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BCI
sexta-feira, 05 novembro 2021 05:30

“É a vida, amigo. Quem não gosta de viver?”

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Corri com tralhas para entregar a um fulano que já estava com as malas prontas e as horas esgotadas para regressar a Maputo. Eram tralhas de saudades, de falta, de lágrimas que queria que ele ajeitasse-me na sua mala. Fiz tudo a correr, de modo que a caixinha de saudades fazia barulho como uma caneca num poço.

 

Arrastei tudo ao hotel onde se encontrava hospedado o fulano. O recepcionista, antes mesmo de cumprimenta-lo, desviou-me pelo indicador ao elevador. Era um tipo alto que tapava o bocal do telefone equilibrado ao ombro para fazer registos de datas num papel. “Reserva para o fim do ano, dois casais”. Tinha uma marca viva de aliança no dedo, talvez fosse divorciado, talvez a sua mulher tal como eu arrastou as malas e foi-se embora com um outro homem.

 

O quarto do fulano que partia estava no quarto andar. O elevador ressonou, dois alemães de cabeças plantadas no telhado do elevador, como futebolistas entoando hino nacional, ordenaram ao elevador que avançasse. Fiquei ali plantado e vendo pelos números, o elevador cavando sem parar o prédio: -1, -2, -3. De que ossos é feito a coluna dos elevadores, meu Deus?

 

Esperei pelo segundo corredor. As empregadas do hotel surgiam das pontas, como larvas, conduzindo gruas e camiões carregados de entulho de lençóis sujos e mantas com cheiro azedo dos turistas. As empregas surgiam com as mãos enterradas nos aventais e sobre os tapetes dos corredores não davam, levitavam sem nenhum ruído. O elevador novamente chegou a mim, arrastei as tralhas e entrei.

 

E no elevador estava o senhor ministro; ao seu colo estava deitada uma mulata, de cabeça murcha. De quando em quando, miavam-se palavras e o senhor ministro imigrava as mãos ao sutiã da mulata. Os beijos eram carregados de litros de saliva, dentro desses beijos era possível ouvir as suas línguas nadando como objectos afogados.

 

Era ele, o senhor ministro do meu país. A mulata, que tinhas as bochechas do rabo nas mãos do senhor ministro, a dado momento disse: “olha que o tempo já começou a contar aqui, querido”. E o senhor ministro ria-se sem parar e, quando parava, mexia o bolso e explodia mais um beijo na mulata. “Sabes que isso é meu trabalho, querido”, miava a mulata de mão estendida para receber as notas…

 

Chegamos ao sexto andar, puxei as tralhas, eles seguiam até ao nono. Baixei a máscara e disse no último segundo quando a porta do elevador juntava-se em jeito de beijo como eles: “bom proveito, senhor ministro da minha terra”. Dois minutos depois, quando tentava achar o quarto do fulano, vi o senhor ministro atrás de mim. “É o senhor jornalista, não é?”. E eu já sabia que o senhor ministro andava por cá, pois não tinha dado a cara no último conselho de ministros e sabia que o seu gabinete, em Maputo, andava selado.

 

O senhor ministro olhou-me como uma criança aflita num miolo de pão.

 

Molhou os lábios com o pincel da língua e novamente cuspiu-me na cara: “É o senhor jornalista, não é?”; depois fez um discurso longo e no fim tirou 200 euros e disse-me “é a vida, amigo. Quem não gosta de viver?”.

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