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terça-feira, 27 julho 2021 07:21

A única perfeição que reside em mim é o lugar onde nasci

Escrito por

- Armando Artur, em entrevista fictícia *

 

Armando Artur pode ser um homem taciturno, ele diz que é uma forma de defesa. Não é o tempo que conta na sua vida, mas a importância das coisas que faz. Foi na AEMO onde aprendeu a valorizar a amizade e a partilha. Não guarda ressentimentos, mesmo dos malucos que em algum momento lhe apedrejaram na vida, “eu também sou maluco”.

 

Acompanhe na íntegra a conversa mantida num final de tarde, na varanda da sua casa, lembrando o sol a esconder-se no esplendor dos Montes Namuli.

 

-Nasceste em Nauela num ano qualquer. Em 1982 chegas a Maputo com um pequeno bornal no regaço, ninguém te conhecia. O que é que te moveu para um lugar movediço e tão distante da tua terra?

 

- Você fala do bornal que eu trazia no regaço e faz me lembrar que bornal é uma saca usada pelos soldados, obreiros e itinerantes para transportar  provimentos ou mantimentos, mas a minha saca não tinha nada. Se calhar vim para aqui com a necessidade urgente de encher o coração e eu não sabia. Provavelmente aportei neste grande entreposto  como um pedaço desconhecido da cordilheira de Namuli, que já tinha as palavras a zumbirem em forma de poesia dentro de mim.

 

- O que é que te arrebatou em primeiro lugar ao desceres num lugar que não tinha nada a ver contigo?

 

- Eu era imberbe, deixei-me conquistar pelo fascínio de uma grande metrópole sempre sonhada na pacatez desse lugarejo onde minha mãe me deu à luz, na verdade todo o bulício de Maputo, o frenesim consubstanciado no ruído dos carros, as pessoas a quererem passar todas ao mesmo tempo, os grandes autocarros abarrotas com pessoas penduradas nas portas, tudo isso foi um choque profundo para um rapaz atrevido que apenas confiava na poesia.

 

- E confiava nos búzios também!

 

- Depois de retirares a carne desse molusco, a carrapaça do búzio assobia ao sibilar do vento, e na esteira dos médiuns torna-se uma verdadeira bússola, dependendo das mãos que a manipulam, mas os meus búzios são outros, são cada verso da poesia que vou cantando em vários sopros de meditação. Por vezes nas paródias.

 

- Depois foste parar a esse efervescente alfobre que é a Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO), onde te mantens até hoje como uma das pedras angulares. O que é que significou para ti entrar nesse clube restrito?

 

- Se eu sou uma das pedras angulares da AEMO, só pode ser no sentido de que sou um fragmento de uma rocha maior, com o risco de me precipitar e diluir-me no mar. A AEMO é um baluarte sagrado onde aprendi a arrumar as palavras que já trazia da cordilheira de Namuli. A AEMO é um depositário de tesouros, aqui abriu-se-me a luz que me fez perceber o valor da amizade e da partilha. Sinto-me lisonjeado por fazer parte desta orquestra esquisita, em que cada um toca a música dele sozinho, tentando atingir a perfeição e querendo profusamente que os outros escutem essa música.

 

- Já atingiste essa perfeição?

 

- Olha, como já te disse, nasci  em Nauela na província da Zambézia. É uma zona superabundante que faz parte dos Montes Namuli, abrange Gurúè onde se estende aquela exuberância toda das plantações de chá. Você olha para aquilo tudo e diz, que obra da natureza tão perfeita! Então, a única perfeição que reside em mim, é o lugar onde nasci.

 

- A propósito, há muita gente que vem das províncias de Moçambique, chega a Maputo e desumbilica-se completamente das suas origens. Como é que tem sido a tua relação com Nauela?

 

- Desumbilicar-me de Nauela seria abdicar da poesia, e abdicar da poesia é o mesmo que rejeitar a própria vida. Não me canso de repetir isso. Eu sou um dos grãos das poeiras da cordilheira de Namuli, mesmo que levite em escaparates reais e imaginários, de vez em quando tenho que ir para lá, poisar naquele chão para deste modo poder ressurgir e continuar a rugir fora das jaulas.

 

- Foste secretário-geral da AEMO durante dois mandatos. A tua consciência tranquiliza-te ao pensares no tempo que ficaste lá?

 

- Tranquiliza-me no sentido de que fiz tudo o que estava ao meu alcance para manter a família unida, e levar a agremiação a níveis de organização satisfatórios, claro com a colaboração de todos os confrades, cada um com a sua afinação. Mas o mais empolgante era eu dormir a pensar que no dia seguinte ia voltar ao bulício onde tudo era imprevisível, ir ao trabalho preparado para ser apedrejado sem mais nem menos por alguns malucos, alguns dos quais ainda sobrevivem, com roupa mais leve, sem a verve do veneno.

 

- Esses malucos deixaram-te alguns recalques?

 

- O poeta que me orienta é também um maluco que luta permanentemente pela paz, por isso não tenho como, mesmo que o quisesse, ter ressentimentos. Farto-me de rir quando me lembro desses momentos, com saudade.

 

- Você anda longe da vida pública, transformaste-te num taciturno, pareces ter medo de alguma coisa!

 

- Somos todos mutantes, o próprio mundo já não é o mesmo, nem a cordilheira de Namuli, como é que eu, uma pessoa tão pequenina, tão insiginificante perante esses gigantes não vou ter medo! Provavelmente seja um taciturno como tu o dizes, mas essa pode ser uma forma de defesa, pois perante uma vida absolutamente vituperada, a melhor coisa que podes fazer é ficar em  silêncio, no silêncio, deixar as palavras avançarem, como se elas fossem a tua jangada e tua muralha ao mesmo tempo. Mas também não é verdade que ande longe da vida pública, depende da lupa que usas para me focares.

 

- Trinta e cinco anos de carreira é um marco importante para um poeta, há muitas flores espalhadas no percurso, e espinhos que podem ficar encravados para sempre na alma, muitas frustrações, incongruências. Será que depois deste tempo todo você está em condições de embalar a troucha e dizer, deixem-me voltar a Nauela beber conhaque?

 

- (Risos). Não há conhaque em Nauela (Risos), mas tem muita cachaça que bebo sempre quando vou para lá. Bebo para renovar e fortificar a minha relação com os espíritos lómwè que me guiam. Quanto aos trinta e cinco anos, não é isso que me vai marcar, não é o tempo que me marca, é a forma como tenho vivido a vida até aqui, lançando palavras ao léu, muitas delas grafadas em livro como um monumento erigido em memória de mim. Isso é que conta, não o tempo que levei a juntar as pedras. De resto o que importa é não sermos vencidos.

 

- Mesmo assim como é que te sentes perante esta efeméride que é uma comemoração da tua vida?

 

- A emoção é maior ao ver o envolvimento dos meus confrades na minha homenagem, significa que eles dão-me valor, significa que sou importante para eles, mesmo sem o merecer, e eu não posso querer mais nada para além desse conforto espiritual. Eles não o fazem porque brilho, mas será com certeza por amor, ao qual agradeço sem parar. Choro quando penso nisso tudo.

 

* Entrevista publicada na antologia em homenagem aos 35 anos do poeta

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