Depois do Juiz João Guilherme, agora é o colectivo de juízes da 2ª Secção Criminal do Tribunal Judicial da Cidade de Maputo. Em decisão datada de 10 de Julho corrente, os magistrados decidiram não alterar “no espírito” e “na letra” a decisão da absolvição do economista Carlos Nuno Castel-Branco e do jornalista e editor do mediaFAX, Fernando Mbanze, dos crimes de difamação, calúnia e injúria contra o ex-Presidente da República, Armando Guebuza. Castel-Branco e Fernando Mbanze tinham já sido ilibados dos crimes em Setembro de 2015 pela 4ª Secção do Tribunal Judicial do Distrito de KamPhumo, em sentença da lavra de João Guilherme.
Mas não é sobre a manutenção da decisão da primeira instância que recai o realce. Salta à vista, sim, o safanão a toda e qualquer tentativa de coarctar o direito do cidadão de manifestar livremente as suas ideias, opiniões e pensamentos, sem medo de retaliação ou censura.
Na sua decisão, os Juízes Desembargadores Adérito Malhope, Fernando Bila, Dimas Marôa e Natércia Barata defenderam que a liberdade de expressão é um direito constitucionalmente consagrado, não encontrando, ainda que ténue, no texto de Carlos Nuno Castel-Branco qualquer difamação, injúria e nem calúnia contra Armando Guebuza.
Ter opinião contrária sobre as políticas adoptadas pelo governo do dia ou uma abordagem crítica às posições do Chefe do Estado não deve, referem os juízes, num Estado de Direito Democrático, onde se privilegia a liberdade de opinião e pensamento, ser confundido como se de injúria, calúnia ou difamação se tratasse.
Tudo quanto fez Carlos Nuno Castel-Branco, em seu post mais tarde publicado no jornal mediaFAX, vincaram os juízes, foi emitir a sua opinião sobre a governação, ressalvando que os servidores públicos estão, invariavelmente, sujeitos ao escrutínio dos cidadãos, sendo perfeitamente expectável um posicionamento discordante.
“A liberdade de expressão deve prevalecer sobre a pretensão da defesa da honra e consideração pelo bem da sociedade e do Estado de Direito Democrático”, anotam os magistrados judiciais.
Em matéria de liberdade de expressão, é de realçar que a história recente do país guarda registo de casos de cidadãos que foram violentados ou até mortos, pura e simplesmente, por terem ousado emitir a sua opinião em prol da edificação do Estado de Direito Democrático. O constitucionalista franco-moçambicano, Gilles Cistac, o académico José Jaime Macuane e o Jurista Ericino de Salema fazem parte da extensa lista dos indivíduos que pagaram com a vida ou sentiram na pele as consequências de emitir opinião contrária à ideologia dominante.
Organizações internacionais, nos seus extensos relatórios, têm destacado que Moçambique se tornou num país onde as liberdades fundamentais dos cidadãos são, sistematicamente, colocadas em causa.
O acórdão da 2ª Secção Criminal do Tribunal de Recurso da Cidade Maputo resulta do recurso interposto pelo Ministério Público (MP), precisamente por não concordar com a decisão de primeira instância. O MP considerou, à data, que as referências feitas por Castel-Branco no seu post são “atentatórias à honra e consideração devidas ao Presidente da República, comparando este alto magistrado a fascistas e ditadores como Mussolini, Franco, Pinochet, Mobutu etc.”.
Carlos Nuno Castel-Branco e Fernando Mbanze foram acusados, pronunciados e julgados pela prática dos crimes de difamação, calúnia e injúria contra o ex-presidente da República, Armando Guebuza, previstos e punidos nos termos do disposto no artigo 22 da lei no 19/91, de 16 de Agosto, conjugado com os artigos 407 e 410, ambos do Código Penal do crime de abuso de liberdade de imprensa. E por não terem ficado provados os crimes de que vinham acusados, a acusação foi julgada improcedente e, seguidamente, absolvidos.
O texto de Carlos Nuno Castel-Branco foi publicado na edição no 5420 do Jornal mediaFAX, de 05 de Novembro de 2013.
Juízes desmontam argumentos do MP
“Senhor Presidente você está fora do controlo”
“Com todo o respeito ao Ministério Público, neste particular, discordamos do seu douto posicionamento, mas, em sentido oposto, concordamos com o Juiz de primeira instância na sua decisão sobre esta questão. Num Estado de Direito Democrático, com a liberdade de expressão consagrada na Magna Carta, as asserções críticas do recorrente, transcritas nos presentes autos, não podem, de forma alguma, consubstanciar os crimes de difamação e calúnia”.
Dizem mais: “o Presidente da República administra a coisa pública em nome do povo moçambicano, traça os rumos da vida sócio-económica e financeira do país. Das suas decisões pode resultar a fortuna ou a miséria do povo ou contribuinte. Neste prisma, é susceptível que a sua actuação desperte as mais diversas emoções de aprovação e de reprovação, de aprovação e de ódio visceral. É fruto do ofício. É o peso da responsabilidade e do poder”.
“A limitação do direito de expressão, sob condão da tutela dos direitos pessoais de honra e bom nome, comprometeria a soberania do próprio Estado de Direito Democrático, pois, o direito à livre expressão é um meio necessário à sua subsistência e ao controlo da actividade política. O calor do apaixonante debate político exacerba os ânimos e mais se tratando de análise do desempenho do presidente da República”.
“Dizer que o Presidente da República está fora do seu controlo de modo algum deve ser interpretado como significando que o Presidente sofre de anomalia psíquica como refere o Ministério Público. Não há sinonímia entre ambos axiomas, configurando o significado que o Ministério Público pretende dar uma interpretação ‘o jus puniendi’”,
“Gastou mandato inteiro a inventar insultos (…)”
“Mais uma vez, o MP não tem a mínima razão. Esta é, pois, mais uma afirmação que se enquadra no direito constitucional de liberdade de expressão. O cidadão tem direito constitucionalmente consagrado de pensar e expressar-se (...). Interpretar a forma de governação do presidente da República como resvalando em insulto para os que têm ideias sobre os problemas de que o país sofre não pode, de forma alguma, consubstanciar crime de difamação, de calúnia ou de injúria”.
Concluir que a expressão “pretender fascização completa do Estado significa afirmar que o Presidente da República é fascista, é forçoso”
“Como muito bem discorre o Meritíssimo Juiz do Tribunal recorrido, esta referência não passa de uma ‘mera opinião do réu sobre a governação do Presidente… não sindicável judicialmente. Não há, pois, crime na expressão do recorrente Carlos Nuno Castel-Branco”.
“Estado rodeado por lambe-botas que lhe mentem todos os dias…”
“Não achamos, igualmente, ilícito criminal algum na frase. Esta é uma crítica perspicaz, que pode deixar qualquer pessoa insatisfeita, irritada, inconformada ou mal-humorada, nas expressões de Juiz de primeira instância. Sugerir que o Presidente da República se contenta com relatórios dos ‘lambe-botas’ a as lambidas não podem constituir crime em contexto político”.
“Insultar os cidadãos que apontam os problemas e acusar os pobres de serem preguiçosos e de não quererem deixar de ser pobres”
“É igualmente uma mera opinião do articulista, ora recorrente. Há-de ser, certamente, uma interpretação do discurso do Presidente da República e, até, uma interpretação distorcida deste discurso, mas está no direito dos cidadãos a análise crítica do discurso presidencial. Não há e nem pode haver crime nesta actuação própria do Estado de Direito Democrático”.
“Nomear ou aceitar a nomeação de um criminoso condenado a prisão maior para comandante de uma das forças policiais do centro do país”
“Como muito bem decidiu o recorrido, o Ministério Público não cuidou de verificar e demonstrar se tal nomeado foi ou não condenado a pena de prisão maior, sabendo-se que os órgãos de comunicação social teriam noticiado na época que um ‘comandante das forças policiais especiais no teatro das operações das chamadas hostilidades políticas na região centro do país foi condenado… a pena prisão maior”.
“Como doutamente refere a sentença recorrida… ‘sendo o Presidente da República o garante da Constituição… e sabendo-se que, em termos legais, só a pronúncia por infracção a que cabe pena maior tem implicações a nível do estatuto ou qualidade do funcionário público, é expectável que o cidadão, qualquer que seja, se lhe reconheça o direito de questionar e de criticar’ uma nomeação com aquelas características”.
“Apropriar-se de toda a riqueza”
“Relativamente ao excerto, sabendo-se que o Presidente da República de então, além das suas funções presidenciais já tinha uma vida empresarial (órgãos de comunicação social sempre o referiram e parece que o próprio Chefe do Estado nunca esconde) é aceitável que os cidadãos questionem a sua riqueza. Está no direito dos cidadãos discutirem a fortuna de quem governa e, aliás, com o propósito de evitar situações de acumulação de riqueza à custa de cargos políticos (...)”.
“Dividir os moçambicanos em termos raciais e étnicos, regionais e tribais, religiosos e políticos… não merecer representar o país nem liderar o seu povo”
“Trata-se de uma opinião pessoal do articulista, ora recorrente, Castel-Branco. É uma crítica ao Presidente da República, com a qual se pode concordar ou discordar. No nosso país, a problemática das desigualdades regionais, em termos económicos, sociais, de formação, de oportunidades, etc., tem sido uma discussão sensível e recorrente. Nada há de criminalmente censurável nestas passagens da lavra do articulista”.
“Ter comparado o Presidente da República a fascistas e ditadores…”
“… como sustenta o Juiz do Tribunal recorrido, tudo depende da interpretação que se atribuir a tal referência. O Ministério Público não fixa a sua interpretação relativa a esta passagem do contexto do réu. Comparar o Presidente da República àquelas sinistras figuras da história da humanidade não significa, necessariamente, que se esteja a dizer que este é assassino ou sanguinário”.
“Reúna os seus patos e saia, enquanto ainda há portas abertas para sair e tempo para caminhar…”
“Mais uma passagem que se enquadra perfeitamente no direito constitucional de liberdade de expressão. O Presidente da República, pela sua mais alta posição na direcção do Estado, está exposto à crítica. Convidar um Presidente da República a renunciar por se entender não estar em condições de conduzir correctamente os destinos do país é normal em todo o mundo. A referência aos patos não passa de um ‘adereço de ocasião’ (furtando expressão usada pelo meritíssimo juiz do tribunal recorrido). Sem que este jornal esteja a assumir isto como verdade, é consabido que o Presidente da República de então, Armando Guebuza, foi associado à criação de patos”. (Carta)