Os anos passam, mas as anomalias continuam de “pedra” e “cal”. Os direitos das comunidades, onde estão implantados os projectos da indústria extractiva (carvão, petróleo e gás), continuam longe de serem respeitados. Quem assim atesta é o relatório sobre os Direitos Humanos em Moçambique referente ao período de 2018 a 2019, da chancela da Ordem dos Advogados de Moçambique (OAM).
A situação dos direitos humanos, no contexto da indústria extractiva, não mereceu outra avaliação, senão a negativa. Pesou, refere o relatório, o facto de, no período em alusão, terem-se verificado a violação dos direitos das comunidades, expressos pelo incumprimento dos planos de reassentamento, falhas na implementação de medidas de responsabilidade social e corporativa e, ainda, a falta da transparência e má gestão da taxa de 2.75% a que elas têm direito.
“Os indicadores de resultado da situação de direitos humanos, no contexto da indústria extractiva, são negativos, devido à recorrente violação dos direitos humanos das comunidades em resultado do incumprimento dos planos de reassentamento, falhas na implementação de medidas de responsabilidade social corporativa, bem como à falta de transparência e má gestão da taxa de 2,75% a que as comunidades têm direito”, sentencia o extenso relatório.
No ano de 2018, anota o relatório, não havia conhecido qualquer desfecho o litígio judicial referente ao processo de reassentamento de 289 famílias afectadas pelas actividades da concessionária JINDAL Mozambique Lda., cujo início remota ao ano de 2011 e, ainda, a zanga das comunidades em torno do processo de reassentamento nos projectos de LNG em Palma (escolha dos locais de reassentamento incompatíveis com os hábitos de subsistência das comunidades).
Aponta, igualmente, que na concessão da Montepuez Ruby Mining a comunidade, em 2019, continuava a reclamar a construção de um cemitério, a construção de uma estrada para a vila-sede e a emissão de Direitos de Uso e Aproveitamento de Terras nas zonas de reassentamento.
No rol das “anomalias”, consta também a mineradora Kenmare. No caso desta, diz o documento, acções de responsabilidade social e o envolvimento participativo da comunidade em algumas etapas do projecto registavam falhas, em 2019. As comunidades teimavam em reclamar a abertura de mais furos de água, distribuição de sementes, câmara frigorífica comunitária e a atribuição de talhões às famílias afectadas pela expansão do projecto.
No entanto, o documento que temos vindo a citar destaca que os casos insofismáveis se registaram na província de Tete, região centro país, onde todas as concessionárias não cumpriram integralmente as obrigações constantes do Regulamento de Reassentamentos, aprovado pelo decreto no 3172012 de 08 de Agosto.
No conjunto das anormalidades detectadas destacam-se: “lentidão e consequente falta de conclusão dos processos de reassentamentos, falta de qualidade das infra-estruturas comunitárias e defeitos de construção das casas atribuídas às famílias reassentadas, falta de pagamento de compensações devidas e pouca transparência na aplicação da taxa de 2,75% do imposto de produção das concessionárias e imputação dos custos de reassentamento às comunidades”.
Na província de Tete, até à altura da elaboração do relatório, são mencionadas três mineradoras: a International Coal Ventures Private Limited (ICVL), Vale Moçambique e a JINDAL.
À ICVL é-lhe apontada, por exemplo, a atribuição de terrenos agrícolas cheios de pedras às comunidades; Insuficiência de abastecimento de água potável em Mualadzi; e, ainda, a falta de pagamento de algumas indemnizações aos reassentados de Mualadzi, por perda de culturas em conformidade com a lei.
Para o caso da Vele-Moçambique, o documento aponta a “falta de planos anuais de responsabilidade social e empresarial das partes interessadas; falta de projectos de empoderamento financeiro das comunidades reassentadas para mitigar a perda dos meios naturais de produção; e falta de auscultação dos líderes comunitários e membros das comunidades para mapear as reclamações e inquietações”.
Por seu turno, a JINDAL é citada pela fraca divulgação dos planos de reassentamento às partes afectadas e interessadas; insuficiência de bebedouros para pasto em Nhamtua, e, ainda, “a alegada cobrança de 40 mil Mts para o desbravamento das metas na abertura de machambas”.
No que respeita à canalização dos 2.75% às comunidades, destaca-se, logo à partida, a falta de transparência no processo. Citando dados do Tribunal Administrativo (TA), o documento anota que o Ministério da Economia e Finanças, liderado por Adriano Maleiane, transferiu apenas 24.49.880,00 Mts às comunidades dos distritos de Govuro, Inhassoro, Montepuez e Moatize, ao invés de 42.081.356,82 Mts a que tinham direito, no quadro da aplicação da taxa de 2,75% sobre a receita da produção mineira e petrolífera cobrada.
O relatório da OAM aponta haver discrepâncias no valor que foi encaminhado aos distritos, pelo Ministério da Economia e Finanças e reforça que o actual modelo de partilha dos dividendos decorrentes da exploração dos recursos naturais não é transparente tanto ao nível da determinação do volume da receita, tal como a nível da gestão dos fundos no distrito.
“Portanto, os dados apurados pelo Tribunal Administrativo indicam haver problemas, à partida, no valor canalizado pelo Ministério da Economia e Finanças para os distritos. Em segundo lugar, concordando com o CIP, o processo actual de partilha de receitas em Moçambique não é transparente tanto a nível da determinação do volume de receitas, bem como a nível da gestão dos fundos no distrito. O modelo actual não distingue as transferências de receitas para as comunidades (os 2,75%), das transferências do Orçamento do Estado para os Governos Distritais”, anota o documento.
E o que deve ser melhorado?
É na necessidade da revisão da legislação, de modo a reforçar os direitos das comunidades afectadas pela exploração destes recursos naturais, que assenta a recomendação do relatório da OAM.
Considera premente a correcção de aspectos que abrem espaço para a violação dos direitos das comunidades, a começar pela proibição do início de qualquer actividade mineira ou petrolífera antes de se completar o processo de reassentamento (comunidades), a clarificação do papel do Governo no processo (negociador e ao mesmo guardião dos direitos das comunidades – uma situação de conflito de interesses). Aqui, sugere o Relatório, devem ser admitidas entidades independentes no processo dos reassentamentos, como o Ministério Público, enquanto guardião da legalidade, representado em todo o território nacional.
O documento que temos vindo a citar refere ainda que “a legislação deve, igualmente, diferenciar os direitos individuais das pessoas afectadas pelos reassentamentos e a co-titularidade de direitos comunitários. O regime actual sobrepõe a vontade da comunidade à vontade individual dos proprietários dos bens afectados pelos reassentamentos, o que é uma violação do artigo 248 da CRM [Constituição da República]. É preciso alinhar o regime dos reassentamentos com o regime da expropriação estabelecido no regime do ordenamento territorial”. (Ilódio Bata)