A defesa de Renato Matusse, antigo conselheiro do ex-presidente Armando Guebuza, tal como os restantes advogados de defesa, insurgiu-se contra a imputação do crime de peculato ao seu constituinte. Eis o relevante, sobre esta matéria, das alegações do advogado Constantino Gemusse, apresentadas ontem na tenda da BO:
“Relativamente ao crime do peculato, o próprio Tribunal Supremo, no acórdão vertido no processo 111/2020, relativo ao pedido de extradição de cidadãos estrangeiros investigados num dos processos autónomos deste processo – o processo nº. 372/P/11/2020, rejeitou o indiciamento destes pela prática do crime de peculato.
Primeiro, porque aqueles cidadãos estrangeiros não foram considerados funcionários do Estado e, segundo, porque entendeu aquele Supremo Tribunal que o dinheiro em causa pertencia à Privinvest, que notoriamente é empresa privada, fora do Sector Empresarial do Estado, estrangeira e, claramente, fora da alçada do Estado moçambicano.
Nesta linha interpretativa do TS, o nosso paciente, igualmente, não deve ser tido e, muito menos, achado como autor de um crime de Peculato.
(…)
Ora, a inexistência do crime de Peculato que aqui denunciamos não se apoia apenas no acórdão do TS, resulta igualmente da forte contradição e da invalidade dos argumentos aduzidos pelo MP, porquanto, toda a sua sustentação quando aqui passaram os declarantes, ligados ao Banco de Moçambique - o Ex-Governador, uma Ex-administradora e outros funcionários alguns em função e outros reformados, foi na tentativa de demonstrar que os então responsáveis do Banco de Moçambique autorizaram garantias soberanas para créditos privados.
Aliás, num dos processos autónomos que corre termos na 10ª Secção do Tribunal Judicial da Cidade de Maputo, com o nº. 58/2020/A, aqueles ex-dirigentes do BM estão acusados pelo cometimento de um crime de abuso de cargo ou função, por supostamente terem autorizado garantias soberanas em empréstimos de empresas privadas.
A representante do Ministério Público, Dra. Ana Sheila Marrengula, V. Excia é também representante do MP naquele processo, como pode explicar contradições gravíssimas como estas?
Num processo o empréstimo é público, o dinheiro é do Estado – há crime de peculato. Noutro processo, o empréstimo é privado, o dinheiro é das empresas – há crime de abuso de cargo ou funções. O que é isso? Que jogo é esse? O que pretende o MP a se expor a tanta incongruência.
Já ficou aqui demonstrado e o próprio MP defendeu neste e defende nos processos autónomos que o crédito foi privado, contudo, foram dadas garantias do Estado. Agora, a Manuel Renato Matusse não foi entregue nenhuma garantia do soberana do Estado que posteriormente este tenha desviado.
Portanto, ainda que este fosse funcionário público da data dos factos, não tendo recebido garantia soberana, bens ou dinheiro do Estado, mas sim da Privinvest, resulta inequívoco que não estão reunidos os elementos típicos do crime de peculato nos art. 313 e 437, 421 nº. 5, do código vigente à data dos factos.
Aliás, durante a realização da instrução contraditória nos presentes autos, tanto o Ministério da Economia e Finanças, como o Ministério da Defesa Nacional, remeteram ofícios a este douto tribunal informando que não entregaram dinheiro ou quaisquer bens ao cidadão Manuel Renato Matusse.
Só um esforço hermenêutico inglório, pode pretender sustentar que os bens adquiridos pela Privinvest a favor do nosso constituinte representam qualquer tipo de desvio de dinheiro público.
Este esforço sempre cairá do âmbito da interpretação extensiva em matéria incriminadora, facto que é completamente vedado pela lei penal no art. 7 do CP, onde vem estatuído que "não é admissível a interpretação extensiva ou o recurso à analogia ou indução por paridade ou maioria de razão para qualificar qualquer facto como crime, definir um estado de perigosidade ou determinar a pena ou medida de segurança que lhes corresponde".
Portanto, há uma manifesta atipicidade entre a conduta de Manuel Renato Matusse e o crime de peculato, resultando claro que este, jamais, poderá ser condenado por este crime nos presentes autos.
Ou seja, para que alguém cometa um tipo legal de crime impõe-se que a sua conduta se subsuma nos elementos objectivos e subjectivos do tipo. A ausência de um elemento que integra a descrição típica da infracção, seja objectiva, seja subjectiva faz desaparecer o tipo legal.
In casu, a ausência do elemento objectivo, bem ou dinheiro público que integra o crime de peculato, traduz-se numa impossibilidade absoluta do nosso paciente ser condenado pela prática deste crime. (Carta)