprensa” de ontem é por demais grave, dadas as responsabilidades dos órgãos de gestão eleitoral em situações tais.
O STAE é, como se sabe, braço operacional da Comissão Nacional de Eleições (CNE), que, igualmente, parece não ter “movido palha”.
O acórdão do Conselho Constitucional (CC) atinente à validação das eleições autárquicas se 2013, as quartas, fixou, de forma clara e cristalina, um comando que deveria ser apanágio da actuação dos órgãos eleitorais naquele tipo de situação:
“A CNE é um autêntico órgão de administração eleitoral activa, com amplos poderes legais de intervenção em todas as fases e actos do processo eleitoral, com vista a garantir que os mesmos decorram em condições de liberdade, justiça e transferência. Isto significa que a CNE pode e deve, ex-officio (NA: oficiosamente, ou seja, sem queixa nenhuma, a partir do momento que toma conhecimento), proceder à fiscalização de quaisquer actos, quer do recenseamento, quer do processo eleitoral, adoptar, pontualmente, as diligências que julgar mais adequadas à reposição da legalidade eleitoral, sempre e quando esta se mostre violada, seja por órgãos subalternos de administração eleitoral, seja por quaisquer outros actores dos processos eleitorais” (Acórdão número 4/CC/2014).
O que será, então, fiscalização (que incide sobre o controlo da legalidade dos actos dos órgãos subalternos) e supervisão (que visa o controlo da legalidade e eficiência da acção administrativa, qual poder vinculado de controlo da legalidade) eleitorais, prerrogativa dos órgãos eleitorais que consta da Constituição (artigo 135) e de todas as leis eleitorais, se estes órgãos públicos só podem agir havendo queixa?
Em boa verdade, o forte da supervisão é o poder jurídico de revogar, substituir ou anular os actos objecto de controlo de legalidade. É o que esses órgãos não estão a fazer. Isto não precisa de queixa alguma. A inacção dos órgãos eleitorais configura, pois, uma renúncia às suas competências, o que viola o poder de decisão.
Estamos, do mesmo modo, perante uma clara violação do princípio da legalidade da competência, segundo o qual esta não se presume, muito menos se renuncia!
Não se tendo agido pontualmente, o processo eleitoral em curso já se acha infestado de um insanável vício de ausência de credibilidade, o que, no limite, até pode afectar o projecto de pacificação ora em fase avançada.
Não valesse o princípio da tipicidade, associado à proibição da extensividade interpretativa, em sede do Direito Penal, este tipo de inacção deveria ser equiparada ao tipo legal de crime de traição à pátria.
Um ‘non facere’ problemático esta acção por omissão da CNE-STAE!!!
Fez-se jornalista em meados da década 80 do século XX, quando se viu a debitar habitualmente o seu gene de cidadão cultural na Gazeta de Artes e Letras da Revista Tempo, que tinha como coordenador o escritor Luís Carlos Patraquim. Não só escrevia de ofício, como não perdia as na altura habituais tertúlias literárias na Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO) e as sessões de m’saho que tinham como palco o Jardim Tunduru, conforme contou-me um veterano do jornalismo pátrio que com ele partilhava as máquinas de escrever da e na Tempo.
Na década de 90 do mesmo século, logo nos seus primórdios, Nelson Saúte (NS), o sujeito de quem falo, estreita-se como escritor, mas sem dissociar-se duma das técnicas do jornalismo, que é também um dos seus géneros: publica em 1990 A Ponte do Afecto, seu primeiro livro, que é uma colectânea de entrevistas a escritores portugueses.
Inspirado nos dissabores da famigerada guerra dos 16 anos, mais concretamente no camião transportando cadáveres feitos algures em Maluana em plena avenida Eduardo Mondlane, qual epicentro da capital do país, a caminho da morgue do Hospital Central de Maputo (HCM) e sob escolta de Marimbique, um personagem por sinal por si amado, NS viria a publicar, em 1998, o romance Os Narradores da Sobrevivência, no qual procura fazer o que os antropólogos chamariam de etnografia de Moçambique dos anos 80 do século passado, contando em profundidade como se conjugava, por aquelas alturas, o verbo sofrer. Fá-lo com histórias de cenas sobre o carapau. O repolho. Os ‘grupos dinamizadores’. As bichas. Ou seja, com quase tudo.
Aliás, é no post scriptum do Os Narradores da Sobrevivência onde ele relata, distante das entrelinhas, o que aquele período da nossa história colectiva significa:
“Os anos 80 foram anos dramáticos. Foi o tempo em que experimentámos a miséria mais abjecta em termos materiais. Onde os homens despojaram-se da sua humanidade e vestiram a bestialidade oculta na sua personalidade. Foram os anos da morte, da violência das armas que em humanas mãos serviram para destroçar os mais belos projectos igualmente humanos que havia entre nós e reduzir o homem moçambicano à condição de coisa nenhuma” (pág. 141).
Bem vistas as coisas, de memorialista, conforme o catalogo no título deste texto, NS tem o facto de tomar o passado como seu referencial literário, como seu imaginário criativo, mas ajudando os seus leitores a perceberem, a partir do que produz, o presente, que, nalgumas vezes, até parece sósia do passado.
Os dois trechos abaixo, igualmente extraídos do Os Narradores da Sobrevivência, me parece dizerem, com as necessárias adaptações, muito dos que, durante dois anos (2017-2019), sensivelmente, recusavam que Cabo Delgado estivesse sob ataque terrorista, bem assim do que fenómenos como exclusão social e desestruturação da família enquanto agente de socialização primária podem fermentar:
“Onde é que se viu, pá? Uma guerra aqui? Já parece que os tipos que escrevem nos jornais têm a paranóia dos filmes americanos. Esta malta anda maluca, Jone. Isso é lá no cinema. Aqui está tudo calmo, pá. Aqui não há crise” (pág. 62).
“Às vezes aparecem esses molwenes, esses meninos que mendigam nas ruas, os sem ninguém, vêm aqui sentarem-se com os velhos. Brincam no colo da velhice (...). Eles são filhos do sofrimento. Nasceram do ventre da desgraça. Foram paridos pela miséria. Eles, sim, um dia hão-de fazer guerra” (pág. 64).
Nas entrelinhas do seu livro de poesia A Pátria Dividida (1993), acha-se representado o Moçambique actual, marcado por várias corridas, muitas delas atabalhoadamente conclusas ou mesmo a marcha atrás, como o são os dossiers ‘Proposta de Lei das Associações’ e ‘Eleições Distritais’, talvez por conta de “desenrascanços” políticos.
‘Sob o Olvido da Cidade’ (pág. 42) é um dos poemas que integram A Pátria Dividida:
“Pelo grito nomeamos
cabelos olho nariz
lábios boca
dorso seios umbigo
púbis nádegas.
O corpo que amamos
na posse da loucura.”
Em 1998, tive o privilégio de conhecer NS ‘em pessoa’, enquanto co-facilitador de um Curso de Especialização em Jornalismo Cultural, com dois meses de duração, oferecido, em Maputo, pela União Europeia a jornalistas culturais dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP). Nesse curso, no qual tinha como colegas jornalistas como Gil Filipe, Frederico Jamisse, Belmiro Adamugy, Eduardo Constantino e Policarpo Mapengo, NS revelou-se não só como um exímio intelectual e homem de cultura, mas como, também, uma pessoa frontal, convicta, amiúde até com parcas doses de diplomacia, o que em educação de adultos talvez seja um valioso activo.
Terá sido isso que concorreu para que NS se incompatibilizasse com alguns dos colegas desse curso, sobretudo os angolanos, com destaque para o ‘kota’ Sá de Carvalho, que teve solidariedade incondicional dos seus patrícios...
Foi pelos dias daquele curso que, através de NS, conheci certas figuras incontornáveis do chamado jornalismo moderno, como a italiana Oriana Fallaci, autora da célebre obra Uma Entrevista com a História (1972), e o excêntrico actor Gerard Depardieu, habitualmente conhecido como francês, mas de há uns anos para cá russo, por motivos que não cabem nestas linhas.
Em Os Habitantes da Memória, livro que NS fez publicar em 1998, corporizado por entrevistas a um grupo selecto de escritores moçambicanos, resulta claro que o seu ADN literário foi consideravelmente influenciado por Oriana Fallaci. Da entrevista ao saudoso jornalista e escritor Heliodoro Baptista (HB), inserta nesse livro, vale sempre a pena ver o que abaixo se transcreve:
“[NS] Há um hiato de cinco anos na tua vida como jornalista. Foi um momento de terrível confrontação com o regime. Qual é o teu testemunho sobre esse tempo em que estiveste silenciado?
[HB] Fui impedido de trabalhar e, sobretudo, de ser jornalista. A ordem era que eu não podia ser jornalista neste país. Estava à espera de ir para Maputo trabalhar no Notícias. Deixara o Diário de Moçambique, podia ir para o Notícias, Tempo, AIM (Agência de Informação de Moçambique) ou INC (Instituto Nacional de Cinema), sei lá, para um lugar onde podia ser jornalista. Um dia, o Botelho Moniz manda dizer-me que o Sr. Armando Guebuza precisava de falar comigo com muita urgência. Estava em casa, pus uma roupa qualquer e fui assim mesmo. Lembro-me que ele estava no Palácio que era do antigo governador colonial, havia uma série de oficiais superiores, saíam e entravam, era uma fase de grandes movimentações de guerra. Depois de ele ter atendido esses oficiais, fomos para um jardim onde ele estava instalado com bebidas, amendoins, castanhas de caju, bolachinhas, requintes para a altura. O Botelho Moniz acompanhava-me. Ele fez o intróito com o Armando Guebuza. Lembro-me que se falava numa purga na China – a do “Bando dos Quatro”. Lembras-te? Ele dizia: ‘Ah, aquilo é muito aborrecido porque o comunista nunca deve fazer isso a um camarada seu’. Não fez mais nenhum comentário. Depois, começou a fazer-me perguntas deste tipo: ‘Conheces o Jorge Amado?’. ‘Sim conheço. Conheço muitos livros de Jorge Amado’. ‘Não, estava-me a referir àqueles livros que eu li’. Acabou por dizer-me que tinha lido Os Subterrâneos da Liberdade. O Jorge Amado já tinha ultrapassado essa fase do comunismo. E, depois, mudando de assunto: ‘Não interessa, nós estamos preocupados consigo, com a sua situação...!’. Como se ele não fosse o responsável por essa situação! Como se não fosse ele a dizer que eu não podia trabalhar. Isto, sete meses depois de eu estar no desemprego, sem receber. Então, fez esta proposta concreta: ‘Nós temos várias ideias’ – eu penso que uma delas era o campo de reeducação – ‘mas uma das ideias, aliás, já falei aqui com o Botelho Moniz, é que você vai trabalhar para uma empresa’. Não disse qual era a empresa, mas eu presumo qual; e não precisou se era na Beira ou fora. Só disse que não faltaria absolutamente nada na minha casa. Disse: ‘Peço que veja isto, aos seus filhos, à sua mulher não faltará nada em casa, todos os meses haverá um rancho substancial para si e aqui o camarada Botelho Moniz vai-se encarregar disso. Ele tem essas instruções. O que é que você acha? Pense bem, ainda tem alguns dias’. Respondi: ‘Eu não penso nada uns dias, digo-lhe já o que é que eu penso. Digo que não. Digo que eu sou jornalista desde 1970 e vou continuar a ser jornalista. É esta a minha palavra, é esta a minha resposta’. E ele: ‘Mas, está bem, pronto, pense nisso. Fica assim. Você pense!’. E o pensar transformou-se em cinco anos sem trabalhar” (págs. 98 e 99).
Em 2002, entrevistei Armando Guebuza, poucos meses depois de ser eleito, numa sessão do Comité Central da Frelimo daquele ano, secretário-geral do partido e candidato presidencial nas eleições de 2004, tendo-o questionado sobre o que o teria levado a aplicar a “lei da secagem” – tomando de empréstimo a expressão de Marcolino Moco – ao jornalista e escritor Heliodoro Baptista, ao que respondeu: “Não me recordo”.
Muitos estarão recordados do NS comentador político, sobretudo na TVM, na segunda metade da déceda 90 do século XX, quando acabava de regressar a Moçambique – depois de se licenciar em Ciências de Comunicação, em Portugal – a convite do finado Mário Dimande, antigo Presidente do Conselho de Administração (PCA) dos Caminhos de Ferro de Moçambique (CFM), para assumir as funções de assessor de comunicação do Conselho de Administração daquela empresa pública. Era ele um comentador político muito descomunal para aquele tempo!
Recordo-me tê-lo visto adentrar-se na minha casa da Rua 9 do bairro de Mahlazine, através da TV, para comentar os “debates” daquele dia na Assembleia da República. Sem papas na língua, disse, e cito de memória: “Muito vergonhoso ter um Parlamento assim. Isto não pode ser. Somos merecedores de respeito enquanto contribuintes. A continuar assim, era melhor que aquilo se chamasse escolinha do barulho e não Assembleia da República”. Com essas declarações contundentes, parece ter terminado o percurso de NS enquanto comentador político!
Em 2001, NS é nomeado administrador executivo dos CFM, no consulado do então PCA Rui Fonseca, ao que me foi dito por um quadro sénior daquela empresa “no intuito de conduzir o complexo processo de racionalização da força de trabalho, o que implicava a redução do efectivo de 20 mil para cerca de três mil trabalhadores”.
Ainda nos CFM, é-lhe atribuído o mérito de ter estimulado a promoção de jovens técnicos e a descoberta de talentos. Através duma iniciativa por si desenhada, denominada “Conversas às Sextas”, os técnicos da empresa tinham a oportunidade de conversar informalmente com o PCA, de onde se revelaram colaboradores que representavam ‘mais-valia’, por via do que se tornaram depois, e muitos deles continuam hoje, gestores de topo dos CFM e de empresas concessionárias do sector ferro-portuário de Moçambique.
Bastante rigoroso, conforme testemunhei quando com ele colaborei, ainda que episodicamente, em certos projectos editoriais, bem assim quando com ele interagia habitualmente nos primórdios do semanário ZAMBEZE, de que eu era chefe de redacção e ele colunista, NS é, em bom rigor, um profissional amiúde incompreendido por muitos, provavelmente pela sua conhecida vaidade e sentido crítico.
Actualmente com mais de 10 livros publicados e ainda ligado aos CFM, de cujo museu é curador, além de ser editor da Marimbique, Nelson Saúte, um escrevinhador de memórias tanto em diversas disciplinas literárias como em prosas tributárias que tem regularmente produzido e publicado no jornal digital Carta de Moçambique, é hoje, 26 de Fevereiro, aniversariante, completando 56 anos.
Temos o privilégio de estar aqui, hoje, Dia do Advogado Moçambicano, a dar o nosso ponto de vista, a apresentar a nossa doxa – qual fonte por excelência do erro, como arguiam certos círculos da Grécia Antiga! – sobre O Papel da Ordem dos Advogados de Moçambique (OAM) no Processo de Elaboração Legislativa, num momento particularmente preocupante da nossa democracia multipartidária, marcado pela abundância de soluções e técnicas legislativas que significam tudo menos o progresso nesse tema.
Exemplos dessa ausência de progresso, cujo apanágio nos parece ser, perdoe-se-nos o eventual exagero, integram a panóplia de retrocesso legislativo que se assaca de instrumentos como o Código Comercial, que é uma excelente simbiose de conceitos e institutos indevidamente representados e de exacerbado recurso ao gerúndio, qual brasileirismo, e o Código de Processo Penal, por via do qual se engendrou um dos maiores ataques à cartilha e disciplina de direitos fundamentais de que se tem memória no período pós-independência, no que pontificam atropelos como o da ilimitação ou quase-eternização da prisão preventiva, como se esta já tivesse deixado de ser uma medida de coacção constitucionalmente tutelada.
Por falar em Dia de Advogado Moçambicano, talvez seja momento de começarmos a pensar na ampliação da celebração do que funda uma efeméride destas para algo maior, que a todos pudesse formalmente beneficiar, que seria a consignação do 14 de Setembro como Dia do Estado de Direito Democrático, conhecidas que são, da nossa história, as lutas de certos e destacados causídicos em prol da dignidade da pessoa humana, no que destacaria, no período anterior à Independência Nacional, nomes como os de Almeida Santos e de Rui Baltazar, e, na Primeira República (de 1975 a 1990), nomes como os de Domingos Arouca, Máximo Dias e Simeão Cuamba, ainda que, muitas vezes, virtualmente, naturalmente não por causa de uma pandemia análoga à COVID-19, mas por conta de algo talvez mais profundo: desrespeito pela dignidade da pessoa humana.
Claro que não ignoramos que estejamos, ainda, numa situação de devir, ou seja, num quadro de garantia meramente formal deste importantíssimo princípio, o do Estado de Direito Democrático, conforme, aliás, defendeu em 2015 o Dr. Rui Baltazar, em palestra que proferiu por ocasião dos 10 anos do jornal O País.
Com efeito, referiu nessa ocasião o Dr. Rui Baltazar que Moçambique ainda está muito longe de concretizar um verdadeiro Estado de Direito Democrático, embora esteja a experimentar, há já mais de duas décadas, um sistema político multipartidário, marcado pela realização de eleições regulares.
Feito este longo intróito, no qual a expressão-chave é Estado de Direito Democrático, vale a pena iniciar o cerne da abordagem a que fomos chamados, nomeadamente com algumas notas sobre as atribuições, quais funções ou, mesmo, responsabilidades, da OAM.
A OAM e o Processo Legislativo Doméstico
Se quiséssemos ser formalistas, nos limitaríamos a dizer, quanto ao Papel da Ordem de Advogados no Processo Legislativo, que o mesmo se resume na efectivação da norma contida na alínea c) do número 4 do Estatuto da OAM, aprovado pela Lei número 28/2009, de 29 de Setembro:
“[São atribuições da OAM] Contribuir para o desenvolvimento da cultura jurídica, para o conhecimento e aperfeiçoamento do Direito, devendo pronunciar-se sobre os projectos de diplomas legais que interessam ao exercício da advocacia, ao foro judicial e à investigação criminal”.
Essa putativa perspectiva formalista, ou minimalista, se quisermos, seria problemática, se se considerar que dela se extrai um “erro indesculpável” do legislador ordinário, que não incluiu na há pouco citada norma a obrigatoriedade de a OAM se pronunciar sobre empreitadas estruturantes como a revisão constitucional.
Até porque a mesma norma nos levaria, quando confrontada com certos processos legislativos recentes, a consubstanciar, com toda a facilidade, o desrespeito das regras de jogo por parte do legislador, conforme o espelha a última revisão do Código de Processo Penal. Para que não haja dúvidas, muito menos equívocos, partilhamos que, em nosso entendimento, um pretenso envolvimento da OAM, dando-lhe três dias ou algo muito próximo para se pronunciar, não passa de uma infeliz tentativa de legitimação de um desiderato já decidido.
Aliás, na já citada palestra proferida em 2015 pelo Dr. Rui Baltazar, ele disse algo ao mesmo tempo profundo e vergonhoso para todos nós como país: Que a Assembleia da República não tem como ser procedentemente chamada de ‘Casa da Democracia”, uma vez que, não poucas vezes, funciona como uma espécie de ‘cartório notarial’, chancelando, em forma de lei, decisões já tomadas noutras entidades, no que se incluem, acrescento eu, as de direito privado.
Sobre O Papel da Ordem de Advogados de Moçambique no Processo Legislativo, julgo que o essencial dessa função se integra em algo que é género, algo macro, de que o demais será espécie, algo micro: a defesa do Estado de Direito Democrático, princípio constitucional consignado no artigo 3 da Constituição da República de Moçambique (CRM), extraindo-se as responsabilidades da OAM nesse domínio a partir da conjugação dos artigos 73, 78 e 56, também da CRM, o que se acha de certa forma densificado na norma da alíena a) do artigo 4 do Estatuto da OAM.
Na verdade, o artigo 73 da CRM se ocupa do princípio de permanente participação do cidadão na vida da Nação, no que se incluem os advogados e advogados estagiários, individualmente vistos. E a interacção sistemática com os seus representantes na AR, sobretudo em sede da discussão de projectos ou propostas de lei, é uma das formas de materialização desse princípio fundamental.
Já quanto às responsabilidades da OAM, o artigo 78 da CRM, que a seguir o transcrevemos ipsis verbis, nos parece por demais claro:
“Artigo 78
(Organizações sociais)
Talvez valha a pena recordar que, em rigor, a expressão ‘Estado de Direito Democrático’ é considerada como sinónima à denominação ‘Estado Social de Direito’, tendo a preferência pela primeira, conforme expende Jorge Miranda (2017:75), que ver com as conotações que a segunda teve antes do 25 de Abril de 1974 em Portugal, efeméride que marcou o fim da ditadura e acelerou o processo da independência do nosso país do jugo colonial português.
No princípio do Estado de Direito Democrático, subjaz, pois, a confluência de duas ordens de princípios, nomeadamente de natureza substantiva – o da soberania do povo (número 1 do artigo 2 da CRM) e o dos direitos fundamentais (artigos 42 e 43 da CRM) – e de natureza adjectiva, como sejam o da constitucionalidade (número 4 do artigo 2 da CRM) e o da legalidade (número 3 do artigo 2 da CRM).
Quanto à centralidade e premência do princípio do Estado de Direito Democrático ou do Estado Social do Direito na compreensão do Papel da Ordem dos Advogados de Moçambique no Processo Legislativo, o legislador constituinte foi feliz ao inserir, no prêambulo da CRM de 2004, que é a que está em vigor, o seguinte postulado:
“A Constituição de 1990 introduziu o Estado de Direito Democrático, alicerçado na separação e interdependência dos poderes e no pluralismo, lançando os parâmetros estruturais da modernização, contribuindo de forma decisiva para a instauração de um clima democrático que levou o país à realização das primeiras eleições multipartidárias”.
Julgamos não restarem dúvidas quanto ao crucial papel que a OAM tem na monitoria do efectivo funcionamento da democracia moçambicana, ao mesmo tempo que deve assumir inequivocamente o seu papel de contrapoder, sem necessidade de esperar, por exemplo, pela aprovação da Lei de Participação Pública no Processo Legislativo, o que já regista mais de 10 anos de atraso.
Em Jeito de Conclusão
Sendo a contínua participação do cidadão na vida da Nação um direito fundamental, tal como consignado na parte final do artigo 73 da CRM, e sendo os direitos e liberdades fundamentais directamente aplicáveis, no que se acham vinculadas as entidades públicas e privadas (número 1 do artigo 56 da CRM), a OAM, qual organização social com afinidades e interesses próprios, de resto integrada no artigo 78 da CRM, deve socorrer-se de todos os mecanismos legais para efeitos de maximização do seu contributo na consolidação do ainda incipiente Estado de Direito Democrático em Moçambique, incluindo a participação efectiva no processo legislativo. Nesse processo, ou nessa luta democrática, a OAM deve ter presente que raras vezes os direitos são dados de bandeja em contextos similares ao de Moçambique, classificados pela literatura de Ciência Política como sendo um ‘Estado Autoritário’.
Por último, mas nem por isso menos, sugerimos que a OAM proponha a aprovação duma Lei do Procedimento Legislativo, uma vez que tanto o Poder Executivo como o Poder Judiciário têm o que designaria por “leis de processo” – Lei 14/2011, de 10 de Agosto, para o Poder Executivo, e vários códicos de processo, para o Poder Judicial –, mas o Poder Legislativo, a Assembleia da República (AR), não possui uma lei que regulamenta objectivamente os procedimentos da sua actividade e relacionamento com o cidadão e outras entidades.
(Ericino de Salema é jornalista e advogado. Texto apresentado ontem num evento da Ordem dos Advogados de Moçambique, mais concretamente num painel denominado “O Papel da Ordem dos Advogados no Processo Legislativo”. Título da responsabilidade da Carta)
O comandante-geral da Polícia da República de Moçambique (PRM), Bernardino Rafael, aprovou e fez “publicar”, há dias, uma Instrução (Instrução número 20/CGPRM/GCG/100/2022), através da qual ressalta a sua preocupação com a situação de (in)segurança rodoviária no país, ao mesmo tempo que suspende a proibição de uso de alcolímetro na via pública.
Entretanto, ainda que o comandante-geral esteja, até prova em contrário, a agir na melhor das intenções, há fortes indícios de a referida Instrução contrair algumas disposições legais em vigor em Moçambique, além da própria ratio legis nos termos da qual o Governo aprovou vários diplomas legais sobre o combate à pandemia da COVID-19, incluindo Decreto número 14/2022, de 20 de Abril, através do qual se declara a Situação de Saúde Pública.
Na verdade, do ponto de vista constitucional é aqui chamado o dever de protecção da saúde pública, no quadro do qual se impõe, em primeira linha, às instituições públicas, como é o caso da PRM, garantir a projecção do direito à saude, por força do número 1 do artigo 56 da Constituição da República de Moçambique (CRM).
E quanto, em particular, ao decreto acima citado, há que ter presente que o mesmo define (número 2 do artigo 1) como objectivo regular o funcionamento "excepcional" da sociedade, visando conter a propagação da COVID-19.
Considerando que a Instrução em causa estabelece orientações que podem pôr em causa medidas aprovadas no contexto da COVID-19, a mesma devia, antes, ter sido submetida a parecer prévio da Comissão Científica de Aconselhamento do Presidente da República (PR) em questões atinentes à COVID-19, por via, naturalmente, de canais e procedimentos próprios.
A referida instrução está, pois, a pôr em risco a saúde pública por causa do comportamento irresponsável duma minoria de automobilistas, alguns deles aparentemente muito bem identificados.
Até porque urge questionar: quem garante que o risco de contaminação é hoje menor?
De resto, e contrariando o espírito do decreto que declara a Situação de Saúde Pública, a Instrução do comandante-geral estará, achamos nós, inquinada de um vício de ilegalidade.
É que se se normaliza a opção por vias ilegais na promoção da segurança rodoviária, mais dia, menos dia veremos a PRM a “normalizar” outras vias igualmente ilegais de combate, por exemplo, ao crime, incluindo as que ignoram em absoluto princípios constitucionais como presunção de inocência e devido processo legal!
Integrei, em Janeiro de 2004, na qualidade de jornalista, a Comitiva Presidencial que participou, na cidade de Sirte, na Líbia, duma cimeira da União Africana (UA), na qual a presidência rotativa daquela organização continental passou de Joaquim Chissano para Muammar Gaddafi.
Durante a minha estadia em Sirte, pude traçar uma “agenda paralela” e conversar com cidadãos líbios, em particular jovens. Alguns casados de fresco, e que, por via disso, acabavam de receber, do Governo, casas devidamente recheadas, depois do acondicionamento de emprego e por aí além.
Todos os líbios com quem conversei por aqueles dias (uns 20, incluindo motoristas das viaturas protocolares que tinham sido colocadas à disposição dos integrantes da comitiva e alguns trabalhadores do hotel onde me hospedei) não esconderam estar de certa forma felizes com o “estado social” que tinham, mas…nem tudo era um mar de rosas!
Contaram ser inconcebível que todos os direitos civis e políticos de que eram supostos usufruir, enquanto humanos, estivessem sob tutela e vontade dum único homem, no caso Muammar Gaddafi. “Não podemos livremente dizer o que pensamos”; “não podemos nos manifestar livremente”; “nem sempre temos a sorte de escolher a profissão que queremos”; “nem podemos beber legalmente um copo”, etc., etc.
Por falar em copos, os requintados banquetes que eram servidos aos visitantes, naqueles hotéis ‘cinco estrelas’ em que tínhamos sido hospedados, ‘perdiam graça’ porque, mesmo depois do trabalho, ninguém podia consumir bebidas alcoólicas. Nem uma taça de vinho, meu Deus!!!
E, em 2011, o povo líbio disse “enough is enough”, não sendo os detalhes do sucedido relevantes para os propósitos destas breves notas…
Vem este longo intróito a propósito do tema manifestações pacíficas em Moçambique. Embora estejam expressamente consignadas na Constituição da República de Moçambique (CRM) e em lei ordinária (Lei das Manifestações), não carecendo, por integrarem o escopo da dignidade da pessoa humana, de autorização, mas de mera informação às relevantes autoridades, em Moçambique as autoridades públicas (à excepção dos municípios onde o partido Frelimo é oposição) se não coíbem de “rasgar” a CRM sempre que cidadãos devidamente identificados e organizados pretendam organizar manifestações pacíficas.
Toda vez que cidadãos organizados e devidamente identificados pretendam, no quadro da CRM e da lei, se expressar democraticamente por via de manifestações pacíficas, vê-se um inusitado contingente policial, às vezes até militar, a ser accionado para obstar que os cidadãos usufruam dum direito fundamental que mereceu, em sede da aprovação da CRM e da Lei das Manifestações, “apoio incondicional” de todas as forças políticas representadas na Assembleia da República.
Sendo o ser humano “escravo da liberdade”, mesmo onde o Estado o bafeja de tudo mais alguma coisa, menos esse valor essencialíssimo, ele, o ser humano, acaba, ou acabará, tarde ou cedo, por dizer basta, com o que jamais será a construção do ainda incipiente Estado de Direito Democrático a ganhar.
Por incrível que pareça, até manifestações pacíficas contra fenómenos como raptos são sistemática e ostensivamente obstaculizadas por quem deveria, por dever de ofício, apoiar esse tipo de iniciativa, com todo amparo legal.
Se até quem recebe “casa recheada” do seu pretenso “estado social” num certo momento diz basta, em nome da sua dignidade, não será, por maioria de razão, quem se esbarra com todo o tipo de dificuldades, inclusive para ter acesso a um terreno “30 por 15” não infraestruturado, a resignar eternamente da luta pelos seus direitos.
Com a óbvia racionalidade que cada um tem pela sua defesa, pode ser que, com as abusivas e ilegais proibições ao exercício do direito fundamental à manifestação pacífica, os que, mesmo assim, se recusam a resignar, recorram a “vias ocultas”, quais contas falsas ou disfarçadas em redes sociais, para efeitos de viabilização desse direito fundamental.
Com o que se verificou na última quinta-feira, sobretudo nas cidades de Maputo e Matola, sem cartas informando as autoridades públicas relevantes da realização de manifestações pacíficas e, como seria de supor numa situação tendencialmente de “Estado Policial”, sem rostos conhecidos, perde-se a oportunidade de coordenar, com eventuais promotores, rotas e ‘regras de jogo’, nos termos da CRM e da lei.
E, sem surpresa, numa situação de exercício à força de um direito constitucionalmente consagrado, cujo gozo conforme as Leis da República se recusa ostensiva e abusivamente, a passividade acabou andando distante do que se viu semana passada.
E depois?
Acho terem ficado lições bem claras, sendo mais do que urgente que se não insista no impedimento abusivo e a todos os títulos ilegal de manifestações pacíficas, porque algo normal numa democracia digna desse nome. Anormal seria um país que se diz democrático não conviver com esse tipo de expressão de ideias, de posições e de sentimentos.
Não parece ser necessário recorrer aos que se auguram de ter o “dom da profecia” para se prever um quadro em que a proibição de manifestações pacíficas possa ter como resposta “manifestações ocultas”, nas quais a economia perde por demais, ainda que seja por conta do mero “efeito psicológico” de situações tais.
E os que impedem esse direito fundamental pregarão no deserto o apelo à boa conduta!
Claro que será sempre possível identificar um e outro “gato pingado” como tendo sido o “criador” da primeira mensagem sobre “greve geral” posta a circular, e talvez até sancioná-lo, mas a sustentabilidade desse tipo de arranjo estará, à partida, condenada ao fracasso.
É isto que julgo constituir prováveis lições da “greve oculta” de 14 de Julho, uma data muito curiosa: simboliza a determinação do povo francês nos chamados anos da revolução, no que pontificam valores como liberdade, igualdade e fraternidade.