Alguns dos advogados de defesa no presente caso das “dívidas ocultas” exploraram, nas alegações finais, uma brecha descoberta pela primeira defesa de Renato Matusse (os advogados Waty, Kamati e Sunda): uma “contradição” do Tribunal Supremo na definição de quem é o dono dos dinheiros do calote.
Quem o fez de forma mais incisiva foi o advogado de Gregório Leão, o causídico Abdul Gani Hassan. A defesa confrontou dois despachos do Supremo que se contradizem sobre a matéria, nomeadamente o acórdão relativo ao pedido interposto pela Procuradoria-Geral da República (PGR), em 2020, para a extradição para Moçambique dos banqueiros do Credit Suisse, Detelina Subeva, Andrew Pearse e Surjan Singh, e o acórdão que valida o despacho de pronúncia que esteve agora em processo de produção de prova na Machava.
O pedido de extradição foi julgado em 2020 pela Secção Criminal do Tribunal Supremo. A PGR pretendia que os três banqueiros fossem extraditados para Moçambique para responderem pelos crimes de peculato, associação para delinquir e corrupção passiva para acto ilícito.
No seu acórdão (de outubro de 2020), a Secção Criminal do TJ deu provimento ao pedido de extradição mas descartou o crime de peculato. Os três eram cidadãos estrangeiros, e nunca poderiam ser considerados como funcionários ou agentes do Estado. Mas o TS foi mais longe, frisando que os dinheiros em causa eram da Privinvest, e não do Estado moçambicano, conforme se pode ler neste trecho relevante:
“A prova existente nos autos indicia que, tanto os arguidos nacionais do processo principal, como os reclamados, receberam luvas, sacados pela empresa Privinvest das contas da empresa no valor global; dos empréstimos contraídos pelas empresas moçambicanas, valor este que nunca foi integrado na esfera jurídica dessas empresas ou do Estado moçambicano, uma vez que foi transferido diretamente para a Privinvest, como se viu já, sem que em algum momento tivesse passado para o poder das empresas do Estado ou mesmo dos arguidos nacionais (no caso Gregório Leão José e António Rosário)”.
De acordo com o TS, “foi com base nesse valor do empréstimo – transferido directamente para as conta da empresa Privinvest e que passou para a titularidade desta com o poder de disposição e administração efectiva – que a Privinvest sacou o valor de USD 200.000.000,00 (duzentos milhões de dólares americanos) para o pagamento de luvas a favor de arguidos nacionais e dos oras reclamados”.
Ou seja, para o Tribunal Supremo, os dinheiros usados para o pagamento de luvas a favor de arguidos nacionais e estrangeiros eram dinheiros da Privinvest.
Mas, poucos meses depois, o TS (a mesma secção e os mesmos Juizes-Conselheiros, designadamente Luís Mondlane, Leonardo Simbine, António Namburete e Rafael Sebastião) abraçava outra narrativa, sem justificar a razão dessa mudança radical de interpretação.
Em Março de 2021, o Tribunal Supremo lavrou o despacho definitivo pronunciando 19 dos 20 arguidos. Seu relator foi o juiz Luís Mondlane. O Supremo confirmou as acusações de peculato para os arguidos Armando Ndambi Guebuza, Gregório Leão José, António Carlos do Rosário, Cipriano Sisínio Mutota, Maria Inês Moiane Dove e Manuel Renato Matusse (que haviam recorrido da acusação de primeira instância) e os arguidos Bruno Evans Tandane Langa, Teófilo Francisco Pedro Nhangumele e Ângela Dinis Buque Leão (que não recorreram da acusação).
Nos seus argumentos, o Supremo já não considera a Privinvest como dona do dinheiro do calote. E, em muitas das partes, nem menciona o nome Privinvest. Sobre o crime de peculato apontado a António Rosário, o TS diz que ele “apoderou-se de avultada quantia remetida pelo Banco Credit Suisse à Privinvest resultante do empréstimo contraído pela ProÍndicus, sendo servidor público, sabendo que tal dinheiro pertencia ao Estado e destinava-se à implementação do Projecto de Protecção da Zona Económica Exclusiva”.
E apontava que “Bruno Evans Tandane Langa, Teófilo Francisco Pedro Nhangumele e Armando Ndambi Guebuza quando se juntaram aos arguidos Gregório Leão José, António Carlos do Rosário e Cipriano Sisínio Mutota conheciam as funções públicas desempenhadas por estes”. Só por esse "conhecimento", Ndambi, Tandane e Nhangumele foram acusados de peculato.
Também Cipriano Mutota foi chamado a dar a mão a palmatória por peculato porque “apoderou-se de dinheiros pertencentes ao Estado, no montante de USD 980.000,00 (novecentos e oitenta mil dólares americanos)”. O despacho do Tribunal Supremo prossegue, na mesma senda de contraditória: "a matéria fáctica atribuída aos recorrentes Maria Inês Moiane Dove e Manuel Renato Matusse integra o crime de peculato que se consumou com o recebimento de valores provenientes dos empréstimos concedidos pelos bancos Credit Suisse e VTB Capital às empresas ProÍndicus, EMATUM e MAM, com garantia do Estado para implementação do Projecto de Protecção da ZEE”.
Esta questão foi objecto de muita atenção nas alegacões dos advogados dos arguidos visados pelo crime no Tribunal. Aliás, a pronúncia acusou alguns arguidos desse crime de peculato quando eles nunca desempenharam funções no Estado e, mesmo que tivessem desempenhado essas funções, nunca lhes foi entregue pelo Estado, para sua guarda ou gestão, dinheiro ou propriedades públicas.
Recorde-se, a acusação dos arguidos usa a definição penal de peculato constante do artigo 514 do Código Penal 2014, que dispõe assim: comete o crime de peculato o “servidor público que em razão das suas funções tiver em seu poder, dinheiro, cheques, títulos de crédito, ou bens móveis ou imóveis pertencentes ao Estado ou autarquias locais ou entidade pública ou a pessoa colectiva ou privada ou a particulares, para guardar, despender ou administrar, ou lhes dar destino legal”. Com base nesta definição, alguns causídicos afirmam que o crime de peculato que é imputado aos principais arguidos do processo não tem uma razão de ser.
Refira-se que, de todas as acusações constantes nos autos, o peculato é o crime com a maior moldura penal. De 12 a 16 anos. (M.M.)