Com a Beira profundamente ferida, surge o Governo central a encher o palco num expediente simbolicamente cheio de significado mas que vai fazer parar por um dia os trabalhos da reparação do tecido social, comercial e industrial da cidade. Do ponto de vista psicológico, a cúpula do Governo reunir-se na Beira reconforta e mobiliza as almas violentadas pelo IDAI mas há sempre o efeito da distração e da perda instantânea do foco. Em ano de eleições, qualquer Governo do mundo faria o mesmo.
Mas vamos lá ver se esse Conselho de Ministros reúne-se num oásis de luxo no meio de tamanha destruição ou se as sumidade se sentarão nos escombros do Hospital ou de uma escola arrasada.
E espero que o Governo central abandone a politiquice bacoca e faça dessa reunião um encontro alargado ao Conselho Autárquico da Beira, que é quem aliás melhor sabe o que a cidade (no caso específico da cidade) precisa para se reerguer. Também espero que por artes de berliques e berloques o Governo central não tenha vaporizado o Daviz Simango. Seu sumiço é gritante. E não me venham dizer que ele está a ser censurado pelos canais de televisão (TVM, STV, Miramar) controlados pelo regime.
Ele tem alternativa. Através da Motivel, Simango podia estar a fazer circular vídeos nas redes sociais com testemunhos da destruição, partilhando para o mundo o espírito do lugar, desse lugar que já quase não existe, para roubar do Mia sua expressão de desolação pelo desastre que deixou seu lugar de infância sob escombros.
Onde raio se meteu do Daviz Simango?
O ciclone IDAI foi tão devastador que o Governo devia recomendar, amanhã, na sua reunião do Conselho de Ministros, o Conselho de Estado a decretar uma situação de Emergência Nacional. A destruição, no centro de Moçambique, vai certamente obrigar a uma revisão em baixa do crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) estimado, para este ano, em 3,4%.
Toda a infraestrutura produtiva de Sofala foi arrasada. A Estrada Nacional Nº 6, essencial para o fornecimento do “hinterland”, está interrompida em vários pontos. A reconstrução das pontes destruídas levará tempo, assim como a reposição de electricidade e de parte do sector de telecomunicações. Estes dois sectores são essenciais para a vitalidade da economia. Na cidade da Beira, hospitais e escolas foram arrasados. No interior, há relatos de vastas áreas de produção dizimadas e milhares de pessoas desalojadas. E depois, há o risco da eclosão de epidemias de malária e cólera.
O IDAI destruiu, enfim, boa parte do tecido produtivo e social do centro de Moçambique. O parque empresarial foi violentado: edifícios e transportes. O Porto da Beira depende, grandemente, de uma rede viária já precária, mas agora inoperacional para as suas operações de importação e exportação. Uma massa de água inundou cerca de 20 km da EN6 e da linha férrea de Sena. A produção agrícola, no centro, está comprometida. As culturas nas margens dos rios Buzi e Púnguè estão praticamente perdidas.
E esta é apenas ainda uma fotografia preliminar, um retrato de relance do efeito conjugado das cheias e do ciclone IDAI. O tamanho da destruição não se esgota em qualquer descrição exaustiva. E, mais importante, a resposta para esta tragédia extravasa qualquer plano de contingência. Estamos perante um desastre de proporções gigantescas cuja resposta exige que o Conselho de Estado decrete uma situação Emergência Nacional.
Isto permitirá ao Governo rever em baixa as perspectivas económicas para este ano, elaborando um Orçamento Retificativo para definir realocações orçamentais, de modo a robustecer a resposta ao desastre. Permitirá também a redefinição do défice orçamental, de modo a mobilizar recursos da comunidade internacional, no quadro de uma resposta estruturada ao desastre que esteja em consonância com o Plano Económico e Social, também ele redefinido em função das novas necessidades de investimento.
Não vejo outra saída. Repito, a resposta ao desastre ultrapassa qualquer paliativo contingencial. E as zonas afectadas precisam de um forte sinal do Governo central com uma intervenção substancial. Este é um desastre nacional de proporções gigantescas e exige uma resposta enquadrada numa emergência nacional.
Acabo de chegar à casa vindo do trabalho, cansado e revoltado contra a minha incapacidade de perceber que tudo isto já foi anunciado pela Palavra. Nunca quis ouvir os apelos do Noa, “meus irmãos e minhas irmãs, vamos construir a arca porque vem aí o Dilúvio”. Qual dilúvio que vai engolir casas e árvores e montes e montanhas! Que dilívio é esse? Desde que eu nasci e desde que nasceram todos os meus antepassados, jamais ouvi dizer que as águas que caem do Céu alguma vez subiram até aos montes, devorando-os inteiros. Isso não passa de imaginação, ou de loucura por velhice do Noa. Noa está obsoleto.
Isto é um delírio. Talvez um suspiro. O penúltimo. Estou debaixo do choveiro entregando-me ao prazer de sentir a água deslizando pela cútis, no bairro de Macurungo onde moro, nesta cidade da Beira despojada dos bosques que a ornamentavam. Já tenho a informação, “vem aí um temporal, um ciclone de grande magnitude e torrentes de chuva. Precavejam-se, procurem lugares seguros, não fiquem debaixo de árvores, fechem as portas e as janelas”.
Está a chover desde manhã, mas isso não me preocupa mesmo depois do Noa avisar com palavras claras, “vem aí o dilúvio, vamos construir a arca”. Isto vai passar, por enquanto deixem-me gozar este deleite que o choveiro me oferece. Também se vier essa tal hecatombe e engolir a minha casa eu sei nadar. De mariposa e de livre e de costas e de bruços. O meu corpo vai servir de jangada para a minha mulher e meus filhos.
Troveja fortemente em toda a cidade da Beira. O Davis Simango é o Noa, “meus irmãos, não deixem as crianças ir à escola, vocês também, que trabalham perto da orla marítima, fechem as empresas, fiquem em casa com as vossas famílias porque isto não é brincadeira, não!
Davis parece um pastor que vai à frente do rebanho quando fala do dilúvio que já está, aos poucos e poucos, lavrando para transbordar o Chiveve e submergir as casas. Chove forte agora, o vento sibilia como várias mambas ao mesmo tempo, e eu sinto que sim, que tenho de cingir o lombo para levar a minha família quando o tecto da casa estiver por debaixo da água.
Espreito pela janela da casade banho e vejo as palmeiras que os manhambanas e os maquelimanes trouxeram para aqui, dançando a dança do Idai. É um lindo espectáculo. É a arte em si. Que me faz sorrir ao pensar que a morte também pode vir do lado do belo. E se calhar todos nós podemos morrer aqui na terra dos senas e ndaus. A ver vamos, diz o cego!
Vou à sala para ver televisão e o corte de energia eléctrica é sagaz. Implacável. Pego no meu celular para efectuar uma chamada e do outro lado é o mutismo que me responde. As torres de comunicação tremeram nas bases. Lá fora o vento continua a sibilar. Agora uíva como os mabecos. Cada vez mais forte. E a chuva ruge no lugar dos trovões, fazendo-me lembrar, tudo isto, que não somos nada. Podemos ser executados agora mesmo, sem apelo nem agravo. Mesmo com os lombos cingidos.
Sempre estive preocupado com esses sentinelas de prontidão sentados em cada esquina das redes sociais e não só que tentam titanicamente a todo custo fazer-nos crer que o Presidente da República está sempre certo. Assustam-me esses compatriotas que de tanto endeusarem o Presidente da República chegam a acreditar que ele é Deus de verdade, não erra... não falha. Esses nossos irmãos que pensam que o Presidente da República não pode ser corrigido, negado, lembrado, guiado, sugerido ou chamado à razão. Esses que, para eles, o Presidente da República pode cair num buraco, se ele não viu é problema dele. Esses que pensam que é falta de respeito dizer ao Presidente da República que a sua gravata está torta ou que a sua braguilha está aberta.
O próprio Presidente da República abraçou a sensatez e interrompeu a sua visita ao Reino de Eswatine (uma visita que nem devia ter iniciado, diga-se). Fez uma introspecção. Ouviu o seu coração, aquele onde cabemos todos nós, e ouviu o brado do seu povo. Reconheceu que era melhor ir pessoalmente ao terreno do que tomar decisões com base em imagens partilhadas no "feici" por puxa-sacos estagiários. Deu-se conta de que, afinal, a sua presença lá em Macurungo, na Munhava, no Chinde, na Soalpo, em Canongola, etecetera, era melhor que a de qualquer ministro. Percebeu que o seu abraço era de longe melhor que qualquer comunicado da Presidência. Lembrou-se que a mulher de César não basta ser honesta, tem de parecer também.
Mas, há uma claque de académicos-cipaios que desencadeou uma corrente de aplausos à visita do Presidente dando a entender que se tratava de uma decisão tirada dos melhores manuais de boas práticas de uma sociedade. Foram até desenterrar teorias satânicas para justificarem tais hossanas. Mas, como o bem sempre vence, o prevaleceu o bom senso.
Ahhh, sim! Tenho medo desses assessores voluntários recém-convertidos que pululam por aqui. Esses académicos que fizeram pacto de não agressão com os seus próprios diplomas a troco de petisco. Esses nossos bradas que pensam que Filipe Nyusi é presidente só deles. Esses nossos contemporâneos que querem vender ingressos ao coração do Presidente Nyusi. Esses que assumiram que Nyusi é propriedade privada deles.
Hoje, Filipe Nyusi está aí no terreno abraçando, chorando e dando força pessoalmente ao seu povo. Está aí mostrando que, se enfrentou os mistérios de Satungira para negociar a paz com Dhlakama, pode também enfrentar os estragos do Idai. Está aí dizendo ao mundo que unidos venceremos. Está aí mostrando que pisa matope e lodo mesmo quando não é para pedir voto. E, de certeza, deve estar com a alma muito leve. E os sentinelas estão aqui com caras de picolho, carentes de ideias, mandando indirectas para si mesmos.
Ao Presidente Filipe Nyusi vão os meus parabéns pela sábia e humana decisão de interromper a visita (repito: uma visita que devia ter sido cancelada antes mesmo de iniciar). Nunca é tarde. Afinal, diria Jonathan Swift, uma pessoa nunca se deve envergonhar de ter errado, ou seja, nunca se deve envergonhar de ser mais sábio hoje do que era ontem. Somente quem nada faz nunca comete erros. Errar é humano. Todos nós humanos ainda viventes somos susceptíveis a errar a qualquer momento.
Aos académicos-cipaios sugiro que as vezes arranjem um tempinho para visitarem os seus cérebros lá no estômago onde deixaram. Vai que um dia descarregam com autoclismo sem se aperceberem.
- Co'licença!
É impressão minha ou é mesmo difícil convencer um investidor da área de processamento de frutas, por exemplo, a se instalar em Moçambique? Será que não existem indústrias de produção de sumos e polpas de frutas por aí interessadas em fazer negócio neste vasto e rico território? Não existem ou não há vontade política de apadrinhar esses investidores? Não dão boas comissões? (já que tudo funciona com comissões por aqui).
Em Dezembro, ananás apodreceu em Nicoadala. Há bem pouco tempo, em todo o país mangas apodreceram e agora já nem parece que já houve mangas aqui. Neste momento, abacate está a apodrecer em Mugulama, no Ile. Daqui a nada a vila da Maganja da Costa estará a cheirar à laranja podre. Quando você encontra, em Nacata, Malema, tomate sem compradores sendo levado para o lixo, é de partir o coração. Será que não é possível encontrar quem queira processar e conservar estas coisas?
Provavelmente eu sou das raríssimas pessoas que não está muito empolgada com a nova fábrica de cerveja construída em Marracuene. Não rendi nem um bocadinho. Nada contra!
Vão dizer que é bom porque dá emprego e paga impostos. Vão dizer que na Holanda, na Alemanha, na Rússia, etecetera, esse tipo de indústrias é assado ou frito e contribui com isto ou aquilo aos cofres do Estado. Mas eu não sei se isso vale a pena. É que eu acho que já andamos "piffs" o suficiente para estarmos a celebrar efusivamente a inauguração de mais uma indústria de álcool. Mas também porque acho que existem outras áreas importantes por investir que podem dar-nos empregos e contribuírem com impostos da mesma maneira.
Nada contra os que bebem. Até porque eu também bebo. Mas não sei se vale a pena a ideia de nos anestesiarmos ainda mais. Parece que, para uma sociedade normal e do bem, a demanda já supera de longe a procura. Ou seja, o que se oferece já é mais do que suficiente. É que fora essas indústrias inauguradas com pompa e circunstância também existem aquelas de bebidas-secas de alto teor alcoólico que funcionam sem nenhuma fiscalização do Estado e da sociedade.
Longe de mim querer me fazer passar por sentimentalista ou moralista de ocasião. Como disse, nada contra. Não quero misturar nada com nada, nem quero ser escolástico. Só acho que somos uma sociedade inerte. Uma sociedade de descaso com o bem colectivo. Não pode haver "unidade nacional" sem lucidez. Se estivéssemos no tempo colonial, não haveria a ideia de união e luta pela independência. Não há sobriedade para isso. Até parece que há quem tem medo que a nossa babalaza acabe. Parece que há quem nos quer assim. Parece que estamos a fazer agenda de alguém. Esta cena de um ministro confundir 14 com 400 é reflexo de um desequilíbrio colectivo voluntário do topo à base. Até o governo anda "djez".
Por fim, gostaria de lembrar que as zonas centro e norte estão a ser afectadas pela Lagarta do Funil do Milho (spodoptera frugiperda), uma praga que está a devastar culturas, principalmente milho, arroz e mapira. Camponeses estão a perder as suas machambas e vão perder ainda mais porque a broca ataca a planta em qualquer idade. É uma praga que vai levar algum tempo para erradicar. Precisamos de incrementar a assistência medicamentosa e técnica aos camponeses.
Dizem que a nova fábrica vai produzir cerveja também à base de milho de mais de mil agricultores de Catandica, distrito de Barué, em Manica. Em Nampula tem a Impala que também compra dos camponeses. Isso é muito bom (juro!). Mas temos para comer?
- Co'licença!
Com a aproximação do ciclone que paira sobre a região da Beira e que se vai estender território acima até à fronteira com o Zimbabwe, o Governo decretou um “alerta vermelho”. Isto significa que, devido à força devastadora que este temporal traz, aguardam-se vítimas humanas e destruição de infra-estruturas (habitações, escolas, armazéns, culturas etc ). De acordo com a Ministra da Administração Estatal, Carmelita Namashulua, o “alerta vermelho” serve para desencadear medidas de emergência para retirar as pessoas que vivem em áreas de risco e a mobilização de 18 milhões de Dólares para operações de ajuda humanitária.
A declaração deste alerta aconteceu na terça-feira mas de lá até aqui pouco se viu de acções de prevenção. As televisões (sobretudo a TVM) não estão a ser usadas para mobilizar a sociedade para a gravidade do problema. Não há evidências de acções de prevenção e parece que o dinheiro mobilizado vai apenas ser usado, sempre com desvios à mistura, a posteriori. Infelizmente, este é um quadro recorrente em Moçambique. Ao invés de se evitar a ferida, as autoridades preferem que ele aconteça para usá-la depois como um instrumento de mobilização de fundos, boa parte dos quais acaba nos bolsos sem fundos de meia duzia de chefes. Ou seja, o alerta vermelho não é accionado para se fazer a prevenção mas sim como um mecanismo de financiamento das redes de acumulação instaladas nos circuitos mais obscuros do sector de emergência em Moçambique.
No caso concreto da aproximação do ciclone IDAI não há evidências de que entidades municipais da Beira e Dondo, mas sobretudo o INGC e os governos distritais, estejam já a executar um plano preventivo para evitar a catástrofe que se avizinha a grande velocidade e que vai "bater" na Beira no início desta noite. Os hospitais e centros de saúde estão preparados para não terem falta de água e energia e pessoal em prontidão? Já foram identificados edifícios robustos (igrejas, escolas, o Pavilhão do Ferroviário, mesmo o aeroporto, etc ) para recolher pessoas das zonas mais vulneráveis e colocá-las onde haja condições minímas de sanidade (água, colchões, brinquedos para crianças, pesssoal para-médico)?
Quais serão os momentos de maior fustigação do ciclone - por exemplo: chuva intensa combinada com maré-cheia; zonas que as pessoas devem evitar circular; estradas que vão ser utilizadas para apoio de emergência (bombeiros, INGC) e que devem ser deixadas livres por outros condutores? Que precauções para evitar inundações caseiras? Há aconselhamentos para se cortem ramos de árvores que estejam sobre habitações e fios de energia eléctrica, etc?
Era fundamental que este tipo de alerta e dicas sobre o que as pessoas devem fazer antes do ciclone estivessem a passar em anúncios de rádio e televisão (a TVM está mais empenhada em passar anúncios de propaganda das realizações do Governo ao invés de dedicar uns minutos a preparar a sociedade para enfrentar um ciclone de tamanho impacto). Mas é sempre assim em Moçambique. Um ciclone, uma depressão tropical, ou mesmos as cheias, são sempre bem-vindas porque ajudam a mobilizar dinheiro dos doadores para encher o bolso das máfias corruptas dentro do Governo. Todo o resto é cantiga!