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quarta-feira, 31 março 2021 06:29

A senhora e os mortos em Cabo Delgado

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O que mais queria neste instante era doar uma lágrima à senhora da televisão internacional que anuncia os mortos em Cabo Delgado. As suas pestanas dispersam-se quando pisca os olhos e voltam a unir, de imediato, como se quisessem varrer o peso da mágoa que sente. A mágoa nos olhos é pesada, basta reparar nos óculos dos idosos que gotejam e eles sempre recuperando-lhes com a isca do indicador. É uma senhora bonita que antes de sair de casa, passou o rímel, manchou-se as bochechas com pó de arroz e esqueceu-se de levar uma lágrima porque o editor do jornal não a avisou que ia anunciar os mortos em Cabo Delgado.

 

Vê-se nas suas íris uma pequena nódoa líquida, um pequeno coágulo salgado que se forma, mas aborta-se logo porque não pode chorar em frente à câmera, por não pode inundar o rodapé que empurre o alfabeto no seu peito.

 

Vejo os mortos em Cabo Delgado pela televisão internacional, porque as nossas televisões bailam sobre a derrota dos mambas; claro que o futebol é importante, mas não é tão importante como as vidas que são goleadas por balas em Cabo Delgado. Vá que não vá, os mambas foram derrotados e tiveram o pé fora da classificação e podem ainda revirar o jogo; e as populações que correm para as matas, em Palma, para pelo menos manter a cabeça na classificação do corpo? E os mambas ainda tiveram tempo de chorar quando o apito soou no campo, era bom que os de Cabo Delgado também chorassem, tirassem as camisas e abraçarem-se antes de serem despedaçados pelos terroristas. Era bom.

 

Vejam a senhora da nossa televisão que pisca o olhar para esconder a lágrima que transborda pela derrota dos mambas e vejam a senhora branca, da televisão internacional, que come a lágrima pelos mortos em Cabo Delgado.

 

Vejam pela televisão internacional o hotel distribuindo senhas de desespero aos estrangeiros, vejam o rodapé que corre e anuncia as populações que correm nas matas; vejam tudo isso, e vejam os mambas que mesmo assassinados pela derrota regressam ao hotel, arrumam-se nos quartos e lamentam por estar no rodapé da classificação. Em Cabo Delgado não há prolongamentos, não há cartão amarelo, não há cartão vermelho, não há fora de jogo, não há substituições. E se os terroristas, ao menos, entendessem o fora do jogo. Talvez, de tempos a tempos, podiam dizer: “não vale a pena tirar a cabeça daquela, está em fora de jogo” ou “não matem esse senhor, merece apenas um cartão amarelo”.

 

Claro que importam os pontos dos mambas, mas não há nenhum ponto capaz de recolocar o pingo de esperança que uma criança derrama nas matas de Palma, não há nenhuma esperança de qualificação para a fase de grupos de uma mãe que corre com o peito possuído de leite de um filho que esqueceu na mata. O que mais queria neste instante era doar uma lágrima à senhora da televisão internacional que anuncia os mortos em Cabo Delgado.

 

Vejam a câmera da televisão internacional que amplia as ruas de Palma, vejam as câmeras das nossas televisões que metem num ângulo o adepto que chora a bola perdida dos mambas; claro que tudo é importante. Que me dera parar a senhora da televisão, dizê-la que sou de Moçambique, pedir uma vassourinha para abrir-lhe um pequeno dreno no pó de arroz e colocá-la uma lágrima. Dizem-me as nossas televisões que John Magufuli morreu de insuficiência cardíaca e não entendo como as pessoas morrem em Cabo Delgado mesmo com botijas de gás.

 

Onde está a professora Reginalda, da quarta classe, que me mentiu; disse-me que o primeiro tiro contra o colonialismo foi dado em Cabo Delgado. É mentira, professora, o primeiro tiro vai ser dado pela senhora da televisão internacional quando a colocar uma lágrima, quando sobre a câmera a lágrima cair como se se curvasse aos mortos de Cabo Delgado. Não sei o nome da senhora da televisão internacional, mas gostava de colocá-la uma lágrima no olho; talvez no fim do jornal o meu nome subia com outras letras na ficha técnica como quem colocou a lágrima à senhora.

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