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quarta-feira, 26 janeiro 2022 02:21

Dos modelos de participação de privados no sector de estradas em Moçambique, escreve Nelson Muendane*

 Para a concessão de vias de comunicação, o concurso público não é obrigatório, conforme o diploma legal que contém o regime especial. E o prazo de duração dos contratos de concessão pode ser estendido pelo Governo

 

Têm sido levantadas, nos últimos dias, discussões na esfera pública sobre os modelos de engajamento contratual que o Estado firma ou pode firmar com entidades privadas no contexto de infraestruturas públicas, com enfoque específico no sector de estradas, em geral, e na Estrada Circular de Maputo, em particular. Este artigo é uma contribuição nesse debate, adoptando uma perspectiva pedagógica e abordando espécies de contratos e as dimensões que cada uma dessas espécies pode tomar, nos termos, essencialmente, do quadro legal em vigor e das boas práticas internacionais nesse domínio.

 

Visando a concretização de abordagens pragmáticas, devidamente alinhadas com o estado-da-arte à escala universal, para a extracção de máximo proveito dos cerca de 30.000 quilómetros de estradas classificadas existentes no país, dos quais apenas 27 porcento são revestidos, foi aprovada, em 2008, a Política de Estradas, através de uma resolução do Conselho de Ministros.

 

Considerando o facto de a construção e manutenção de estradas demandar o investimento de elevados recursos financeiros, de que o país, estando ainda em vias de desenvolvimento, não dispõe, daí os captando, habitualmente, através de donativos e financiamentos externos, a Política de Estradas abre a possibilidade de participação do sector privado no processo, através das modalidades contratuais previstas na legislação em vigor, num quadro em que a sustentabilidade das infraestruturas é um objectivo cimeiro.

 

Se é verdade que, de ano para ano, vai crescendo, ainda que lentamente, muito por conta de limitações orçamentais, a rede de estradas em boas condições de transitabilidade – dados oficiais indicam que cerca de 70 porcento da rede global de estradas é transitável, dos quais perto de 80 porcento correspondem às estradas revestidas (20 porcento do total, conforme referido acima) –, mostra-se factual que isso é acompanhado pelo crescimento da necessidade de garantir a sua manutenção (de rotina e periódica) e reabilitação, bem assim a sua operacionalização em óptimas condições de funcionalidade, o que tem constituído um grande desafio para o Governo, sobretudo por conta das já citadas limitações orçamentais.

 

A participação de entes privados no sector de estradas pressupõe, ainda de acordo com a Política de Estradas, a aplicação do princípio de utilizador-pagador, como forma de os utentes das vias de comunicação contribuírem para a sustentabilidade dos investimentos que são feitos no sector, à medida do uso efectivo e sem oneração alguma para quem não usa estradas tais, nas quais a contribuição dos cidadãos-utentes é feita através do pagamento de taxas de portagem.

 

Vale recordar que, olhando para infraestruturas públicas em Moçambique de forma global, ressalta que o princípio de utilizador-pagador é, desde os primórdios, aplicado em tantos outros sectores, sendo de destacar o de abastecimento de água potável, cuja qualidade tem estado a melhorar continuamente, muito por conta da mitigação das limitações orçamentais do Estado, através da participação de privados.

 

Vários instrumentos jurídicos são aplicáveis à efectivação do engajamento contratual de privados no sector de estradas, o mais importante dos quais é o Regime de Concessão de Estradas e Pontes com Portagem, aprovado pelo Decreto número 31/96, de 16 de Julho, sendo nele que se acha integrado o regime geral para o efeito. Nisso, a Lei número 15/2011, de 10 de Agosto, que estabelece as normas orientadoras do processo de contratação, implementação e monitoria de empreendimentos de parcerias público-privadas, de projectos de grande dimensão e de concessões empresariais, vulgarmente denominada por Lei das Parcerias Público-Privadas (PPPs), é aplicável de forma subsidiária ou complementar.

 

Nos termos do Regime de Concessão de Estradas e Pontes com Portagem, estrada com portagem é definida como sendo a estrada ou rodovia, ou qualquer intersecção dela, da rede classificada do país, construída ou por construir e cuja utilização esteja sujeita ao pagamento de taxa de portagem. Ponte com portagem é definida como sendo a ponte construída ou por construir sujeita ao pagamento, igualmente, de taxa de portagem.

 

A Lei das PPPs prevê três tipos de modalidades de engajamento contratual de entidades privadas em empreendimentos públicos como estradas, nomeadamente contrato de concessão, contrato de cessão de exploração e contrato de gestão. Desenvolve-se, nas linhas que se seguem, a disciplina do contrato de concessão, com enfoque específico ao sector de estradas.

 

As especificidades da concessão de estradas

 

Estabelece o Regime de Concessão de Estradas e Pontes com Portagem que a construção, conservação e exploração de estrada classificada sujeita à portagem, por um lado, e a conservação e exploração de estrada classificada existente, igualmente sujeita à portagem, por outro lado, constituem objecto de concessão do Governo a favor de empresas colectivas constituídas nos termos e pela forma descrita neste instrumento legal, podendo as concessões, por determinação do ministro que superintende o sector de estradas – neste caso o Ministro das Obras Públicas, Habitação e Recursos Hídricos – compreender uma ou mais estradas classificadas.

 

As empresas concessionárias constituem-se, à luz do mesmo diploma legal, sob a forma de sociedade comercial anónima de responsabilidade limitada, com ou sem participação social do Estado, essa que, havendo, nunca pode ser inferior a 10 porcento do capital social. É neste domínio que se enquadra a empresa Rede Viária de Moçambique (REVIMO), SA, concessionária da Estrada Circular de Maputo, em cujo capital social o Estado participa através do Fundo de Estradas, que detém, neste momento, 70 porcento da mesma.

 

Foi atribuída ao Fundo de Estradas enquanto fundo público, através do Decreto número 61/2019, de 9 de Julho, que ajusta as suas atribuições, quadro de gestão, regime orçamental e tutelar e de organização e funcionamento, competência para criar entes de direito privado ou adquirir participações em entidades envolvidas na gestão de redes de estradas, vocação esta decorrente, de resto, do regime geral dos institutos e fundos públicos, conforme o Decreto número 41/2018, de 23 de Julho.

 

O Regime de Concessão de Estradas e Pontes com Portagem reza, quanto às modalidades de adjudicação da concessão, que a mesma pode abranger uma ou mais estradas (situação em que se acha a REVIMO, SA), podendo a adjudicação pelo Governo optar por uma das três modalidades: negociação directa pela qual o Governo procede à negociação autónoma, após a prospecção de potenciais concorrentes; concurso restrito através do qual a selecção dos concorrentes será precedida de um processo de pré-qualificação; e concurso público por meio de propostas em carta fechada.

 

De referir que o Regime de Concessão de Estradas e Pontes com Portagem, que é, quanto ao sector de estradas e pontes, lei especial – termos em que prevalece sobre os demais diplomas legais, que podem ser objecto de aplicação subsidiária – não estabelece qual dessas três modalidades de adjudicação da concessão prevalece sobre as demais, embora estabeleça princípios-regra para o efeito.

 

A mesma fonte documental refere, por exemplo, que duas dessas três modalidades de adjudicação – negociação directa e o concurso restrito – aplicam-se, em geral, aos casos que exijam a captação de elevados investimentos, o domínio de tecnologia desenvolvida ou a comparticipação de parceiros económicos de comprovada experiência empresarial, frisando que o Governo pode, se o achar mais ajustado, recorrer imediatamente ao concurso público.

 

No caso da Estrada Circular de Maputo, mostrava-se por demais estratégico a atribuição da concessão a uma entidade privada que pudesse não apenas se limitar àquela rodovia, como, também, investir noutras, ainda que o volume de tráfego não garanta retorno do investimento, mas estando nitidamente presente o interesse público.

 

Duração dos contratos é flexível

 

Os contratos de concessão têm, nos termos da Lei das PPPs, uma duração máxima de 30 anos, quando o empreendimento objecto de concessão seja construído de raíz; de 20 anos, quando o objecto seja um empreendimento existente, mas requerendo reabilitação ou expansão; ou de 10 anos, em se tratando de empreendimento em situação operacional.

 

Aliás, esses prazos podem ser expandidos, se, por adenda ao contrato, o Governo autorizar a sua extensão, nomeadamente pelo prazo necessário para a compensação de investimentos adicionais realizados por solicitação expressa da concessionária e acordados em adenda ao contrato aprovado pela entidade competente; de prática de preço ou de tarifa fixados pelo Governo, abaixo do preço de custo e da margem de rentabilidade acordada; ou de mitigação de efeitos de evento de força maior que se tenha verificado.

 

Sobre a duração dos contratos de concessão de estradas, fontes especializadas esclarecem que não faria sentido que o período máximo fosse, por exemplo, de 10 anos, havendo evidências técnico-científicas de que o período médio de maturação do investimento numa empreitada do género é de 8-10 anos, pelo que um contrato de concessão com essa duração não garantiria que a estrada fosse, findo o contrato, devolvida ao concedente, que é o Estado, representado pelo Governo, em boas condições, o que seria extremamente prejudicial ao interesse público. Por outro lado, está prevista, em sede do Contrato de Concessão da Estrada Circular de Maputo, uma reabilitação pouco antes da devolução da infraestrutura ao Estado, além de manutenções periódicas e de rotina.

 

A Estrada Circular de Maputo, que, à data da sua adjudicação à REVIMO, não possuía praças de portagem estabelecidas, daí não operacional enquanto estrada com portagem, achava-se integrada no âmbito de “empreendimento existente, mas requerendo reabilitação ou expansão”. O contrato de concessão entre o Governo e a REVIMO tem duração de 20 anos. 

 

Na verdade, além da construção do nó de Tchumene e do estabelecimento, como tal, das quatro praças de portagem (Costa do Sol, Zintava, Cumbeza e Matola Gare), num investimento, com fundos próprios, de pouco mais de um bilião de meticais, a REVIMO está, igualmente, a expandir a Estrada Circular de Maputo, por via da construção, igualmente com recurso a fundos próprios, de cerca de 12 quilómetros da estrada Vila de Marracuene-Macaneta.

 

Quando a REVIMO firmou o contrato de concessão com o Governo, a Estrada Circular de Maputo, enquanto rodovia sem portagens instaladas, embora previstas no seu projecto, estava já em funcionamento há três anos, o que demandou que, de imediato, a empresa lançasse mãos à manutenção da mesma.

 

No último semestre de 2021, a concessionária da Estrada Circular de Maputo investiu na montagem de iluminação em grande parte da rodovia, o que lhe confere maior segurança. No mesmo período, a REVIMO iniciou a construção dos 60 quilómetros da estrada Macia-Chókwè, uma rodovia estratégica para o país por conta, de entre outros, do potencial agrícola da Região Agrária de Chókwè e turístico (norte de  Gaza, com destaque para Massingir), embora não conferindo, à concessionária, garantias de recuperação do investimento através da cobrança de taxas de portagem.

 

O autor sabe de fontes do sector de estradas, que o Contrato de Concessão da ECM foi, antes de ser operacionalizado, submetido à apreciação da Procuradoria Geral da República e do Tribunal Administrativo, tal como preconizado por lei, tendo ambas as entidades confirmado que o mesmo se acha absolutamente em conformidade com a lei em vigor na República de Moçambique.

 

As sub-modalidades do contrato de concessão

 

O contrato de concessão, em linha com as modalidades legalmente permitidas em Moçambique, e conforme explanado no corpo principal deste artigo, pode, nos termos da Lei das Parcerias Público-Privadas (PPPs), assumir seis sub-modalidades distintas.

 

As referidas sub-modalidades do contrato de concessão são Construção, Operação e Devolução (BOT – Build, Operate and Transfer, em inglês); Concepção, Construção, Operação e Devolução (DBOT – Design, Build, Operate and Transfer); Construção, Posse, Operação e Devolução  (BOOT – Build, Own, Operate and Transfer); Concepção, Construção, Posse, Operação e Devolução (DBOOT – Design, Build, Own, Operate and Transfer); Reabilitação, Operação e Devolução (ROT – Rehabilitate, Operate and Transfer); e Reabilitação, Posse, Operação e Devolução (ROOT – Rehabilitate, Operate, Own and Transfer).

 

Ainda que um determinado contrato de concessão possa integrar elementos de duas ou mais sub-modalidades, releva, contratualmente, a modalidade predominante, como se verá a seguir, a partir dos casos concretos da concessão da Estrada Maputo-Witbank, na N4, e da Estrada Circular de Maputo.

 

A Estrada Maputo-Witbank, que liga a cidade de Maputo à cidade de Pretória, na vizinha África do Sul, está inserida na sub-modalidade BOT, sendo a única do género na África Subsahariana, muito provavelmente por, para a sua edificação, os privados terem sido chamados a investir 100 porcento do valor necessário, o que pressupõe a existência de sector privado forte, disposto a associar-se para o efeito e com capacidade de efectuar algum investimento com capitais próprios e de se endividar para grande parte da empreitada.

 

Os entes privados que integram a Trans African Concession (TRAC) aplicaram na estrada Maputo-Witbank 20 porcento de capitais próprios, sendo que a fatia de leão, correspondente a 80 porcento, foi financiada por um sindicato constituído pelos quatro principais bancos da África do Sul. Os governos da África do Sul e Moçambique avalizaram o financiamento, para o conforto do sindicato bancário.

 

Quando se concebeu, em 1996, o projecto de construção, reabilitação e/ou ampliação do troço Maputo-Witbank – que, em 2005, por conta de uma adenda ao contrato original, passou a incluir o troço Witbank-Pretória, sem alteração do prazo de vigência do contrato de concessão, que é de 30 anos – era necessário um investimento de três biliões de randes, o equivalente, ao câmbio da altura, a cerca de 660 milhões de dólares norte-americanos.

 

Já o contrato de concessão da Estrada Circular de Maputo à REVIMO está integrado na sub-modalidade ROT, sendo que, antes que a mesma qualifica efectivamente como estrada com portagem, a concessionária foi chamada a expandi-la, por via, por exemplo, da construção do nó de Tchumene e de quatro praças de portagem, além dos cerca de 12 quilómetros da rodovia Vila de Marracuene-Macaneta.

 

Além de manutenções de rotina e periódicas, tanto a sub-modalidade que corporiza a Estrada Maputo-Witbank (BOT) como a da Estrada Circular de Maputo (ROT) compreendem a realização de reabilitações, que, em termos técnicos, diferem de manutenções como tal, sejam elas de rotina ou periódicas.

 

A reabilitação compreende investimento de fundo, que corresponde a uma quase-reconstrução, sendo comumente realizada ao cabo de 8-10 anos de operação de uma estrada, com o que se garante que, findo o prazo de vigência do contrato de concessão, a estrada possa ser devolvida ao concedente em perfeitas condições.

 

*Economista. Sua opinião não vincula a “Carta”

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