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quarta-feira, 04 novembro 2020 05:47

CNE/STAE nos 25 anos da democracia multipartidária: Mudanças na estrutura estão longe de garantir a integridade e transparência dos processos eleitorais

Os Órgãos de Gestão Eleitoral (OGE), nomeadamente, a Comissão Nacional de Eleições (CNE) e o Secretariado Técnico de Administração Eleitoral (STAE), continuam longe de garantir a imparcialidade, integridade e transparência dos processos eleitorais, em Moçambique.

 

Quem assim defende é o académico e professor de Ciência Política, Domingos do Rosário, um dos organizadores e autores da obra Democracia Multipartidária em Moçambique, elaborada a propósito da celebração dos 25 anos da institucionalização da democracia multipartidária no país. A obra é da chancela do Instituto Eleitoral para a Democracia Sustentável em África (EISA).

 

Domingos do Rosário aponta para as primeiras eleições multipartidárias de Outubro de 1994 como sendo as de “sucesso”, em virtude de os resultados terem sido aceites pelos principais contendores, nomeadamente, a Frelimo e a Renamo, realidade que não mais se chegou a verificar nos pleitos subsequentes, incluindo as Gerais de 15 de Outubro de 2019, nas quais foram eleitos, pela primeira vez, os Governadores de Província.

 

De 1994 a esta parte, Domingos do Rosário vê, nos Órgãos de Gestão Eleitoral, um organismo longe de assumir e exercer o seu verdadeiro papel, mercê da forte influência exercida pelo partido no poder, a Frelimo, que sempre teve o total controlo da máquina eleitoral. As constantes reformas operadas na legislação eleitoral, sempre à boca das eleições e fruto de exigências da oposição, diz o autor, apenas serviram para consolidar o poder que o partido Frelimo teve e tem sobre toda a máquina que administra os processos eleitorais, a todos os níveis.

 

As eleições multipartidárias de 1994 marcam, sabe-se, a concretização dos compromissos assumidos entre a Frelimo e a Renamo, na sequência do Acordo Geral de Paz (AGP) rubricado a 04 de Outubro de 1992, em Roma.

 

A derrocada dos órgãos de administração eleitoral, no caso a Comissão Nacional de Eleições (CNE) e o Secretariado Técnico de Administração Eleitoral (STAE), assinala Domingos do Rosário, começa nas eleições de 1999, no caso as segundas eleições presidenciais e legislativas. De lá a esta parte, os órgãos têm estado longe de actuar de forma isenta, neutra, imparcial e transparente, facto que fez cair a pique a confiança dos cidadãos no trabalho por estes desenvolvidos.

 

É, precisamente, na mecânica em volta da composição e o funcionamento dos Órgãos de Gestão Eleitoral que repousa a fragilidade dos mesmos, estando as reformas introduzidas em 1997, que marcaram o abandono formal ao princípio da paridade (das eleições de 1994) e a introdução da representatividade parlamentar, reforçando, deste modo, a influência exercida pelo partido Frelimo.

 

“A arquitectura das reformas introduzidas em 1997, que abandonaram o princípio da paridade a favor do princípio da representação parlamentar e a forte influência exercida pela Frelimo, pelo facto de controlar os mecanismos de tomada de decisão, o que se reflectiu na composição dos órgãos de administração eleitoral, por um lado, e no controlo técnico que o STAE exerce sobre o processo eleitoral, por outro, condicionaram o papel exercido pelos OGE na sua transparência, neutralidade, independência e profissionalismo na gestão do processo eleitoral”, refere o documento.

 

O autor sublinha ainda que nem o regresso ao modelo da paridade, o que “funcionou em 1994”, introduzido pela última reforma operada à legislação eleitoral, devolveu a credibilidade aos Órgãos de Gestão Eleitoral, o que não garantiu que os resultados das últimas eleições gerais não merecessem a contestação da oposição.

 

Quadro dos processos eleitorais 1994-2019

 

As eleições de 1994 são descritas pelo autor como tendo sido bem-sucedidas. A razão assenta na paridade na CNE que geriu o aludido pleito. O órgão era composto por 21 membros, em que 10 eram do partido Frelimo, sete da Renamo e três que vieram dos então chamados partidos não armados. Brazão Mazula foi o escolhido para liderar a CNE, figura que, entretanto, reuniu consensos entre os dois principais partidos. E, seguidamente, foi criado o Secretariado Técnico de Administração Eleitoral, que se subordinava à CNE e tinha a função de organizar, executar e assegurar as actividades técnicas e administrativas de todo o processo eleitoral.

 

Na CNE de 1994, diz Do Rosário, a busca de consensos sempre norteou a tomada de decisões, condimento que contribuiu para sua legitimidade e a aceitação dos resultados por parte dos concorrentes. O mandato da CNE terminou 20 dias após a publicação dos resultados eleitorais, tendo toda a responsabilidade de gestão dos aspectos administrativos e técnicos das eleições ficado com o STAE.

 

As primeiras eleições municipais de 1998 tiveram lugar num ambiente completamente oposto à realidade vivida em 1994, a começar pela ausência da CNE, ficando a responsabilidade de organizar o recenseamento eleitoral ao STAE. Estas eleições marcam, em termos práticos, o abandono do princípio da paridade e a introdução do da representatividade parlamentar na CNE, que foi nomeada sete meses antes da realização das eleições. A nova CNE, diz o autor, era constituída por nove membros, sendo um presidente, sete vogais obedecendo ao princípio da representatividade parlamentar e último designado pelo Conselho de Ministros.

 

Domingos do Rosário aponta que a introdução da representação parlamentar na composição da CNE foi a artimanha usada pelo partido Frelimo para reforçar a sua presença no órgão (através da ditadura do voto) e facilitar o processo de tomada de decisão a seu favor.

 

Na nova CNE, já com um mandato de cinco anos, a Frelimo tinha seis membros, nomeadamente, quatro vogais vindos do parlamento, um membro do Governo e um presidente nomeado pelo Presidente da República. Esta nova CNE veio despoletar graves erros cometidos durante a actualização do recenseamento eleitoral, sobretudo em zonas de influência do maior partido da oposição.

 

Em meio a um mar de irregularidades, as eleições tiveram lugar e, 45 dias depois da publicação dos resultados oficiais pela CNE, o Tribunal Supremo detectou erros na acta de apuramento final. A abstenção foi também massiva nestas eleições, estando na origem a incapacidade dos órgãos de administração eleitoral em liderar o processo, nas suas variadas dimensões.

 

Para as eleições de 1999, na sequência da última não ter terminado o mandato, uma nova CNE foi constituída para garantir a gestão da mesma. Estas eleições foram antecedidas de um conjunto de consensos entre a Frelimo e a Renamo, incluindo a aprovação de uma nova legislação eleitoral. Ainda decorrente da polémica gerada em torno dos números, um novo recenseamento eleitoral de raiz foi feito.

 

O estudo aponta a criação de uma nova CNE para gerir as eleições de 1999, que integrava 17 membros, em que 15 eram indicados pelos partidos políticos à luz do princípio da representatividade parlamentar e dois provenientes do governo. A falta de consenso em torno da escolha do Presidente do órgão (no caso o reverendo Jamisse Taimo), anota o autor, veio elevar o nível de desconfiança em torno da figura por parte da Renamo.

 

Domingos do Rosário avançou que esta nova CNE viu o seu trabalho ser duramente contestado, figurando a falta de transparência no apuramento intermédio a gota que fez transbordar o copo, afectando a credibilidade do processo e fez nascer dúvidas sobre a fiabilidade dos resultados finais. O desempenho dos órgãos eleitorais arrastou o país para uma crise política, com a Renamo a contestar fortemente os resultados saídos das urnas.

 

As eleições de 2003 e 2004 não foram diferentes das anteriores. Foi novamente aprovada uma nova legislação eleitoral para aperfeiçoamento da organização, coordenação, execução, condução, direcção, supervisão do recenseamento eleitoral e dos processos eleitorais. Nisto, foi criada uma nova CNE com 19 membros, sendo 18 propostos pelos partidos políticos com assento no parlamento e um presidente proposto pela sociedade civil, tendo Arão Litsure sido o escolhido.

 

Aqui, havia obrigatoriedade de o presidente da CNE ser proveniente da sociedade civil e o presidente do STAE, órgão do Estado, devia ser eleito por concurso público. E o STAE subordinava-se à CNE. No entanto, diz o autor, a CNE não foi capaz de exercer o poder sobre o STAE, sendo, por isso, que houve grandes conflitos entre as duas instituições. Salienta o autor que, depois de não terem sido alvos em 2003 (municipais), os órgãos eleitorais foram alvos de duras contestações nas eleições gerais de 2004, precisamente por causa da falta de capacidade para gerir a questão dos cidadãos que haviam perdido a capacidade eleitoral activa, em que o STAE acabou avançando com um novo recenseamento de raiz, algo que não caiu nas graças da Renamo, que entendia como um acto de falsificação para beneficiar o partido no poder.

 

“Existiam imprecisões e inconsistências nos dados registados nos cadernos eleitorais de 2004. Os OGE recusavam também fornecer aos partidos políticos os cadernos eleitorais definitivos com a respectiva distribuição das mesas de voto pelo país”, diz o autor.

 

Como forma de viabilizar a realização das eleições autárquicas de 2008 e as gerais em 2009, uma vez mais, a legislação eleitoral voltou a ser mexida. O objectivo era de melhorar a organização, coordenação, execução do recenseamento e do processo eleitoral. Na sequência, é criada uma nova CNE, mas, desta feita, com 13 membros. Um era o presidente e os restantes 12 membros estavam distribuídos em oito que eram indicados por organizações da sociedade civil e cinco pelos partidos políticos à luz do princípio da representatividade parlamentar. O presidente saía entre os nomes enviados pela sociedade civil, tendo a escolha recaído em Leopoldo da Costa, que fora eleito por consenso e unanimidade dos membros, incluindo a Renamo.

 

Diz o autor que, apesar da inclusão do elemento sociedade civil no órgão ter sido vista como passo determinante para busca da tão almejada independência, tal não se efectivou porque o partido no poder continuava a ter total controlo do órgão graças ao modelo da maioria que norteava a tomada de decisão.

 

O autor diz ainda que as falhas começaram ainda na fase do recenseamento, seguido o processo de candidaturas e desaguado na votação. Somados os factos, os Órgãos de Gestão Eleitoral voltaram a ser apontados como promotores da falta de transparência, o que, de certa forma, pode ter contribuído para o elevar do nível de desconfiança em relação ao processo eleitoral.

 

As eleições de 2013 e 2014 foram antecedidas de momentos de tensão. Aliás, a Renamo por não concordar com a lei eleitoral optou por não participar nas eleições municipais de 2013 e, enquanto isso, os ataques armados na região centro do país, isto em 2012, iam se intensificando.

 

Tal como nos pleitos anteriores, a lei eleitoral voltou a sofrer várias emendas, tendo, igualmente, sido abrangida a lei da CNE. A CNE passa a ter 17 membros, em que cinco são indicados pela Frelimo, quatro pela Renamo e um pelo Movimento Democrático de Moçambique. Os restantes sete membros provenientes da sociedade civil. Esta nova CNE, anota o autor, resultou de um “political settlement, não formalizado,” entre o partido Frelimo e Renamo alcançado na mesa do diálogo.

 

Sheik Abdul Carimo conserva o seu cargo, depois ter sido eleito em 2013. As reformas operadas à legislação eleitoral significaram, em termos práticos, a politização dos órgãos eleitorais e retorno à “paridade” exigida pela Renamo.

 

“Apesar da paridade na sua composição, e dos arranjos não só para a cooptação da sociedade civil pelos partidos políticos, mas também para integração dos membros dos partidos políticos nas mesas de voto, o resultado produzido pelos novos OGE foi altamente contestado pelos partidos da oposição”, refere o autor.

 

A oposição contestou os resultados por entender que não houve transparência desde o recenseamento eleitoral até à votação.

 

Os Órgãos de Gestão Eleitoral voltaram a ser protagonistas, de acordo com o autor, nas eleições autárquicas de 2018 e nas gerais de 2019, estando em evidência a manipulação das estatísticas eleitorais, tendo o impacto se reflectido nas províncias onde a oposição tem uma franja considerável de apoiantes.  A distribuição dos mandatos para as legislativas deixou os partidos da oposição à beira de um ataque de nervos. (Ilódio Bata)

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