“Roubei” este título ao Areosa Pena, cronista de proa irresistível de ler em todos os momentos. Passam décadas após a sua morte, mas o cheiro da lavra deste personagem de ascendência judia, vai continuar a gotejar na memória em determinadas circunstâncias da vida, como nos dias em que o vento sopra com intensidade e os barcos não podem fazer a travessia entre Inhambane Maxixe, deixando por terra, consequentemente, a necessidade urgente das pessoas chegarem aos seus destinos.
Se houvesse a ponte teríamos maior fluidez de tráfego, os ventos não seriam condicionante, mas nunca será redundante dizer isso embora haja quem pense de forma diferente. Quer dizer, a cidade de Inhambane é um lugar particular, é uma península, tornando-se portanto a única capital provincial de Moçambique por onde não se passa. À esta urbe só se chega e se sai da mesma porta. Daí a pacatez, o silêncio que alguns inergúmenos teimam em vituperar com estúpidos decibéis em todos os bairros, perante a incapacidade das autoridades municipais e dos próprios líderes comunitários.
Então, se houvesse a ponte a cidade seria escangalhada, diferentemente do pensamento de Areosa Pena que defendia essa infraestrurura. Ou seja, o movimento de viaturas e pessoas iria crescer sem controle, matando toda a calmia dos tempos. Mesmo assim há aqueles que dizem que a economia da cidade ganharia outra dinâmica, uma pujança que nunca teve. Há outros ainda que vão pela linha de que Inhambane como cidade não tem mercado para grandes esfervescências, uma postura que nem a construção da ponte mudaria.
Se os próprios moradores da Maxixe e negociantes locais nunca se interessaram por Inhambane, não serão os grandes emperesários que rasgam a EN1 em demanda de outras províncias para fazer dinheiro, que irão desviar suas atenções para uma cidade sonolenta, é perca de tempo. A ponte se calhar vai beneficiar a pequenos comerciantes e reduzir o sofrimento das pessoas sobretudo em dias de mau tempo. De resto pode ser um gigantesco investimento com poucas possibilidades de retorno.
O governo provincial de Inhambane já ensaiou em tempos um projecto de construção desta infraestrutura que merece debate. Até porque chegou a haver uma aproximação a empresários chineses nesse sentido, cujos resultados não são conhecidos. E enquanto não se toma alguma decisão, permanece o dilema: é viável a construção da ponte Inhambane-Maxixe?
Não nos parece ser contraditório afirmar que o espaço digital veio ‘revolucionar’ a maneira como comunicamos. No campo das mobilizações sociais, Manuel Castells (2012) já havia designado tal realidade com o que chamou de ‘’redes de indignação e esperança’’ [Networks of Outrage and Hope], onde examinava o papel das redes sociais da Internet na formação do activismo social e político. Concentrando-se na Primavera Árabe e no Movimento Ocupar, Castells argumenta que tais movimentos foram organizados através de tecnologias de comunicação em rede, que permitiram aos activistas partilhar informação e coordenar as suas acções de forma rápida e eficiente.
Castells também explora os contextos culturais e políticos que deram origem a estes movimentos, argumentando que foram alimentados por um sentimento de frustração com os sistemas políticos existentes e por um desejo de maior justiça social. O autor enfatiza, por fim, a importância do horizontalismo e da organização sem líderes nestes movimentos, bem como o papel dos jovens na condução da mudança social.
Numa outra dimensão, encontramos o anglicismo « cancel culture » ou então ‘’cancela a cultura’’, um acto que designa um conjunto de factos relacionados com a ‘’nova censura’’ no espaço digital, cujo campo privilegiado de manifestação diz respeito à universidade e à cultura. Este fenómeno surgiu acoplado ao movimento Me Too, em 2017, e nessa altura a intenção primordial era não mais do que ostracizar os agressores, ora denunciados pelas vítimas, exigindo que exibissem comportamentos de reparação e de arrependimento para com as mesmas. Teoricamente, diga-se, a ‘’cultura do cancelamento’’ pode ser descrita como a tentativa activa de silenciar uma pessoa que expressou uma opinião que ofendeu alguém quer tenha sido intencional ou não.
No campo político, o historial remonta para Junho de 2020, quando a revista americana Harper’s publicou uma carta aberta intitulada ‘’A Letter on Justice and Open Debate”. Na mesma carta, era referido que a resistência ao então Presidente Donald Trump não devia conduzir os cidadãos ao dogmatismo ou à coerção. Tal carta foi co-assinada por 150 escritores, artistas e jornalistas, sendo que entre eles estavam várias figuras históricas da esquerda americana, como Noam Chomsky, Gloria Steinem e Michael Walzer. A carta apontava, assim, um clima intelectual de ameaças, denúncias e até o medo que os americanos chamam ‘’cancelar a cultura’’ ou a cultura da censura. Nascido nas universidades mais prestigiadas, centrado em questões de raça e género, este clima é semelhante ao McCarthyismo de esquerda, que infestou os meios de comunicação social, o mundo da cultura e até mesmo a vida empresarial.
Voltando para Castells, para o caso de Moçambique propomos o que entendemos por ‘escapatória juvenil’, um mecanismo de contornar a impossibilidade da presença física através da mobilização de rua no país. Assim, os cidadãos no geral, os jovens de forma particular, encontram nas redes sociais da Internet, uma forma de escapar aos actos de sevícia de suas liberdades que não são garantidas no espaço físico (offline). Adicionalmente, as redes sociais da Internet fornecem uma aparente segurança que não pode ser garantida em sede de uma demonstração popular por meio da manifestação ou da associação colectiva directa. Dessa forma, o espaço digital é transformado num verdadeiro ‘tubo de escape’, para, por via dele, expor diferentes opiniões.
Por conseguinte, como ilustra o título do presente texto, o termo ‘cidadania de fúria’ é nossa invenção para designar o exercício de actos cívicos, tidos como resposta à ocorrência de um evento ou realidade que viola os direitos cívicos e participativos de uma certa franja populacional, no caso em apreço os jovens, bem ‘’o mutismo dos bons’’ perante tais violações. Para nós, a ‘cidadania de fúria’ é manifestada por meio de escritos, imagens (memes, sobretudo) e palavras codificadas, que induzem para o posicionamento que deve ser entendido como repúdio social e político diante de uma ‘irritação colectiva’. Ou seja, os já conhecidos actos de ‘cancelamento’ e ‘banimento’ de artistas, fazedores de cultura, academia e alguns órgãos de comunicação são disso um exemplo.
Porém, para nós, tais ocorrências não são necessariamente uma mensagem contra os cancelados ou banidos. São, na verdade, contra um modo de vida em sociedade que ao longo do tempo foi tido como aceitável por uns, enquanto outros viviam em situação de deploração social, económica e governativa, tendo como maiores afectados os jovens. Assim, em sociedades menos tolerantes e abertas ao pensar contrário como Moçambique, é nosso entendimento que as tecnologias digitais têm se mostrado como uma poderosa ferramenta para a mobilização social e política, permitindo que os jovens possam se organizar e expressar suas demandas e reivindicações. E, mais do que diminuir, tal realidade se espera que aumente nos tempos próximos.
Embora aparentemente funcionais, alguma atenção deve ser recordada sobre as actuais demonstrações de ‘’cancelamento’’, dado que em teoria os activistas são cidadãos que possuem uma opinião formada sobre algo e as suas acções tendem a ir no sentido do benefício último da sociedade. Tendo como base a análise feita em outros contextos [Observador, 2022], a ‘’cultura do cancelamento’’, bem como tudo que lhe está associado, assemelha-se mais a um linchamento social, uma forma pejorativa de justiça privada, de fazer cumprir a função jurisdicional sem a necessidade de esta estar adstrita a determinados órgãos de um dado Estado, através de um sistema organizado de justiça e, sendo assim, perante esta evidência, a ‘cultura do cancelamento’ pode facilmente ser sinónimo de abuso e excessos.
Considerados os elementos acima, uma pergunta permanece sem esclarecimento: se não fosse a escapatória juvenil no espaço digital e a ‘cidadania de fúria’, que opção resta aos cidadãos num contexto de fechamento das suas liberdades em Moçambique?
FIM!
Nelson Saúte
O Poeta Luís Carlos Patraquim nasceu, em Maputo, a 26 de Março de 1953. Cresceu na periferia da cidade. O pai – a família era oriunda de Lagos, no Algarve, em Portugal – foi funcionário dos Caminhos de Ferro e trabalharia, como mecânico de aviões, na DETA, que era a Divisão de Exploração dos Transportes Aéreos dos CFM: “E o teu silêncio, o teu silêncio, onde / Florescem, sangrentas, as acácias da Rua de Lidemburgo / E Lagos estremece em azul e punge” - escreverá numa pungente evocação ao pai: “Pela tarde onde caminho, / E a pedra se inscreve no sol que neva”. A mãe era uma leitora omnívora. Dos franceses Balzac ou Victor Hugo, passando pelo russo Fiódor Dostoiévski, aos portugueses Eça de Queirós, Camilo Castelo Branco ou Antero de Quental serão os autores mais frequentados. Aos seis anos já lia. A escrita, a inquietude e a rebeldia tomam-no muito novo. Escreve sonetos à Antero e à Camões. Com 16 anos colaborava numa página juvenil no “Notícias”. No liceu integrou um grupo que tentou fazer um jornal – “Progresso”. Do malogro desse projecto até à “Voz de Moçambique” é um salto. Ali estavam alguns dos intelectuais considerados progressistas naquele tempo. Contacta com Eugénio Lisboa, Rui Knopfli, Homero Branco. O contacto com José Craveirinha é decisivo. Começa a conhecer outros nomes importantes. Um deles, Fonseca Amaral, que, na época, estava em Portugal.
O afã do jornalismo, que lhe surge precocemente, será também a expressão da sua “liberdade livre” (como queria Rimbaud), que não se isenta da sua intuição poética. Reconhecerá, anos mais tarde, influências indesmentíveis de José Craveirinha e Rui Knopfli nas suas primícias literárias: a realidade e a arte da palavra. Aliás, a sua poesia, não muito tempo depois, será uma simbiose poética, uma espécie de osmose. Fonseca Amaral é outra referência importante. A língua portuguesa, sabe-se, tem uma importante tradição poética. Patraquim beberá sobretudo de Herberto Helder e António Ramos Rosa (ambos portugueses). Carlos Drummond de Andrade será também essencial. Uma referência irrefutável.
O exercício de rebeldia levou-o a um exílio voluntário na Suécia em 1973. A ideia era integrar a frente libertária. Contacta o movimento, escreve uma carta solicitando adesão à FRELIMO. Entretanto chega o 25 de Abril e em finais de Janeiro de 1975 retorna a Moçambique. Integra “A Tribuna”, então dirigida por Rui Knopfli. São companheiros de redacção: Mia Couto, Julius Kazembe e Ricardo Santos. Com Mia e Kazembe experimentam a crónica literária, a crónica sobre o quotidiano. Integra, depois, o núcleo fundador da AIM (Agência de Informação de Moçambique). Mais tarde, desembarca no Instituto Nacional do Cinema e participa da aventura lírica do “Kuxa Kanema”. Torna-se roteirista. Vivia-se o alvoroço da construção do “homem novo”. O cinema que se intenta no arroubo dos heróis ilustra a época. As contradições são visíveis. Mesmo as que se omitem. O Poeta experencia um tempo aziago.
Quando, em 1980, publica “Monção”, na mítica colecção Autores Moçambicanos, do INLD (Instituto Nacional do Livro e Disco), Luís Carlos Patraquim afirma-se, indubitavelmente, como uma poderosa novíssima voz da poesia moçambicana. A literatura era então dominada por uma perspectiva acirradamente ideológica. Havia, na nossa poesia, um dominante tom exaltadamente engajado ou comprometido – a chamada poesia de combate. O livro e a poesia de Luís Carlos Patraquim são um escancarado momento de disrupção. Fonseca Amaral e Machado da Graça estão no INLD. Para quem sabe das circunstâncias que então vivíamos poderá até estranhar a inclusão desta obra e a sua publicação. Ela serviria, afinal, para demonstrar que o regime era democrático, que aceitava publicar livros que não coincidiam com a retórica dominante. Nada que impedisse que os prosélitos da revolução o atacassem ferozmente. Viam naquela proposta uma poesia que não ia ao encontro do povo. Acusaram-no de hermético, questionaram para quem escrevia, como escrevia e por que escrevia.
Em Março de 2020, Luís Carlos Patraquim publicou uma antologia intitulada “Morada Nómada”, que reúne a maior parte da sua obra poética deste o seu livro primeiro. O volume, organizado por Zetho Gonçalves, inclui livros editados entre 1980 e 2020 e um volume inédito “Kilimanjaro”. Da sua vasta lavra poética avultam: “Monção” (1980), “A Inadiável Viagem” (1985), “Vinte e tal Novas Formulações e uma Elegia Carnívora” (1992), “Mariscando Luas” (com Ana Mafalda Leite e Roberto Chichorro, 1992) “Lidemburgo Blues” (1997), “O Osso Côncavo e outros poemas” (2005), “Pneuma” (2008), “Matéria Concentrada” (Antologia poética, 2011), “O Escuro Anterior” (2013), “O Cão na Margem” (2017), “Música Extensa” (2017), “O Deus Restante” (2017). Para além disso, é autor da novela “A Canção de Zefania Sforza” (2010). Publicou, outrossim, as seguintes colectâneas de crónicas: “Enganações de Boca” (2011), “Ímpia Scripta” (2011), “Manual para Incendiários” (2012) e “O Senhor Freud nunca veio a África” (2017). Escreveu “Mestiçagens do Olhar” (2007) sobre a pintura de Chichorro. No domínio do infanto-juvenil: “O Gala-Gala Cantor” (2014) e “O Coelho que Falava Latim” (2014). Estas são as efemérides literárias de Luís Carlos Patraquim, que é também dramaturgo, guionista de cinema e jornalista.
A sua poesia é eclética e escora-se no conhecimento e na exegese da tradição poética que lhe é anterior, num diálogo com os poetas que lhe antecedem e com aqueles que ele elegeu como seus precursores. É, sem dúvida, uma poesia que se articula numa arrojada investida palimpséstica. Palimpsesto significa texto que existe sob outro texto. A escrita funda-se e refunda-se neste consecutivo exercício. A escrita de Luís Carlos Patraquim é inequivocamente palimpséstica. Há sempre um texto subjacente. O texto que ele sugere dialoga sempre com um que lhe é anterior.
Patraquim é um poeta de conhecimento, um poeta glosador de poetas, um poeta leitor de poemas. Um poeta de uma proeminente erudição. O seu léxico poético é depurado. Para muitos um poeta hermético, críptico, ininteligível, impenetrável. Quando se consegue adentrar no seu universo, porém, somos capazes de experimentar o assombro da técnica, da imagética nela emprestada, da beleza inesperada das suas metáforas. A poesia é sobretudo isso: a imagem, a alegoria, o tropo.
Luís Carlos Patraquim é um poeta que reflecte sobre o ofício e tem poemas que são a incessante busca e compreensão do idioma, da linguagem, da expressão, do código ou do sistema poético. Para além disso, a interlocução com os outros poetas, o que acontece nas epígrafes, nas citações, nas alusões ou nas dedicatórias, é também uma espécie de estabelecimento de dicção própria, de uma gramática própria, de uma voz própria.
Não caberia aqui falar de toda a sua vastíssima obra. Entre os seus livros, concita-me “A Inadiável Viagem,” que ele publica em 1985 – justamente quando o conheci e tive a láurea da sua amizade - e que retoma os traços distintivos de uma linguagem poética instituída no livro precedente (“Monção”), e anuncia, por assim dizer, aquela que virá nas “Vinte e tal Novas Formulações de uma Elegia Carnívora”, a obra com que culmina a trilogia iniciática. Creio, aliás, situar-se, aqui, precisamente, a importância capital desta obra estelar, e residir aí, justamente, a minha predilecção por ela.
Herberto Hélder, José Craveirinha, Carlos Drummond de Andrade, Paul Éluard, Fernando Pessoa (Ricardo Reis), Jorge de Sena, Jorge Guillén, Henri Michaux, Pablo Neruda acompanham-no nesse exercício palimpséstico. Para além dos textos citados destes autores, encontramos aqui um diálogo abundante e inteligível com poetas como Heliodoro Baptista, Rui Nogar, Sebastião Alba, Noémia de Sousa. Diria que em “A Inadiável Viagem” se amplia, sem logro, este exercício iniciado em “Monção” e que prosseguirá nas subsequentes formulações poéticas.
Escreve Luís Carlos Patraquim no poema “Elegia de Sábado”: “em coro te exigimos o sábado/ nós que ferimos o pensamento da carne/ e a quem deslumbra o hierático inútil pranto/ dos mortos habitantes de nós/ repetida barra fixa até à lâmpada do desejo/ e somos o cansaço desta espera nos jornais de domingo/ ilegíveis ainda de alguma letra/ de nós o fôlego obstinado da rua/ para que a descoberta da língua amanhã senhor/ nasça da fornicação do sábado”.
Aqui se pode intuir a desafeição em relação a uma realidade social dissemelhante do “tempo do canto / conquistado a sangue” exaltado, indiscutivelmente, na obra inaugural. Pouco depois de publicar este livro (“A Inadiável Viagem”) escreveu dois poemas violentíssimos sobre o tempo que nele, de alguma forma, anunciara: um deles, sem título, sobre os mutilados de guerra e outro – a duríssima “Elegia Carnívora”. Os textos em causa iriam integrar o livro subsecutivo.
Patraquim: “e somos o cansaço desta espera nos jornais de domingo”. Aqui está a chave e a expressão inequívoca do desalento, do cansaço, da astenia. Este verso denuncia um poeta distante daquele que, num poema em homenagem a Craveirinha, a dado passo, escrevera: “chama-se Junho desde um dia de há muito com meia dúzia / de satanhocos moçambicanos todos poetas gizando/ a natureza e o chão no parnaso das balas”. Alusão não só à “primavera de balas” (Craveirinha), mas uma manifesta sagração do tempo que então vivíamos.
Se em “Monção” encontramos o lirismo amoroso, encontramos textos que aludem a um diálogo intertextual com outros poetas, numa linguagem que se distancia da voz colectiva e colectivizadora, sem, no entanto, se exonerar de apostrofar a realidade social – Patraquim é um poeta que assume uma intervenção social –, em “A Inadiável Viagem”, temos isso e muito mais: temos o amor, o corpo celebrado da mulher (“a dicção do teu corpo”); temos a evocação da infância (que encontramos em Fonseca Amaral ou Noémia de Sousa - eis um dos eixos temáticos da poesia moçambicana: “Rua de Lidemburgo”: “da infância refaço esta clave nua/ a fisga de a sorver tão perto/ as goiabas rubras trazidas ao riso/ deste fermento que ora traduzo/ porque espero e no chão incorruptível/ a ternura dos dedos entreteçam o sono/ à sombra de um sinal que apeteça/ e outra vez na falésia da noite/ a metamorfose da água permaneça”); temos, sobretudo, uma realidade disfórica, o manifesto ocaso da revolução, o desalento ineludível. E nisso o título e o livro assumem uma biografia poética e uma trajectória pessoal irrefutável. Luís Carlos Patraquim partiria para Portugal no ano a seguir à publicação deste livro, onde vive ainda hoje.
Luís Carlos Patraquim: “À uma hora da madrugada somos deus/ aos látegos sobre os perfis das casas/ das frontes latejando voos de extenuados/ pássaros e batemos no poema. Abram/ Já não morremos nas mãos brincando/ do menino com dois anos de idade. / Assassinou-se, para não ser homem nem deus,/ nem perguntas de voos augurando/ metafísicas inúteis na ascensão de domingo/ à uma hora da madrugada.”
Este poema é de uma grande violência lexical e imagética, um dos mais ásperos de toda a literatura moçambicana. Um poema que exprime, com contundência, os anos 80 e a derrocada do sonho moçambicano, assassinado como o menino de dois anos, num dos textos mais pungentes, lancinantes e comoventes da poesia moçambicana no século XX:
“Batemos. Abram os estádios magníficos/ de todos os orifícios. Cuspam-nos/ o fogo que mata. Abram! / À uma hora da madrugada, meu deus. / Tão poucos a Sul, limpos e longe/ do país dos hiperbóreos. Tão já sem nada/ e um largo coração de ideias/ apodrecendo nas virilhas cortadas. / Ao perdido arfar de nós que nos perdemos, / matrissuicidas de deus na lixeira/ com mabandidos vídeos estilizando-nos/ em eléctricas úlceras de arco-íris, / nós voltamos. Dêem-nos os pulmões candongados/ em Tsalala, os polanulantes espantos/ depois das praças em comícios/ de núpcias sobre a gengiva dos dias”.
É como se escrevesse nesta “Elegia Carnívora”, poema de uma mordacidade inaudita, o epitáfio de uma época, na qual a morte de Samora Machel, em 1986, tem um significado mais do que simbólico: o abismo por onde resvalaram todos os sonhos. A desesperança evidente, o desconsolo que vaticina a viagem. Uma espécie de presságio, pressentimento, profecia.
Corrobora nisso, nesse mau agoiro, o poema sobre os mutilados de guerra: “Sentam-se sob as acácias no asfalto roto/ os mutilados com cigarros de embalar. / Nenhum som os recorta/ e todos os sentidos foram amputados. / Nem para a tarde crescem frustrados. / Esperam. Que inconclusa forma/ os limita em fórmula de serração? / Que ameaça os delira? / Nenhuma flor/ explode, poeta, no coração? / Os mutilados sonharão? Suas pernas? / O desejo, fruto podre adubando. Outra mão? / Que triste palavra os baba / no cigarro morto! Vendem. / Nenhum incesto os estanca. / À revelia do sol, os mutilados/ montam banca.”
O Poeta escrevera: “agora vou com amendoins na língua ínsula” e ficaria com os pregões a reverberar na memória: “agora Amêjoé vestiu a rua dobrou a esquina”. Ficariam belos e comoventes poemas que se entretecem na sua biografia. Num poema dedicado a Gulamo Khan proclama: “Escrevo, não obstante, um país solar, / rouca a língua que soluça em sintagmas antigos”. “A memória é isto. / Mas já não elido”. Ou: “Depois das elegias o alcandorado grito / sobre o deserto chão do poema”. Provavelmente, a viagem será a grande metáfora da sua biografia. A sua viagem a Ítaca. Os seus mitos matriciais.
Há nesta poesia, eu me atreveria a dizer: neste poema em continuum (que é a sua obra toda) mitos recorrentes, ainda que se encontrem cartografados numa “sintaxe de sombras”. Um desses mitos, a Ilha de Moçambique. Muhípiti: “É onde todos somos inúteis”. Ilha de Próspero, Ilha de Caliban. Ilha de Alberto de Lacerda (“Ó Oriente surgido do mar / Ó minha Ilha de Moçambique / Perfume solto no oceano / Como se fosse em pleno ar”); Ilha de Rui Knopfli (“Ilha, velha ilha, metal remanchado, / minha paixão adolescente / que doloridas lembranças do tempo / em que, do alto do minarete, / Alah – o grande sacana! – sorria / aos tímidos versos bem comportados / que eu te fazia”); Ilha de Eduardo White (“Amo-te sem recusas e o meu amor é esta fortaleza, esta Ilha encantada, estas memórias sobre as paredes e ninguém sabe deste pangaio que a Norte e na Ilha traz um amante inconfortado”); Ilha dos Poetas, Ilha de todos: “Onde na noite a Ilha recolhe todos os istmos / e marulham as vozes”. “Ilha, corpo, mulher. Ilha encantamento. Primeiro tema para cantar” - Luís Carlos Patraquim.
Poesia de outras viagens, poesia de todas as viagens. Em Lisboa encontramo-lo “mariscando luas” na casa do pintor onde “os amigos entram pela janela / de luz na tarde atlântica”, ou no café Martinho de Arcada, evocando um poeta amigo. Poesia aliás habitada de afectos e de poetas, de poetas mortos como Rui de Noronha, Reinaldo Ferreira, José Craveirinha, Noémia de Sousa, Rui Nogar, Gabriel Makavi, Fonseca Amaral, Gulamo Khan, Leite de Vasconcelos, Grabato, Dias, Sebastião Alba, David Mestre, Guilherme Ismael. Afinal, conclama o Poeta: “Não tenho mais legitimidade do que a de todos os mortos”.
Ou como escreverá, muitos anos depois, em “O Deus Restante” (2017): “Aqui onde o Zambeze se afoga na estreita garganta / depois da sumptuosa queda de Deus”. Este livro como “Musica Extensa”, do mesmo ano, são poemas únicos. Poemas em que acena constantemente ao Índico. O Atlântico não lhe ilude o referencial: “O Índico é um mar interior”. Com as suas fúrias, alegorias e tragédias. Poeta atento ao seu país. Poeta, na sua “Morada Nómada”, que lhe colige a obra, continua afinal a mesma voz, a mesmíssima voz inicial: “rigorosamente viajo no tempo / e não sei / não sei se é canto ou ave / o que canto”, como principiara: “com palavras faço a voz”:
“é preciso inventar-te porque existes
enquanto os deuses adormecem nas páginas dos livros
e o real é a infinita medida do canto”
Hoje, ainda e sempre, é preciso sobretudo essa “insurrecta linguagem do mundo”, “é preciso a insurrecta solidão de alguns dias” e “é preciso tudo como haver morte e flores” porque, agora como sempre, “nascemos hoje demasiado e vivos”.
A poesia de Patraquim sempre soou estranha. Um timbre fora do contexto da poesia que era comum produzir-se e publicar. Vivíamos, é preciso sublinhar, os primórdios da independência e estávamos, muitos de nós, imbuídos daquele fervor messiânico e revolucionário. Poesia que será também um acto de rebeldia contra um universo concentracionário que se vivia.
A importância de Patraquim também advém daí, dessa rebeldia, que iria informar a minha geração. Por causa do seu estro, do seu talento, da sua exuberância poética, do esplendor da sua metáfora, da ideia de que a poesia é a metáfora, da sua oficina burilada, da sua extraordinária capacidade imagética, da explosão das suas vibrantes imagens, o reino das imagens, da sua voz de eleito. Da sua iconoclastia, eu diria, finalmente.
Nesse tempo, que aqui aludo melancolicamente, o Poeta exercia uma espécie de sacerdócio para a geração que iria despontar nos anos 80 e que desalinha, por completo, dos ditames da época. A “Gazeta de Artes e Letras”, que ele empreenderia, entre 1984 e 1986, a convite de Albino Magaia, na revista “Tempo”, foi o esteio necessário para a nossa contradita. Patraquim era uma espécie de Papa, nas nossas letras, à época. Para além do facto de não ser alheio à “Charrua” ou às tertúlias da Associação dos Escritores. Naqueles tempos fervorosos, hóspedes da Cindoca às sextas-feiras.
Era, paradoxalmente, um tempo exultante, reconheço-o a esta distância. Éramos felizes e, provavelmente, não sabíamos. Estávamos imersos no desencanto que começara, então, a cansar-nos, por culpa de um quotidiano ingeneroso. Era o tempo do monolitismo político, no qual empreendemos a discordância. Eu reputo esse dissídio, essa dissensão, esse confronto. (“Por isso senhor dá-nos a humilde loucura do sábado”). Era a nossa matéria-prima e a marca distintiva da nossa geração. Mas nunca nos exonerámos do “amor da terra”, como queria o Poeta.
Releio a obra toda de Luís Carlos Patraquim e revejo nela a sua biografia. Volto aos seus poemas, torno às suas viagens, revisito os seus mitos, reencontro as suas elegias, as suas citações, os seus acenos, a sua sintaxe, a sua gramática, a sua constância, a sua erudição. A sua permanente viagem. A sua incessante busca da Ítaca. Retorno ao seu estro, ao seu exímio estro, aos seus deuses e epifanias. Como sempre é um empreendimento jubiloso.
Termino este cumprimento, no dia dos seus 70 anos, dizendo-lhe aquilo que T.S. Eliot, um dos seus poetas electivos, que ele apostrofa num dos seus mais belos e acerbos poemas (“Elegia Carnívora”), disse, num aceno florentino – Dante Alighieri concedera a Guido Cavalcanti –, de e a Ezra Pound: “Il miglior fabbro”, na dedicatória de “A Terra Devastada”. Não tenho dúvidas de que o Poeta Luís Carlos Patraquim é, hoje, entre nós, o melhor artífice.
\Kampfumo, 26 de Março de 2023
Estamos todos jubilosos porque o Banco Mundial nos vai emprestar 850 milhões de dólares para a reabilitação da nossa Estrada Nacional Número Um, vulgo EN1. Reza a notícia que o empréstimo do BM é para reabilitar a metade da via em dois anos, numa extensão de mil quilómetros.
Mas o entusiasmo já vem de há uns dois meses, quando conseguimos outro empréstimo dos árabes, de 600 milhões de dólares para o mesmo efeito, a reabilitação da EN1. Como bom patriota, também estou jubiloso, apesar de muitas reticências… E a primeira é que ambos os empréstimos não são suficientes para cobrir toda a extensão da nossa Estrada Nacional. A nossa EN1 tem um comprimento de 2600 quilômetros. Os empréstimos conseguidos cobrem cerca de 1600 quilómetros, segundo os entendidos. E os restantes mil quilómetros?!… A resposta é simples e óbvia: temos que ir à busca de outro empréstimo… de mil milhões de dólares!
Vamos supor que conseguíssemos de uma só vez os dois biliões e seiscentos milhões de dólares norte-americanos que são necessários para refazermos de uma só vez a nossa EN1! Seria uma maravilha. Mas este, para mim, NÃO É UM MODELO SUSTENTÁVEL DE OPERAÇÃO E MANUTENÇÃO DA NOSSA EN1!
Explico-me. Conseguido esse dinheiro e assumindo que os nossos corruptos não lhe iam deitar a mão, os empreiteiros e os fiscais seriam bem solícitos e os prazos se iriam cumprir satisfatoriamente - ia escrever literalmente, mas para nós isso é impossível, todos sabemos porquê - com os prazos, teríamos então uma EN1 um autêntico tapete.
A questão é: quanto tempo esse tapete iria aguentar a quantidade de camiões que diariamente a atravessam com toneladas e toneladas de mercadoria? E ninguém tem o controlo da quantidade de toneladas que esses camiões levam… algo me diz que aqueles basculantes que vemos aqui e acolá podem ser para inglês ver… eu pelo menos nunca ouvi que um único camião foi multado, mandado voltar, seu proprietário ou empresa banido/a… por excesso de tonelagem. NUNCA!
Com tanto camião com imensas toneladas de mercadoria atravessando diariamente a EN1 de norte para sul e vice-versa, NENHUMA estrada, por mais bem feita que esteja, pode resistir tanto tempo. Compatriotas, é TANTO O CAMIÃO QUE ESTÁ NA NOSSA EN1 DIARIAMENTE ! Nenhuma estrada resistiria. Com a agravante de que TODOS OS AUTOCARROS DE PASSAGEIROS USAM A MESMA VIA e TODOS OS CARROS PARTICULARES TAMBÉM! Difícil uma via resistir a tanta demanda!
E vai acontecer que três, quatro anos depois, a estrada começará (ou voltará) a degradar-se de novo. Mais ou menos nesta ou naquela província. E aí, de novo, voltaremos a ir à busca de novos empréstimos para o mesmo fim… antes de pagarmos os que contraímos agora… Estaremos em mais outros empréstimos sobre empréstimos. E NÃO TEREMOS O PROBLEMA RESOLVIDO!
A SOLUÇÃO DA ESTRADA NACIONAL N. 1 PASSA POR UMA LINHA FÉRREA E PELA CABOTAGEM. Pôr a EN1 top, só e só, não vai ser a solução, não será durável, não será sustentável. Temos que ter “alívios”: uma linha férrea e uns três a quatro navios de carga. Uma carga a ir via linha férrea e outra via marítima. Assim, aliviaremos a nossa EN1 e as reabilitações vão ser duráveis.
Em termos de linha férrea, já temos algum caminho andado: temos ligação Maputo a Chicualacuala… é uma questão de ligar Chicualacuala a Machipanda… só e só isso. E pôr as outras linhas a funcionarem… Machipanda-Beira; Beira-Tete; Tete-Nacala; Nacala-Pemba; e Pemba-Niassa. A mercadoria podia levar uma, duas semanas a chegar ao destino… mas chegaria e… aliviar-se-ia a EN1.
Em termos de cabotagem, é uma questão de adquirirmos três navios de transporte de mercadoria e pormo-los a levarem carga de Maputo a Rovuma e de Rovuma a Maputo com toda a paragem possível e necessária! Donde temos o dinheiro? Da mesma forma que conseguimos estes 850 milhões do BM, ou 600 milhões dos árabes, podemos ter uns tantos para comprarmos navios de transporte de mercadoria…
ASSIM ALIVIARÍAMOS A NOSSA QUERIDA ESTRADA NACIONAL! Doutro modo, estamos e estaremos a brincar no circo!
ME Mabunda
Mas isto será uma grande facada. No peito daqueles que ergueram habitações e outras infraestruturas ao longo do trajecto de uma linha que sai da cidade de Inhambane até Inharrime, percorrendo quase cem quilómetros. Lembra-nos os elefantes que voltarão pelo mesmo carreiro nas suas errâncias, destruindo aldeias inteiras construidas no lugar de “dono”, neste caso dos paquidermes. Os rios também são assim, voltam sempre depois da estiagem.
É como neste processo, a linha férrea foi desmantelada há mais de dez anos, e os carris – de aço – foram transportados em camiões de grande tonelagem seguindo outros destinos, deixando um vão que foi vorazmente ocupado pela população e gente graúda, com conhecimento das estruturas administrativas e municipais. Ou seja, o comboio que circulava exercia mais um trabalho social do que propriamente lucrativo, era benéfico para o povo. E hoje o apito que nos animava já não apita mais.
As próprias locomotivas e carruagens e vagões e zorras foram levados, e os hangares tornaram-se fantasmagóricos. Pelo menos deixaram uma “máquina” que vai servir como amostra de que aqui houve um movimento de comboios a vapor. Então, já ninguém contava que um dia os Caminhos de Ferro voltariam a precisar do seu caminho, como os elefantes e os rios, tanto mais que a Escola Ferroviária, que formava quadros moçambicanos e de outros países dos PALOP, tinha sido alocada em aluguer à Universidade Eduardo Mondlane (UEM). Funcionava aqui a Escola Superior de Hotelaria e Turismo.
Os Caminhos de Ferro já estão a reinstalar a Escola. Reabilitaram o edifício, a UEM teve que procurar outro espaço. Porém, vai faltar o restabelecimento da linha férrea e por onde vai passar esta via há casas, muitas delas sólidas e autorizadas e os CFM não têm nenhuma resposabilidade se forem chamadas as indemnizações. As pessoas já foram notificadas e o que se espera não será mais do que muito sofrimento e muita dor.
Há um mercado inteiro instalado ao longo da linha, num determinado troço, o chamado mercado da Mafurreira, com centenas de vendedores, maioritariamente mulheres, que estão a tremer perante os ventos que sopram. Pode ser que venham a ser movimentadas, mas será uma profunda dor de cabeça. Espera-se um caos social se não houver um bom tratamento deste caso, respeitando os direitos de pessoas que podem ter sido induzidas pelas emoções e desconhecimento. E depois empurradas pelas próprias estruturas administrativas e municipais.
A esperança de regresso do comboio é ténue, todavia há outras máquinas de circulação necessárias para a aprendizagem dos formandos e tudo indica que está-se numa faze crucial. Sendo assim, os carris deverão voltar aos seus lugares. Com consequências dolorosas para aqueles que ocuparam “lugar de dono”, com maior responsabilidade para aqueles que têm a obrigação de dominar o conhecimento em situações como estas e evitar colocar pessoas em desespero.