Director: Marcelo Mosse

Maputo -

Actualizado de Segunda a Sexta

BCI
terça-feira, 21 junho 2022 07:21

O suplício de Tântalo das PMEs da CTA, escreve António Souto*

Assisti com interesse ao webinar e debate organizado no dia 20 de Junho pela CTA e BAD, tendo por foco o corredor Pemba-Lichinga e também, de modo geral, as oportunidades e desafios que se colocam ao sector privado para beneficiar dos programas que estão a ser concebidos para desenvolver aquela região do país.

 

Uma parte significativa das intervenções focaram-se nas dificuldades em fazer chegar às PMEs recursos financeiros em condições de impactarem positivamente no desenvolvimento e consolidação das PMEs e na sua capacidade de reproduzirem mais investimentos geradores de empregos nas zonas rurais. A maior parte das intervenções que abordaram o tema do financiamento discutiram os obstáculos e ideias de como fazer com que os bancos repassem às empresas elegíveis (filiadas na CTA?) os fundos doados a Moçambique.

 

Nesta troca de ideias houve quem tivesse a franqueza de sublinhar que desde há décadas se assiste a este tipo de projectos mas, no final, quem fica com o dinheiro e os ganhos são os bancos comerciais. Não foi dito de forma explicita, mas, para quem está minimamente informado, entendeu algumas referências subtis ao facto de existirem dezenas de milhões de dólares ou euros disponibilizados para financiar investimentos em MPMEs, mas que estão ou ficam longamente estacionados nas contas de bancos comerciais, garantindo a sua liquidez e os seus lucros.

 

O representante do BAD teve a franqueza de partilhar alguns detalhes sobre as discussões e constatações relativas aos riscos de instituições paraestatais assumirem o protagonismo na alocação desses fundos. Como que em resposta e porque “para bom entendedor meia palavra basta” também houve quem no debate recordasse que o sistema financeiro não é apenas constituído por bancos comerciais privados, nem só por instituições financeiras estatais dependentes das agendas políticas de altos funcionários públicos. Em contraponto a este choro quase colectivo, foram dados exemplos de como através de uma instituição financeira público-privada, como o é a Gapi-Sociedade de Investimentos, há exemplos de PMEs que acederam a financiamento em Meticais a taxas de 10% ao ano ou por períodos compatíveis com o ciclo de investimentos cujo cash flow positivo só surge após mais de 7 anos.

 

Porque é que estes debates com as preocupações e ideias neles expostas se repetem tal como o suplício de Tântalo: o dinheiro para o sector privado de pequena escala está como a água para o rei mitológico excomungado que morria de sede - "Tão perto [da água ou do dinheiro] mas, ainda assim e sempre, inacessível"?

 

Enquanto os decisores destes programas não entenderem a complexidade do sistema financeiro e as especificidades dos diferentes tipos de instituições que o compõem, o suplício do sector privado de pequena escala repetir-se-á ad eternum. Por razões que aqui não vem ao caso, fizeram os nossos governantes (e não só) acreditar que os bancos comerciais são a única realidade para disponibilizar financiamento às PMEs ou, alternativamente, que seja o aparelho de Estado ou alguns ministérios a fazê-lo. Surgiram assim milhões para a chamada iniciativa de bancarização e outros tantos milhões para os “7bis” ou suas novas versões. O que mudou? Vários intervenientes, tanto neste como noutros debates, referem-se à falta de rigor e seriedade na publicidade destes programas governamentais.

 

Nesta cega e falsa alternância já vimos de tudo. As empresas do sector produtivo, entram em falência, mas os bancos comerciais acumulam lucros; dezenas de milhões de dólares desaparecem do Tesouro público, a pretexto de financiamento a PMEs que rarissimamente recebem ou aplicam produtivamente esses recursos, mas há decisores públicos a vários níveis gerindo esses programas estatais que acumulam riqueza. Os que têm lidado com os procedimentos para acesso e uso dos recursos geridos pela maioria das instituições paraestatais sabem bem do que estou a falar. Numa palavra: a corrupção é hoje um fenómeno endémico no nosso aparelho de Estado.

 

São inúmeros os estudos concluindo que o papel dos bancos estatais e/ou de instituições financeiras paraestatais a alocarem financiamento para negócios privados só é realizável num contexto de boa governação onde há um sistema robusto de “checks and balances”. Os nossos media e tribunais continuam a revelar-nos semana a semana que estamos longe (ou cada vez mais longe) desse conceito institucional.

 

Afinal, neste webinar da CTA, tal como noutros fóruns similares e recentes, continuamos apenas a discutir problemas antigos que persistem.

 

Contudo, há mais de três décadas que os fundadores da Gapi formularam uma proposta institucional: o modelo possível e necessário em Moçambique é o de uma entidade especializada na concepção, implementação e gestão de programas e respectivos fundos e que seja motivada pelo sucesso dos beneficiários, satisfação dos financiadores e assegure a sua própria sustentabilidade mostrando-se resiliente, particularmente face aos ciclos políticos e às crises financeiras. Neste modelo o sucesso institucional não depende da dimensão da taxa de juros cobrada às empresas beneficiárias, mas sim do sucesso dos beneficiários.

 

Por isso, i) esta instituição não é banco, mas financia as PMEs não com o risco inerente à aplicação de meios provenientes de depósitos do público e sim com recursos estruturados para tomarem boa parte dos riscos dessas operações; ii) dada a fragilidade dos potenciais beneficiários, combina financiamento com oferta de competências técnicas na gestão de negócios; iii) face à diversidade da procura, especificidades sectoriais e regionais num território extenso e desprovido de infraestruturas e de instituições o seu portfólio de competências tem de incluir a capacidade de apoiar o surgimento de outras instituições que complementam e diversifiquem a oferta dos seus serviços; iv) a proteção da própria instituição contra interferências políticas e/ou interesses particulares tem de ser assegurada através da combinação de uma estrutura acionista equilibrada e envolvendo entidades públicas, privadas e da sociedade civil. 

 

Outros elementos deste modelo continuam a ser incorporados face à natural dinâmica da conjuntura política, económica e social de Moçambique. A Gapi adotou este modelo que vigora há mais de três décadas e tem recebido a aprovação e adesão da parte de algumas instituições de cooperação multilateral e bilateral. No seu curriculum assegura há anos um rating A+ por parte da Associação Africana das Instituições Financeiras de Desenvolvimento devido, em particular, à qualidade da governação e transparência na gestão dos fundos que intermedeia para fazer surgir sector privado produtivo e gerador de emprego. 

 

O que falta nestes debates e neste País para se perceber e se assegurar que o nosso sector das PMEs não tem de continuar a sofrer do suplício de Tântalo?

 

*Economista

Sir Motors

Ler 2315 vezes