Os resultados preliminares das sextas eleições autárquicas de 2023 têm sido objecto de acesos debates públicos, de contestação de vária natureza, incluído a judicial, fundamentalmente, por via do contencioso eleitoral. Curiosamente, a legislação eleitoral é pouco conhecida e dominada até pelos magistrados e advogados que tratam desta matéria, para além de apresentar normas obscuras, ambíguas e que dão largo espaço para a prática da fraude eleitoral e de interpretações dúbias, senão atabalhoadas até por parte do órgão de soberania que se intitula de Instância Contenciosa Eleitoral Suprema.
As decisões judiciais sobre recursos com fundamento na prática de irregularidades e fraude eleitoral em determinadas autarquias como são os casos da Cidade de Maputo, da Cidade da Matola, da Cidade de Quelimane, Cidade de Nampula, Chókwè, Chiure, Gurué, Vilankulo, têm dividido a opinião pública, que questiona a justeza e integridade destas eleições, bem como a independência do judiciário, sobretudo face ao Partido no poder.
Ora, embora tenha havido sinais de alguma revolução judicial relativamente ao contencioso eleitoral, importa reflectir sobre o princípio da tutela jurisdicional efectiva dos direitos na realização da justiça eleitoral, bem como sobre casos de aplicação do exacerbado formalismo processual, mesmo em violação da Constituição da República de Moçambique (CRM).
A decisão judicial de improcedência ou não provimento de determinados recursos em primeira instância judicial eleitoral seja com o fundamento da não observância da regra ou requisito da impugnação prévia dos actos eleitorais, seja por falta de apresentação de documentos autênticos ou autenticados, merecem alguma análise atenciosa, considerando a vontade, predisposição e a liberdade do tribunal em proferir decisões justas, conscienciosas e no quadro da CRM. Embora aqui mencionado, a questão da denegação de apreciação do mérito da causa no contencioso eleitoral por falta de apresentação de documentos autenticados será objecto de reflexão específica em artigo autónomo e devidamente exaustivo, por mexer com o princípio da realização de julgamento justo (“Fair Trail”), fragilidades de investigação judicial e por apresentar sinais de um julgamento altamente parcial, em prejuízo da justiça eleitoral.
No que toca à exigência da observância do requisito da impugnação prévia vale a pena lembrar que a jurisprudência do Conselho Constitucional é clara e inequívoca ao considerar o mesmo requisito como inconstitucional por violação do direito de acesso à justiça e aos tribunais, bem como por ser contrária ao princípio da tutela jurisdicional efectiva dos direitos. Neste caso, a impugnação prévia para efeitos do contencioso eleitoral põe em causa a própria justiça eleitoral e o acesso aos tribunais eleitorais, contrariando, deste modo, o artigo 70, conjugado com a primeira parte do n.º 1 do artigo 62, os n.ºs 2 e 3 do artigos 56 e os n.ºs 1 e 2 do artigo 211, todos da CRM.
Artigo 62
1. O Estado garante o acesso dos cidadãos aos tribunais e garante aos arguidos o direito de defesa e o direito à assistência jurídica e patrocínio judiciário.
2. (...)
Artigo 69
(Direito de impugnação)
O cidadão pode impugnar os actos que violam os seus direitos estabelecidos na Constituição e nas leis.
Artigo 70
(Direito de recorrer aos tribunais)
O cidadão tem o direito de recorrer aos tribunais contra os actos que violem os seus direitos e interesses reconhecidos pela Constituição e pela lei.
Artigo 211
(Função jurisdicional)
- Os tribunais têm como objectivo garantir e reforçar a legalidade como factor da estabilidade jurídica, garantir o respeito pelas leis, assegurar os direitos e liberdades dos cidadãos, assim como interesses jurídicos dos diferentes órgãos e entidades com existência legal.
- Os tribunais penalizam as violações da legalidade e decidem pleitos de acordo com o estabelecido na lei.
- Podem ser definidos por lei mecanismos institucionais e processuais de articulação entre os tribunais e demais instâncias de composição de interesses e de resolução de conflitos.
Não existe fundamento constitucional que condiciona o recurso aos tribunais, no contexto do contencioso eleitoral, à observação de uma impugnação prévia nos órgãos da administração eleitoral ou qualquer outro órgão da Administração Pública. Aliás, essa norma sobre impugnação prévia representa o esforço desnecessário do legislador ordinário – Assembleia da República, em não garantir o acesso aos tribunais, neste caso a jurisdição eleitoral, nos termos da primeira parte do nº 1 do artigo 62 da Constituição, sob a epígrafe “Acesso aos Tribunais.”
Dúvidas não restam de que sobre a questão do requisito da impugnação prévia definida em legislação ordinária eleitoral, o Conselho Constitucional, em jurisprudência consolidada e fixa, entende que esse requisito não constitui fundamento bastante para denegação de acesso aos tribunais e à justiça.
Veja-se a título de exemplo, o Acórdão nº 06/CC/2016, de 23 de Novembro, através do qual o Conselho Constitucional declarou a inconstitucionalidade material da norma contida no nº 1 do artigo 33 da Lei nº 7/2014, de 28 de Fevereiro que regula os procedimentos atinentes ao processo administrativo Contencioso (Lei do Contencioso Administrativo), a qual determinava o seguinte: “Só é admissível recurso dos actos definitivos e executórios.”
Era uma espécie de impugnação prévia que pressupunha que um acto administrativo apenas fosse passível de impugnação contenciosa - recurso aos tribunais - se tivesse a característica ou natureza de acto administrativo definitivo e executório. Ou seja, no caso em que o acto administrativo já não fosse passível de recurso hierárquico, seja por ter sido praticado pelo último órgão na estrutura administrativa ou por ter sido praticado dentro da competência exclusiva do órgão administrativo. A Lei do Contencioso Administrativo exigia a exaustão dos meios administrativos graciosos, como requisito para o acto administrativo ser definitivo e executório e de modo a ser contenciosamente recorrível em sede dos tribunais.
Assim, o Conselho Constitucional declarou a inconstitucionalidade da regra de impugnação prévia expressa na supra mencionada norma da Lei do Contencioso Administrativo por entender que viola não só o direito de acesso aos tribunais e acesso à justiça constitucionalmente consagrados, mas também por limitar direitos, liberdades e garantias fundamentais nos termos não previstos na CRM.
No mesmo sentido, sobre a regra da impugnação prévia em processos laborais, veja-se o Acórdão nº 3/CC/2011, de 7 de Outubro referente ao Processo 02/CC/2011 em que o Conselho Constitucional declara a inconstitucionalidade concreta do artigo 184 da Lei nº 23/2007, de 1 de Agosto (Lei do Trabalho), por contrariar o artigo 70 da CRM sobre o acesso dos cidadãos aos tribunais proferida.
Mais ainda, veja-se o Acórdão n.º 8/CC/2015, de 24 de Setembro referente ao Processo n.º 05/CC/2014, através do qual o Conselho Constitucional declara a inconstitucionalidade material das normas contidas no artigo 7 (Princípio de exaustão dos meios graciosos) da Lei n.º 2/2004, de 21 de Janeiro e no artigo 52 ( Exaustão) da Lei n.º 2/2006, de 22 de Março, por contrariarem a norma do artigo 70, conjugada com a norma inscrita na primeira parte do n.º 1 do artigo 62, e ainda as normas contidas nos n.ºs 2 e 3 do artigo 56, nos n.ºs 1 e 2 do artigo 212, e n.º 3 do artigo 253, todos da Constituição da República de Moçambique.
Da jurisprudência supra mencionada do Conselho Constitucional, é fácil notar que o requisito da impugnação prévia como condição para se colocar mão ao contencioso eleitoral não é praticável no Direito Moçambicano. Aliás, resulta do disposto no artigo 213 da CRM que: “Nos feitos submetidos a julgamento, os tribunais não podem aplicar leis ou princípios que ofendam a Constituição.” Com efeito, caso essas normas ou princípios legais que ofendam à CRM sejam chamados à colação em determinado processo judicial eleitoral, o tribunal tem a prerrogativa de recusar a aplicação das mesmas, em respeito ao referido artigo 213 da CRM e remeter os autos ao Conselho Constitucional por força do estatuído na alínea a) d o n. º 1 d o a r t i g o 2 4 6 da CRM.
Importa lembrar que o instrumento jurídico primordial dos tribunais nos julgamentos dos casos é a CRM, de tal sorte que o n.º 4 do artigo 2 da mesma CRM determina que: “As normas constitucionais prevalecem sobre todas as restantes normas do ordenamento jurídico.” o que significa que nenhuma norma ordinária se sobrepõe à CRM e, como consequência, quaisquer limitações aos direitos e liberdades fundamentais, como é o caso do direito de recurso aos tribunais, do direito de impugnação e direito de acesso à justiça, devem estar em conformidade com o disposto no artigo 56 da Constituição.
Nesse prisma, é, pois, estranho, preocupante e assustador quando o tribunal judicial eleitoral oficiosamente, ou por livre iniciativa, aplica a regra da impugnação prévia que é contrária à CRM para se furtar ao julgamento do mérito da causa e violar o princípio da tutela jurisdicional efectiva dos direitos constitucionalmente consagrada. A função jurisdicional prevista no artigo 211 obriga o tribunal a assegurar os direitos e liberdades dos cidadãos, assim como os interesses jurídicos dos diferentes órgãos e entidades com existência legal.
No caso do contencioso eleitoral em curso, a prática da regra da impugnação prévia revela não só a falta de activismo judicial, mas, sobretudo, a intenção maléfica do juiz ou juíza em denegar o acesso à justiça eleitoral, bem como revela manifesto desprezo pela efectivação do princípio da função jurisdicional consagrada no artigo 211 da CRM.
O Conselho Constitucional ao ter firmado jurisprudência contra a regra da impugnação prévia como condição essencial para o acesso aos tribunais e à justiça, conforme supra demonstrado, não tem outra solução no caso vertente do contencioso eleitoral senão ser coerente à referida jurisprudência que é aqui de aplicação analógica.
Por: João Nhampossa
Human Rights Lawyer
Advogado e Defensor dos Direitos Humanos