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segunda-feira, 17 abril 2023 06:20

A reflexão do quadro duma sala de aulas

Edna Juga

Os pensamentos de um quadro de numa sala de aulas é muitas vezes ignorado. Geralmente, os quadros são somente utilizados como um vector de comunicação entre os professores e os alunos. Numa localidade situada no centro de uma cidade cosmopolitana havia um quadro especial. Ele tinha sido instalado numa escola primária de renome há cerca de 20 anos. Em sua superfície sobreviviam a memórias de personagens que em tempos foram brilhantes, assim como, dos que eram uns verdadeiros desastres. De longe, chegavam histórias do fracassos e êxitos das pessoas que estudaram e hoje marcavam a cidade com as suas acções.

 

Numa tarde de domingo, refletia o quadro falando com as carteiras da sala de aulas, que nos últimos 20 anos houve uma redução drástica na qualidade de professores e estudantes. O quadro estava muito ressentido e exigia reforma pelo facto de assistir um cenário de debilidade que se instalava diariamente. Num tom grosseiro vozeava:

 

- “Colegas, estou cansado de ver crianças malcriadas. Vêm a escola sem tomar-banho. Cheiram mal, não sabem nada e só passam a vida a brincar aqui na sala. E, esses professores sonolentos estão toda hora no WhatsApp. Na última sexta-feira, a menina de dois totós que é até bem comportadinha sofreu um bullying na aula… O grupo dos colegas mais dementes da turma roubaram o lanche dela, mandaram ela fazer o trabalho de casa para todos e ainda um outro obrigou-lhe a dar um beijinho na bochecha. Como isso é possível? A professora de disciplina em que o incidente ocorreu é uma frustrada na sua vida pessoal. Ela vem dar aulas duas vezes por semana. Não quer se meter no assunto para não seguir as consequências. Como uma típica inútil, em vez de dar castigar aos meninos, preferiu rebater na menina. A estratégia foi bem sucedida porque as crianças não pensam. Concluiram a seguir que a culpa era da Joana. Assim, enquanto chorava teve que escrever 100 vezes, eu sou a menina malcriada. Quase todos deram uma gargalhada farta excepto a Catarina. Esta outra menina é uma estranha. Representa uma das piores alunas na turma porém com um comportamento surpreendente.”

 

 

Naquele exacto momento, passava um duende jornalista que buscava um novo tópico para o seu jornal. Ao ouvir o discurso do quadro, infringiu as regras dos duendes ao expor-se. Dos seus auriculares, podia se ouvir a obra Erlkönig de Franz Schubert… Um forte excitação crescia em sua mente enquanto cantarolava “Den erlenkönig mit kron und schweif?”. Conseguia interligar o que acabará de ouvir do quadro com a obra musical. A verdade por detrás disso tudo, é que os duendes jornalistas davam de tudo para uma publicação que lhe permitisse concorrer a Pulitzer. Com a reconhecida graciosidade dos duendes, interveio:

 

-“Prezado Sr. Quadro, com estima oiço as suas legítimas reivindicações. Observei que tem muitas indagações para ser atendidas. De tudo o que falou, concedo-lhe a oportunidade de conversar com a Catarina amanhã no intervalo maior de lanche, às 10h. Serão criadas todas as condições para que possa falar sozinho com ela. Temos um pacto?”

 

O quadro meio desorientado ficou mudo levando o seu tempo a assimilar o que acabava de ouvir. Analisou que consequências teria um pacto. De tudo que já havia aprendido, os pactos sempre terminavam mal. Mas, o que mal pior sofreria comparado a aquela turma de crianças conduzidas por adultos indolentes? Com medo de acordar daquele sonho maravilhoso, saltou todas a perguntas condicionantes ao pacto. Sem dar azo a fundamentações, respondeu que sim e planificaram a ordem de eventos.

 

Na manhã seguinte, estava todas as crianças na escola. A famosa professora do incidente era quem iria substituir a professora daquela hora que estava nos falecimentos. Chegou às 09:30 na sala de aulas. Não precisou de dar desculpas ao atraso porque aquelas crianças não representavam nada. Estava muito feliz para se aborrecer com aqueles seres satânicos. No semestre que se aproximava ia começar a dar aulas numa escola privada. Muitos dos seus males iam terminar. Ainda estava a perguntar-se porque aquele jovem não lhe deu lugar no chapa. Quando pediu lugar ao jovem recebeu uma resposta típica de jovens sem respeito. Quase ria quando se viu refletida no jovem. Ao entrar na sala, sacudiu a roupa para aterrar-se no que devia fazer a seguir. Numa visão panorâmica, a maioria dos alunos estava lá fora a brincar e quase ninguém na sala. Com passos decididos, dirigiu-se ao pátio da escola, de forma autoritária mas com voz afinada, por causa da sala do director que estava bem próxima, gritou:

 

- “Meninos, por favor, para sala.”.

 

Nenhuma das crianças reagiu a chamada. A professora entrou numa crise de nervos. Não podia gritar o que as crianças mereciam ouvir. Para não chamar atenção sobre seu atraso, arrancou o ramo de uma árvore quase pelada de folhas, que respirava os seus últimos dias, apoquentada com os fungos que há muito tinha entranhado. Juntamente ao pau, pegou uma pedra no chão. Estudou o povoado de alunos, calculou a distância para lançar a pedra sem atingir ninguém. Lembra-se de sua proeza em caçar pássaros com fisga. Mesmo enferrujada na prática não falharia. Então com uma mão, lançou a pedra para uma placa metálica próximo dos estudantes. O som atraiu os para sua direcção. Com a outra mão, levantou o ramo recentemente arrancando fazendo sinal de porrada. De seguida, todos foram a correr para sala. Sabiam que aquela professora não era de promessa vagas. Iria distribuir um par de estalos a todos os estudantes menos as crias dos chefes dos quarteirões. Um deles era filho de uma curandeira bêbeda. Esta era uma mulher viúva frustrada pela noites mal passadas sem seu esposo. Por incrível que fosse, o seu filho era o único inteligente no grupo de elite. Tinha o mérito de ser bem sucedido por esforço próprio. A mãe costumava dizer ele não era filho dela por ser o mais escuro de todos na família. A sua inteligência favorecia a sua estadia na família. Em poucos anos, ele colocaria a família de volta a ribalta. Ninguém mas ninguém, no seu juízo normal ousava comentar os discursos da curandeira. Os últimos atrevidos deram de caras com as trevas.

 

Depois de entrarem todos na sala, a professora rapidamente passou uma vista de olhos para conferir se não era observada por alguém. Sorria consigo mesma ao pensar na justificativa que daria pelos meninos estarem lá fora, naquela hora. A seguir, atirou o pau no chão, sacudiu as mãos para livrar-se da areia e das ideias que lhe surgiam. Lembrava-se que devia fazer uma consulta a curandeira que tanto desprezava por ser um iletrada. Contudo, a velha desgraçada havia cumprido com as suas premonições.  Enquanto isso, o duende jornalista redactava os eventos. Faltavam cerca de 5 minutos para o intervalo maior. Sincronizava o seu relógio, para os momentos que se aproximavam. Fez um sinal para uma aranha que mostrava-se ansiosa para actuar. A missão era somente saltar para cabeça da Joana. Tratava-se de uma aranha da espécie Grammostola pulchra pertencente à família Theraphosidae. Embora venenosa sabia que só estava ali para brincar. O duende a faria desaparecer assim que o pânico se instala-se. O quadro estava meio arrependido por envolver a Joana. Gostava dela por ser inocente, delicada e dedicada. Entretanto, era a única medricas capaz de dar um berro que fizesse o show que precisava. A professora ainda não tinha começado a dar as aulas. Estava a verificar as últimas mensagens que entrava no seu WhatsApp. Escrevia a sua empregada para não preparar o almoço. Em paralelo, o duende fazia sinal para a aranha descer devagar. Esta ia descendo com precisão para permitir ser vista por todos. Na última fila da carteira na sala, Pedrito gritou em pânico e totalmente surpreso:

 

- “Prussoraaaa, ESTÁ A DESCER UMA ARANHA PARA A CABEÇA DE JOANA. Ei, Joana, Cuidadooooooo!”.

 

O Pedrito embora fizesse troça da Joana gostava muito dela desde a creche. Sem pensar, estava a tirar o sapato para bater na aranha. Em câmara lenta, a Joana olha para o tecto. Assiste o encontro da sua testa com a aranha. Nesse mesmo instante, os esfíncteres relaxaram deixando fluir as necessidades maiores e menores. A maioria das crianças saíram a correr, umas rir do cheiro das fezes outras a tremerem de medo. O Pedrito lançou a sapato valentemente para atingir a aranha. Mas, esta estava bem preparada, esquivou o sapato e desapareceu das vistas de forma triunfante. Um raro sentimento de piedade, surgiu na professora que pegou na menina no colo e levou a enfermeira da escola acompanhada pelo Pedrito que se tinha esquecido que devia fingir que não gostava da Joana. O plano traçado pelo duende surtiu o efeito desejado. Naquele momento, eram precisamente 10 horas. Estava o quadro diante da Catarina que estava profundamente indiferente ao que havia acontecido. O duende fazia sinal para que o quadro aproveitasse rapidamente o momento. Buscando a palavras mais apropriadas, o quadro perguntou num disparo a Catariana:

 

- “Menina Catarina, quem és tu?”

 

A Catarina olhou para o quadro com uma expressão que representava uma incógnita. O quadro, constrangido comentou:

 

-“ Menina Catariana, estou quase a reformar. Porém ainda não lhe compreendi direito. A menina é uma das mais preguiçosas da turma, tem muita baixa auto-estima mas consegue esquivar-se com destreza das implicações dos professores e das provocações dos colegas. Qual é o seu segredo?”

 

A palavra segredo encontrou ressonância em Catarina. Em fracção de segundos, ofereceu um sorriso assustador. Tinha uma cárie avançada que criava repugnação aquém lhe mirasse de perto. Em resposta, a Catarina disse:

 

Venho a escola por obrigação,

 

sento-me na sala de aula por castigo,

 

escrevo e leio mal porque não me interessa aprender,

 

a minha infelicidade é causada pelos meus pais que me impuseram vir a escola.

 

 

Durante a aula estou completamente distraída,

 

concentrada no que fiz antes ou no que farei depois,

 

gostaria de estar com a minha irmã mais velha a vender mafurra e gelo no quintal,

 

a minha infelicidade é causada pelos meus país que me impuseram vir a escola.”

 

Naquele instante, o relógio do duende marcava 10:07, um funcionário da escola aproximava-se para limpar a sala que se encontrava imunda. Não sobrava muito tempo para o quadro interagir com a Catarina. Esta por outro lado, tinha despertando de uma estado de hibernação mental. Pensava em silêncio “Eu falei com um quadro”. Saiu da sala a correr sorridente para contar a Joana que o quadro falava.

 

Passavam-se 10 minutos da 10 horas, o duende tirava as suas últimas notas. Colocou uma mão no bolso, jogou no ar um porção de compromisso. Levantou a mão para o quadro agradecendo o pacto. Nesse ínterim, o quadro desfazia-se em bocados. Libertava-se dos 20 anos de serviço a escola onde estudavam a Catarina, Joana e Pedrito. No seu último suspiro vislumbrou o futuro brilhante das três criaturas. Ficou comovido por ter influído na mudança de comportamento de Joana e o impacto que criaria depois de tornar-se presidente do país.

sexta-feira, 14 abril 2023 08:30

Decisão tomada, decisão por reflectir!

NandoMeneteNovo

Há pouco menos de seis meses recebi de um amigo um “save the date”. Há três meses o “save the date” foi materializado em forma de um convite para o casamento desse amigo a ter lugar no próximo dia 25 de Junho do ano em curso, por sinal o dia da independência. Curiosa data para um evento em que a independência das partes perde terreno.

 

Hoje o meu espanto: esta manhã, enquanto lia o matutino oficioso, recebi do mesmo amigo um outro convite. Na verdade uma convocatória para que participasse numa comissão multifamiliar de reflexão sobre a pertinência da realização ou não do seu casamento.  

 

Ainda atónico liguei para o dito amigo. Na conversa ele disse que ulteriores desenvolvimentos saberia na fundamentação da criação da comissão e que me enviaria em seguida os respectivos TORs (Termos de Referência).

 

Não tardou e em segundos caiu no meu “Whatsapp” os aguardados TORs. Na fundamentação dizia que a reflexão encontrava conforto jurídico no inovador procedimento legislativo-constitucional denominado “Decisão tomada, decisão por reflectir!” que serviu de base para a criação da Comissão de Reflexão sobre as Eleições Distritais (CRED).

 

Por coincidência, enquanto prosseguia com a leitura dos TORs, um outro convite de casamento, e de um outro amigo, aterrou no meu “Whatsapp”. Por cautela, e para não entrar em gastos antecipados, liguei para ele a perguntar se o evento já fora precedido da reflexão sobre a pertinência ou não da sua realização.

 

Assim já estou em duas comissões de reflexão. Isto parece que promete, incluindo a de jorrar renda extra com subsídios e senhas de reuniões.

terça-feira, 11 abril 2023 08:30

“Zeca Ruço” na TMCEL

NandoMeneteNovo

A recente indicação do Instituto de Gestão das Participações do Estado (IGEPE) para a tomada dos comandos de gestão directa da operadora telefónica Moçambique Telecom (TMCEL) lembra, pouco depois da independência, uma visita do Zeca Ruço ao Banco de Moçambique para inspecionar a caixa forte.

 

É do conhecimento que o IGEPE é o gestor das participações financeiras do Estado, assegurando as boas práticas de gestão e a assistência técnica necessária ao denominado sector empresarial do Estado.

 

A TMCEL é uma das empresas participadas pelo IGEPE. A TMCEL, fusão da TDM e a MCel, já teve os seus tempos áureos e hoje a passar por maus momentos a ponto de ser intervencionada e sob gestão directa do IGEPE. Na verdade, e caricato, o IGEPE não passa de uma entidade que também representa os grandes devedores da TMCEL, responsáveis, em parte, pela actual situação caótica da empresa.    

 

O Banco de Moçambique é o Banco central do país e teve como seu primeiro Vice-governador o advogado Carlos Adrião Rodrigues, um conhecido advogado da praça colonial, chamado para esta crónica a propósito da citação ao Zeca Ruço.  

 

O Zeca Ruço foi um famigerado fora-da-lei que nos finais da colonização aterrorizava a então Lourenço Marques e arredores e com alguma passagem pela África do Sul. Depois da independência fez parte dos quadros da segurança do Estado na sua qualidade de inspector da PIC, Polícia de Investigação Criminal. 

 

Adrião Rodrigues, conta numa crónica das suas memórias como Vice-governador do Banco de Moçambique de que o Zeca Ruço esteve no Banco a solicitar que inspecionasse a caixa forte. Porque o conhecia de outras lides, Adrião recusou tal pretensão. Contudo, por outra diligência, conforme conta Adrião na referida crónica, Zeca Ruço chegara a fazer a tal inspecção a caixa forte do Banco.

 

Deste episódio, em que um famigerado fora-da-lei visita formalmente a caixa forte do Banco central, ressalta-me a recente intervenção do IGEPE na TMCEL, ou seja: o próprio devedor ou representante dos devedores a tomar as rédeas do credor/TMCEL. Se a moda pega, teremos os bancos comerciais a confiar a gestão aos seus maiores devedores afim destes recuperarem a própria dívida que devem ao Banco.

 

Seja o que for, e para terminar, espero que esta passagem do IGEPE pela TMCEL seja tal como fora a do Zeca Ruço pela caixa forte do Banco de Moçambique: felizmente sem consequências para as divisas e ouro que naquele momento estavam na caixa forte do Banco de Moçambique.

terça-feira, 11 abril 2023 07:24

Tributo a José Catorze

MoisesMabundaNova3333

Há umas semanas, visitei o Salomão Moiane na sua propriedade em Taninga, a seu convite. O pretexto foi o canhu. Foi um meio dia inteiro de “papo e canhu”, das 11 da manhã até 19:30. Um dos momentos foi a passagem em revista do encontro profissional (mas não só) entre nós.

 

O nosso cruzamento dá-se no semanário Domingo, no distante ano de 1988! Entramos mais ou menos na mesma altura. Ambos vindos do… jornal Notícias! Ele entrara no Notícias vindo da AIM, onde trabalhou longos anos. Já era jornalista sênior e eu principiante.

 

Em 1988, o Domingo conheceu uma profunda “revolução”. Durante muitos anos, tinha um quadro editorial muito magro: Atanásio Dimas (Deus o tenha), como chefe; Augusto de Jesus, Albano Naroromele (Deus o tenha), Lourenço Jossias e Almiro Santos, como efectivos. O resto eram colaboradores. Basicamente, o jornal vivia de colaborações. Nesse ano, vê o seu quadro editorial reforçado, um pouco ampliado. Passou a contar mais com o Salomão Moiane, o Orlando Muchanga, Moisés Mabunda, pouco depois, com o Bento Baloi e… a equipa ficou bem forte!

 

E ali passou a haver uma grande competição profissional. Boa competição. Cada um procurava trazer a sua melhor reportagem. E isso era estimulado por um prêmio que a empresa tinha instituído: a melhor reportagem do mês era premiada monetariamente. Competimos, reportagem por reportagem; argumento por argumento. Aquilo era profissionalismo. Só tocava a viola quem tivesse unhas. E nisto trouxemos histórias e histórias do Moçambique real. O jornal teve mais vida.

 

Mas o “dream team” não duraria muito… o Dimas iria para a Presidência como adido, o Naroromele iria estudar a tempo inteiro, o Augusto de Jesus iria para o Zimbabwe. E dois, três anos depois, o próprio Moiane e o Lourenço Jossias deixariam o semanário. Foram uns cerca de quatro anitos intensíssimos… também porque o país estava a fermentar com a busca do fim da guerra dos 16 anos. Nalgum momento, neste período, o semanário Domingo chegou a ser um dos melhores jornais do país.

 

Mas ali cimentou-se também uma relação de alguma familiaridade, empatia e simpatia, de tal sorte que podemos cada um de nós estarmos onde estivermos, sempre procuramos saber um do outro. Ficou a irmandade entre nós - Salomão Moiane incluído!

 

Mas este texto nem é sobre o semanário Domingo, ou sobre o Salomão Moiane! É sobre o José Catorze!… Só os jornalistas mais antigos saberão quem é/foi este jornalista, grande cronista! Nos últimos tempos, 1987, 88, 89… por aí, assinava uma rubrica com o título”veredas”, onde passavam algumas das melhores crónicas que este país possui. Certa vez, viajou para na altura União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e ficou lá três meses. As crónicas que produziu foram o melhor material que me ajudou a compreender a perestroika e glasnot!

 

Vou parar no Domingo graças a José Catorze, que era, então, o director-geral das Sociedade Notícias! Cheguei à Redacção do Notícias vindo da Escola de Jornalismo, em Março de 1988. Mas minha vontade era ir para o semanário. Não levei dois meses sem meter a carta a Mário Ferro (Deus o tenha) para me deixar subir para onde eu      queria (a Redacção do Domingo está num andar acima da do Notícias). E o Ferro, então director-adjunto e chefe de Redacção, não estava a deixar-me ir, queria-me obviamente nos seus efectivos.

 

Um desses dias, cerrei os punhos e fui bater à porta do José Catorze. Mal tinha falado com ele antes. Expliquei-lhe o que se passava. Sem protocolo nenhum, mandou a secretária procurar a carta do Moisés Mabunda. Tendo-a encontrado, trouxe-a e o Catorze despachou-a ali mesmo favoravelmente. E fui dar ao Domingo. Escusado será dizer que o chefe da Redacção não gostou nada do assunto, mandou-me chamar e deu-me uma palestra de nunca acabar! Segundo ele, eu não iria evoluir num semanário, precisava de estar onde escrevesse todos os dias…

 

Ainda que concordasse com o argumento dele, no fundo eu estava a agradecer fervorosamente ao José Catorze.

 

Mas a minha gratidão para com o Catorze não se fica por me ter autorizado a transferir-me do Notícias para o Domingo em 1988. Já no semanário, em 1989, surge em mim a vontade e determinação de continuar com os estudos na Universidade Eduardo Mondlane. Eis que meto a carta ao então meu chefe. E a resposta nunca mais vinha… vendo o prazo de inscrições na UEM quase a esfumar-se, cerro de novo os punhos e vou bater à porta do… José Catorze! Meu chefe dizia que o director-geral ainda não tinha despachado, então fui confrontar o búfalo pelos chifres!

 

Afinal, a carta ainda não tinha chegado. O Catorze, ali mesmo, diante de mim e da secretária que acabava de lhe jurar a pés juntos que não havia tal carta, pegou no telefone interno, ligou para o meu chefe e instruiu-lhe que mandasse o documento naquele mesmo instante… uma vez mais, despachou-o nos meus olhos. Favoravelmente!

 

Estou eternamente grato a JOSÉ CATORZE. Primeiro, por me ter autorizado a ir para o jornal dos meus sonhos - e creio que não decepcionei nem a ele, nem a mim mesmo, nem à sociedade em geral. Segundo, por me ter autorizado a continuar com os estudos! Não tivesse ele me autorizado, não sei que caminho teria seguido minha vida.

 

Esteja onde estiver o José Catorze - depois que cessou de director-geral da Sociedade Notícias, nunca mais ouvi dele -, aqui fica o meu tributo a este homem que tomou decisões que tiveram grandioso impacto na minha vida!

 

ME Mabunda

terça-feira, 11 abril 2023 07:22

Já não se fazem bolos de sura

AlexandreChauqueNova

Os bolos de sura que se faziam aqui eram únicos. De entre os temperos que podiam ser incorporados havia o cardamomo, leve aromatizante que conquistava os paladares mais delicados. Todo o carinho das mãos era convocado no confecionamento desse alimento delicioso que faz parte da nossa culinária e da nossa cultura. Nem era preciso dar-lhe uma pitada de manteiga depois de pronto para o chá como muitos gostam, os bolos de sura por si só, quando feitos com esmero, cumprindo com todos os requisitos recomedados, serão uma iguaria irresistível.

 

Hoje já não se fazem bolos de sura como se fazia antigamente. Dói dizer isto mas é a verdade. Há-os em todo o lado, nos mercados e nas ruas e nas praças. Nas paragens dos autocarros de longo curso os jovens vão a correr com sacos de plástico nas mãos gritando “bolos de sura, bolos de sura”, e os passageiros compram, muitos deles não para comer ao longo da viagem, mas para presentear aos que os esperam no destino, sem saberem que o produto adquirido é falso.

 

O que temos sentido é que a oferta que nos fazem é constituída por massa de trigo, água, açucar e uma leverina qualquer para o bolo “levantar”. De sura não há nada na maioria das vezes, nem cheiro dela, então estamos a ser enganados. Porém, ainda aparece um e outro que nos vende os verdadeiros bolos de sura, mas essa qualidade, regra geral, consegue-se quando o confecionamento é feito por encomenda. O resto é uma burla, salvo raríssimas excepções.

 

O problema é que todos querem vender qualquer coisa, mas os bolos de sura não podem ser qualquer coisa, são peças especiais da nossa existência como bitongas. Então porquê que nos enganam? Se calhar algumas  pessoas que hoje fazem isso nunca saborearam um produto bem feito como se fazia nos tempos. Ser calhar pensam que o bolo de sura é assim mesmo como eles fazem, sem a dose adequada da seiva e sem os temperos dos quais se destaca o cardamomo e a erva doce. Seja como for, estamos perante um cenário triste, que se pode explicar pela necessidade urgente de sobrevivência num panorama de dolorosa pobreza.

 

É como as badjias, já não são as mesmas daquele tempo. As que se vendem por aí, em particular na cidade de Inhambane, não levam cebola em folhas verdes, nem piri-piri. Não têm cheiro, mas os jovens devoram-nas com gula, sem saberem que a verdadeira badjia carece de condimentos que farão dela um petisco da primeira linha. E é com muita saudade e pena que estejamos hoje sem a possibilidade de desfrutarmos de uma boa badjia, em  Inhambane já não tem essa qualidade, nem nas badjias, nem nos bolos de sura (excepto em raríssimas excepções).

 

Mas esta questão faz-se lembrar um episódio em que digo a um perdreiro que construía um muro de vedação: “mestre, não acha que aqui há um pequeno desalinhamento?”. E ele respondeu-me: amigo, o que é que não está desalinhado neste país?

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