Director: Marcelo Mosse

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Os textos que irá ler aqui a partir de hoje, não pretendem ser um relato de factos com rigor acadêmico, mas antes o relato de uma outra verdade. A verdade da catálise efectuada por mim pelas terras de solo encarnado pelas montanhas e embondeiros de Montepuez. Situando-se na área nebulosa entre a experiência de trabalho de campo académico e relato sobre os estranhamentos e afectos de encontro com uma nova realidade, o texto explora toda a pluralidade possível dos métodos de narração e depoimento. É um exercício sobre a transcrição da oralidade.

 

O leitor encontrará relatos das vidas e das mortes dos camponeses e garimpeiros de Namanhumbir, da luta pela sobrevivência das mulheres dona de casa e daquelas que não cavando nas minas, ganham a vida pelo dinheiro dos rubis de Montepuez.

 

Encostado sobre a palhota de paredes de barro, que me foi dada como meu aconchego durante as semanas de trabalho de campo, ouço o barulho das omnipresentes motorizadas empilhadas pelos corpos de homens que com picaretas e lanternas enormes sobre a testa e longos casacos se dirigem para o garimpo.

 

Do outro lado da rua, consigo ver diate do portão de uma enorme vedação de rede de arrames, uma fila de homens com sacolas plásticas outros com mochilas sobre as costas.

 

“Esses aqui são vientes bons. Não são como esses outros que vem apenas para nos roubar. Esses estão a vir aqui, por causa do rubi e vão modernizar nossa terra. Por causa desse rubi, vamos ter luzes e escolas para os nossos filhos. Com esse rubi, vamos ter desenvolvimento aqui”!

 

Disse-me com voz firme Sheik Amisse, um velho muito influente na comunidade, apontando com a sua bengala para a vedação de arrame, onde estão esticadas dezenas de tendas no acampamento, que albergam os técnicos da empresa Montepuez Ruby Mining. As palavras de Sheikh Amisse, fazem -me pensar repetidamente, que parece que nada acontecia nesta cidade, até acontecer esta chegada dos “vientes” dos rubis”. Aprendi aqui, um novo código sobre esses estranhamentos e afectos de encontro com uma nova realidade: se existem vientes bons, é porque de certeza há vientes maus. O tempo de relacionamento em Montepuez me fez observar tais evidências, e falarei delas no momento próprio.

 

A questão é que a percepção de Sheikh Amisse sobre os vientes da empresa mineradora, não é regra de entendimento geral na comunidade. O que me importa aqui é contar as transformações sócio- culturais decorrentes das incidências de chegadas massivas de vientes e várias empresas, determinadas pela descoberta de enormes jazidas de rubis em Namanhumbir. Os efeitos imediatos dessas incidências são de natureza desestruturadoras-restruturadoras, prevendo-se a prazo, uma institucionalização de novos modos de integração social na comunidade.

 

A partir dessas histórias de encontros, lutas, estranhamentos e casamentos, resistências e adaptações, fiquei a pensar, em como conferir a esse drama, uma análise digna que me permitisse compreender esta confluência de sujeitos, coisas, línguas, corpos e chegada de máquinas em Montepuez. Conferir uma análise digna, significa em primeiro lugar, pensar sobre a questão da mobilidade e suas múltplas dimensões como elemento de construção do outro entre os nativos de Montepuez, que não se centrasse apenas como as várias experiências místicas vividas pelos pesquisadores no campo. Em segundo lugar, significa, pensar sobre as várias questões que se podem colocar: quem são os vientes que chegam? Como encontram os nativos e como se relacionam com eles? O que trazem das suas origens? Que problemas trazem os vientes para os nativos? Quais as soluções, os nativos encontram dos vientes? Como os nativos, resistem contra esta pressão de entrada massiva de vientes?

 

São essas questões que me levarão a contar as histórias com que Montepuez marcou o narrador. Uns dirão que é ficção e não estarão sempre certos. Outros dirão que é autobiografia e serão frequentemente enganados. (X)

terça-feira, 12 fevereiro 2019 08:45

Zandamela: a alma esvaíu-se

À memória de Jaimito Malhathini

 

Jaimito Malhathini, o célebre guitarrista moçambicano varado pela morte em Maputo onde deambulava como um vadio nos últimos dias da sua vida, é um dos mais importantes e belos átomos  de Zandamela, uma localidade do distrito de Zavala na província de Inhambane. Nasceu ali. Obviamente! Participou e deu tremendo vapor ao vertiginoso tema Wa lhanya de Salimo Mahamed, quando este ainda  chamava-se  Simião Mazuze. Mas não foi só essa passagem. Jaimito perfumou a um nível elevado o projecto Amanhecer, corporizado por uma panóplia de músicos de grande performance, nos finais da década de setenta. E depois disso o chopi achou que devia subir outra montanha. Subiu, ou tentou subir, tendo-se descoberto, porém, à posterior, que afinal aquele empreendimento era uma falésia. Escorregou até ao ponto onde a morte, cansada de esperar, acolheu-o para sempre.

 

Zandamela agora é uma mulher esquálida. Sáfara. Aqueles que conhecem  bem aquele vilarejo desde os tempos idos, ao passarem por ali actualmente, não deixam de notar, certamente, a ausência das colossais árvores (grevilhas) que nos chamavam à atenção pelo seu porte e alinhamento. Abateram-nas deixando o lugar nu. Completamente nu. Quer dizer, ao penetrarmos, escorrendo pela via nevráliga e inevitável, a sensação que nos fica é de que não passamos de lugar nenhum. Se este local fosse efectivamente uma mulher, diriamos que interiorizamos um corpo frio por demais.  Insípido. E por consequência não sentimos nada. Os seios e as coxas e a parte mais macia de Zandamela eram as grevilhas. Agora decepadas. Deixando todo aquele chão dos chopi sem essência.

 

Depois do alívio do espírito ao assitirmos ao orgasmo interminável que o rio Inharrime atinge no oceano Índico, com testemunho das espectaculares dunas ao longe, e o esplendor das Lagoas de Quissico, no longo percurso Inhambane-Maputo, o que nos restava eram as grevílias de Zandamela. Plantadas num pedaço de cerca de cem metros, formando uma espécie de túnel verde, onde os condutores redobravam a atenção. Era refrescante passar por ali. Ninguém falava durante aquele pequeno troço. As árvores é que falavam.

 

Hoje tudo aquilo parece um deserto. Os pequenos deuses daquele lugar vacilaram. Emigraram. Deixando a assombração daquilo que foi, nesse tempo derrubado, a loja provavelmente dos Dalsucos. Não sei bem. Sobrou ainda a notável casa do temido régulo Malhathini, plantada num pomar que teima em se manter para lembrar a história de um homem que só sossobrava perante outro homem chamado Mangujo. Parecia que tinham dito ao Mangujo o seguinte: se quiseres enfrentar um monstro, tens que ser um monstro. E este chopi irreverente fez isso. Tendo ficado, por conseguinte, nos compêndios de Zandamela como o único que mostrava o peito ao régulo.

 

Que pena! Ou seja, para além dessas lembranças , Zandamela já não tem nada. Já não tem as grevílias. E a pessoa que mandou deitar abaixo aquelas históricas árvores, devia saber que matou a alma dos chopes dali.

terça-feira, 12 fevereiro 2019 06:55

Exaltemos a viagem do Chang

Ahhh, porque Emerson esteve de férias no Brasil e visitou lugares paradisíacos e fantásticos em Angra dos Reis e Arraial do Cabo. Ahhh, porque Samito foi intimado pelo partido e há pretensão de ser expulso da Frelimo. Ahhh, porque o Benfica ganhou dez à zero, mas não viu "gueme" na "Txhampion". Ahhh, porque membros da Renamo, em Sofala, contestam as recentes nomeações de Ossufo Momade. Ahhh, porque Pacheco já disse que Diamantino Miranda não pode trabalhar em Moçambique. Ahhh, porque etecetera, etecetera. 



Exaltemos a viagem do Chang, irmãos. Exaltemos a viagem do Chang e lutemos pela sua viagem. 



Não percamos o foco, irmãos. Samito e Momade que resolvam as suas sinucas lá nos seus partidos. O Emerson que vá à Disney se quiser. O mister Diamantino que vá treinar a décima-quinta divisão de honra de sei-lá-onde e que ganhe prémios. O Benfica que ganhe mais jogos por dois dígitos à zero e que venda os seus jogadores ao Real Madrid. Mas, faxavor, exaltemos a viagem do Chang às Américas. 



Enquanto estamos aqui entretidos, o gatuno vai saindo do xilindró de mansinho e, quando acordarmos, o gajo já estará numa wella em Tchumeni-Dois a tomar chá de moringa com limão em jejum, nas manhãs, enquanto se prepara para ir à reunião do Comité Central, ao mesmo tempo que espera ser nomeado assessor de um ministro qualquer. 



Coisa por coisa. Assunto por assunto. Foco. Estejamos atentos às novas manobras, dia 15 está perto. Agora dizem que não precisam da casa da fronteira, mas pode viver em Joannesburg na casa de uns "bradas" e daqui a nada vão dizer que pode viver na dependência tipo-três de Zuma. Foco, pessoal. Se aquele gatuno for resgatado, perdemos a pescaria toda. Não nos esqueçamos que na sua tribo aquele gatuno é afilhado do rei. É menino. 




Esse apetite de pagar caução é "quali"!? Esse interesse de pagar muito dinheiro para sair sabendo que uns dias depois será exportado, hummm... eu não entendo. 



Estejamos atentos. Exaltemos a viagem do nosso ladrão. Eu exalto a viagem do Chang. Eu luto pela viagem do Chang. Você também devia fazer o mesmo. É o mesmo Chang. O Samito tem a mãe dele. O Benfica tem os seus adeptos. A Renamo tem os seus membros. Nós não temos ninguém, nem na nossa própria justiça podemos confiar. Se não ficarmos atentos, vão nos dar "djoló". 



- Co'licença!

A migração é o deslocamento de indivíduos de um lugar para o outro. Esse deslocamento começou há 120.000 anos, desde que o ser humano se conhece como “Homo Sapiens”, com origem em África, mais precisamente em Moçambique na Província de Tete, distrito de Mutarara, de acordo com o canal televisivo norte-americano National Geographic. De Tete, o “Sapiens” deslocou-se para China, Eurásia, Mediterrâneo, Austrália e posteriormente para as Américas (Wikipédia). Antes que se prove o contrário, a Humanidade teve origem em África!

 

O Daily Telegraph em 2015 publicou um estudo sobre “47 Human Teeth”, onde se evidencia uma dentadura africana nas Caves de Calcário de Daoxian, na província de Hunan, China, há 100.000 anos.  Da Universidade de Oxford UK, Michael Petraglia afirma que as primeiras evidências de seres humanos na Europa datam de há 45.000 anos, resultante da migração da Eurásia em particular das planícies Persas (actual Irão). Desde há 120.000 anos que os seres humanos circulavam (migravam) livremente. 

 

Durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), os países europeus restringiram a circulação de cidadãos exigindo passaportes que viriam a ser homologados pela Liga das Nações - Conferência de Paris em 1920. A exigência de passaportes e vistos de entrada foi mutuamente imposta por razões económicas. A Europa, devastada e empobrecida pelas guerras (Guerra dos 30 anos, Guerra dos 7 anos e WW1), estabeleceu regras defensivas a fim de se proteger. A história dita que os povos se respeitavam, cooperaram durante milhares de anos antes dos europeus se atreverem a descer o Oceano Atlântico a partir do século XV.

 

Os europeus, ávidos de acesso ao desenvolvimento, modernismo, minerais, matérias-primas e acessórios, e incapazes de furar a passagem pelo mediterrâneo, sob controlo dos árabes, tiveram que descer o Oceano Atlântico e subir o Oceano Índico. Nesta aventura foram atracando por diferentes portos africanos. Invejaram a riqueza destes e regressaram hipocritamente abusando a hospitalidade destes povos, ocupando estes territórios a força - apelidando a violência de epopeia, ficando notoriamente designada de “Era dos Descobrimentos”.

 

O caro leitor não tem uma ideia da catástrofe que esses “descobrimentos” representaram para os povos africanos, sul-americanos e asiáticos - empobrecer, empobrecer e empobrecer. Pior ainda foi a humilhação a que os povos acima referidos foram alvos e continuam a ser até a data, por responsabilidade própria (nossa).

 

A nossa FALTA de DIGNIDADE faz com que não acreditemos que somos iguais, que somos capazes e que também podemos conseguir. Continuamos a encorajar racistas, de que os africanos são uma espécie inferior do ser humano, como afirmaram nos anos 1600 os “políticos e cientistas” britânicos e alemães quando levaram africanos para os seus laboratórios, testando-os até a morte e, mesmo depois da morte, escrevendo inúmeras teses incivilizadas e ignorantes, que “confirmavam” a nossa irracionalidade.

 

Se o leitor acha que o parágrafo anterior faz parte da história da ignorância engana-se. Recomendo que leia o texto escrito pela Sra. Luzia Moniz a 05/12/2018 - CPLP escolhe escravocrata para patrono de projecto juvenil -,  referindo-se ao poeta português Fernando Pessoa que, em 1917, escreveu e, passo a citar, “a escravatura é lógica e legítima; um zulu (sul-africano) ou um landim (moçambicano) não representa coisa alguma de útil neste mundo”.  Fernando Pessoa acrescenta: “Civilizá-lo, quer religiosamente, quer de outra forma qualquer, é querer-lhe dar aquilo que ele não pode ter”, fim de citação. Estas, entre muitas outras, são declarações incivilizadas e animalescas do considerado “grande poeta português”. 

 

Para os mais distraídos, dizer que nós os africanos de Língua Portuguesa (Moçambique incluso) somos maioria na CPLP presidida neste momento por Cabo Verde. No entanto, os nossos representantes aceitaram designar um símbolo racista (Fernando Pessoa) como patrono desse programa. É ridículo e ofensivo. A história serve de referência, para que não se repitam os erros do passado.  Continuamos a ver a justiça europeia pressionada pelos euro-judeus a perseguir actores do holocausto Nazi, cuja maioria tem quase 100 anos de idade, prendendo-os, julgando-os e condenando-os, porquê? Porque é preciso desresponsabilizar os europeus colectivamente, restabelecendo a sua DIGNIDADE, através de bodes expiatórios, rescrevendo a história.

 

Se visitarmos a História Universal, os actos incivilizados de violência bárbara foram no Continente Europeu  as Cruzadas desde ano o 1030 (durante 300 anos), a Inquisição no ano de 1500 (queimaram vivos milhares de cientistas, intelectuais, artistas, etc., por intolerância religiosa), o Calvinismo em 1552 (guerra intolerante Cristã), a Guerra dos 30 anos, de 1618 a 1648 (o primeiro conflito intercontinental religioso Cristão), WW1 e WW2 onde morreram 50 milhões de soldados e 100 milhões de cidadãos, vítimas de epidemias resultante dessas guerras. Milhões de europeus vítimas da pobreza emigraram para África. Hoje partilhamos e convivemos alegremente com os seus descendentes, nacionais de pleno direito sem discriminação. Uma vez mais os africanos demonstram a sua civilidade, justeza e hospitalidade. 

 

África tem aproximadamente 800 milhões de habitantes. A União Europeias tem aproximadamente 300 milhões de habitantes. África teve até a data 13 milhões de emigrantes para os países da OCDE equivale a 1,6% da população africana. A Europa teve até a data 40 milhões de emigrantes para os países da OCDE, equivalente a 13% da população europeísta. África nunca ocupou (até que se prove o contrário) territórios europeus, nunca escravizou europeus (com excepção dos povos da margem sul do Mediterrâneo ‘África Branca’ que escravizaram os Europeus da margem norte), nunca colonizou países e povos europeus, nunca explorou recursos europeus, nunca pilhou riqueza europeia, nunca criou golpes de Estado e guerras na Europa.

 

A pergunta que não se quer calar é a razão deste texto - porquê é que continuamos a ser tratados como vampiros quando emigramos para Europa? Existe reciprocidade? Existe civilidade? Existe memória histórica? Existe moral? A razão desta migração desenfreada para Europa deve-se fundamentalmente a:

 

  • Envelhecimento demográfico europeu, que torna a sua economia insustentável. Os europeus precisam dos nossos emigrantes para sua economia, porém querem escolher os que mais lhes convém, de preferência os africanos brancos;
  • Continuação do roubo dos recursos naturais (hidrocarbonetos e minerais) através da invasão militar e destruição dos respectivos países.

 

Comparemos o número de europeus em África versus africanos na Europa. Comparemos o rendimento (valor exportável) dos migrantes africanos na Europa, versus rendimento dos europeus em África. Para que serve a União Africana, CPLP, Commonwealth, ONU, etc.? Sabia que 10,8% dos emigrantes africanos para OCDE têm formação superior? Os europeus emigrados para OCDE com formação superior são 5,3%, e os americanos (USA) emigrados com formação superior são 0,5%.

 

Sabia por exemplo que a colonização portuguesa em África só foi possível graças aos indianos (Goa, Damão e Diu) porque o nível de iletrados do colono português era de 99%. Mas afinal quem precisa de quem? A questão que temos que avaliar é a quem beneficiam os investimentos estrangeiros em África e América do Sul? DIGNIDADE não tem preço! Será que alguém tem honra, quando para sustentar a sua família, comunidade e país, tem que mendigar? Se os nossos recursos naturais não servem para criar postos de trabalho directo e indirectamente aos cidadãos nacionais, então a quem servem?

 

Será que estamos a valorizar a nossa independência quando acreditamos que a solução vem dos “doadores”?  Nenhum país se desenvolve sem cobrar impostos, em particular aos investidores de recursos naturais. Responsabilidade social é da responsabilidade do Estado, não das empresas. O Governo tem que beneficiar sempre o seu Patrão. Nós também podemos. Precisamos de resgatar a nossa dignidade. Temos que ter coragem e determinação. Humildes para mobilizar os cidadãos para um bem comum. Exigir reciprocidade a quem quiser negociar connosco. Calculo que o apoio ao Orçamento Geral do Estado pelos “doadores” não representa o valor dos juros do dinheiro - africano e moçambicano - depositado nos bancos europeus e americanos.

 

Renegociar faz parte do jogo económico. As multinacionais e os seus países estão sempre a renegociar: o que era ontem já não é hoje. Trump cancelou unilateralmente 75% dos acordos internacionais dos USA, e está a renegociá-los. Quando nós queremos renegociar, dizem-nos que não somos sérios e nós acreditamos. Temos inúmeras soluções...

 

A luta continua!

domingo, 10 fevereiro 2019 18:07

Caçadora

Rui Lamarques

Rita senta-se ao meu lado - à minha esquerda, para ser mais preciso. Não, não é um sonho, apesar de ela o ser. Esse pedaço de mulher está instalado por trás de uma mesa redonda com três homens que lhe satisfazem as vontades e os caprichos. É mais magra e mais alta do que aparenta sentada. O cabelo postiço oriundo da Índia, esticado num cabeleireiro no coração do populoso Maxaquene, e o baton vermelho compõem o visual desta sobrevivente da noite maputense, que guarda uma distância sem ser distante e que é difícil de situar entre o reservado, o tímido ou o longínquo. Enverga um curtíssimo vestido azul, justo na cintura, a evidenciar-lhe as partes intimas, em relação às quais os homens de Maputo largam esposas e filhos.

 

"Eu nunca trabalhei", diz para os homens que lhe cercam feito hienas. Rita detesta a ideia de uma vida formatada, cheia de regras e de coletes de forças. "Na verdade até trabalho, mas para dar prazer aos que me permitem viver folgadamente. Não pertenço à homem algum. Eu sou da noite", afirma.

 

Não só é da noite como é uma mulher sobre quem se pode dizer, sem faltar à verdade, que ganha mais do que três deputados juntos. Conhece, como ninguém, a fraqueza masculina. "Todos querem uma mulher com cérebro para salvaguardar o futuro da descendência, mas nenhum abdica de uns seios hirtos e uma bunda empinada quando o sol se esconde. É aí que eu saio para ser 'caçada'", diz ironicamente porque, na verdade, quem caça é ela. 

domingo, 10 fevereiro 2019 16:21

A morte da senhora do Atum

Mitemane acordou debaixo das águas. O seu relevo formado por reentrâncias e saliências não conseguiu engolir a fúria da maré que não cessou de expelir jatos e mais jatos de corrente. “É o dilúvio”. Dizem os pecadores. “Talvez, Deus está zangado com tantos ladrões que existem nestas terras do régulo Napuco”, acrescenta um pescador cujo barco acaba de atracar ao porto de areia fina.

Tothoro, um empresário da vila sede de Memba, envia a Mitemane o seu camião para ajudar a evacuar as pessoas que ainda beijam a areia abaixo da linha do mar numa relação de amor forçada pela emergência que não os deu tempo de tatear outras longitudes enquanto a água não exibia sua musculatura.

 

Palhotas da aldeia meio engolidas, ventos em rajadas, aguaceiros e trovoadas, o corpo da polícia costeira, lacustre e fluvial desdobra-se para que os pescadores do último barco do dia se fizessem a terra. “Tenta anexar a corrente de reboque meu inspector”, grita em agonia um guarda da polícia que havia ajudado a combater “os que não comem”, grupo de jovens ladrões que chegou a protagonizar assaltos históricos na cidade de Nampula. “Vamos todos ajudar, façam força” apela o inspector.

 

A embarcação da polícia era pequena em comparação ao último barco, um Bénéteau francês, muito diferente dos barcos de madeira empurrados a vela e vento que pululam por Mitemane. A embarcação tinha o seu título de propriedade registado em nome de uma grande empresa chamada Atusag, S.A, acrónimo de Atum Sagrado, Sociedade Anónima, uma firma cujo sucesso não atravessou a fronteira da promessa.  

 

Apesar de ter sido criada para pescar atum, os moradores estavam habituados a perder de vista os barcos da Atusag, S.A, pois a periodicidade de movimentação daquelas embarcações pelas águas da Baia de Memba era uma vez em cada três meses. Os populares das aldeias circunvizinhas a baia não tinham memória de ter visto um destes barcos carregado de “Naphome”, o nome que a ciência dos costumes locais dá a este marisco.

 

O que se sabe é que a Dra Alimina Mussagy, uma contabilista que serve como cobradora de taxas da capitania da baia, era uma das gestoras da Atusag, SA, uma empresa cujos sucessos eram anunciados pela rádio comunitária, sem que as comunidades locais matassem curiosidade de ver com seus próprios olhos, um só carregamento.

 

Num desses dias, a Atusag, S.A doou algumas caixas de peixe ao centro de saúde de Baixo Pinda, uma unidade que inala o ar de uma aldeia dormente há poucas milhas de Mitemane. A partir dessa doação, a Dra Alimina passou a ostentar o título: “a senhora do atum”. 

 

“Engata mais um arrame e diz para o Sargento Amede ligar o motor do nosso barco, porque temos de fazer de tudo para tirar esse Bénéteau daqui”, ordena o inspector ao guarda à sua direita.

 

- Temos um homem a naufragar inpector!

 

- Sargento a nossa prioridade agora é resgatar aquele barco que está prestes a naufragar, depois vamos conferir as baixas

 

- Mas como podemos ter uma operação sem a certeza que o batalhão está em forma, meu inspector?

 

- Cala-te seu filho da Puta. És sargento e me deves obediência. Lembre-se que qualquer tentativa de indisciplina, serei implacável e te vou punir – diz o inspector aos berros já sedento de saliva que engula o desespero de apresentar um relatório que desagrade as ordens superiores.

 

Os pescadores de Mitemane haviam já subido as zonas altas de onde apreciavam o cenário nas calmas. E porque desocupação faz pensar para além do permitido, as questões não paravam de desembarcar em seus cérebros, sendo uma delas, as reais motivações dos agentes da polícia costeira, lacustre e fluvial a tudo fazer para salvar um barco já náufrago.

 

Muitos não conseguiam perceber, uma vez que sempre que se registam naufrágios, os próprios guardas desaconselham qualquer acção de salvamento, alegadamente com o intuito de salvaguardar que mais vidas não sejam perdidas. Mas desta vez assistiu-se o contrário, não se importaram em ver polícias perdendo uma ou duas das suas sete vidas.

 

- Já estamos a conseguir inspector – grita o sargento visivelmente emocionado ao sentir o Bénéteau da Atusag, SA em movimento.

 

- Oh rapazes! Vós sabeis que estamos preparados para estancar qualquer acção de tentativa de alteração da ordem e tranquilidade pública.

 

- Claro meu inspector, mas ainda não localizamos “os desconhecidos” – recorda o sargento Amede.

 

De repente um místico de silêncio e pavor abate aos agentes da polícia e aos populares de Mitemane que do alto alimentam a sua apetitosa curiosidade ao dirigirem os olhos a um corpo que flutua sobre as águas salgadas.

 

- Sargento será que estou a ver mal? É um corpo?

 

- Sim meu inspector. Que triste.

 

- Consegues reconhecer antes mesmo de chegar ao laboratório do SERNIC?*

 

- Sim. É a Dra Alimina Mussagy.

 

- A senhora do atum?

 

O inspector responde assertivamente e recomenda a sua equipa a continuar com a operação de busca e salvamento com a crença de que o Bénéteau francês pode ainda reservar outras pessoas que resistem a fúria das águas salgadas de Mitemane em levá-las para o outro lado do mar.

 

*SERNIC – acrónimo de Serviço Nacional de Investigação Criminal