Numa madrugada de final de semana, caminhava desinteressado com um grupo de amigos quando um pouco depois da esquina das avenidas Eduardo Mondlane e a Tomás Nduda, na direção norte e junto a uma árvore, deparamos, na escuridão, com um casal (comercial) em plena intimidade. Diante da nossa interpelação, o interpelado pediu que o deixássemos acabar o processo, que depois tomaria tempo para se pronunciar.
Na TV, acabo de ouvir algo parecido. Da boca do ex-presidente da República, Joaquim Chissano, ouvi que ele falará sobre o “11 de Outubro” logo que o Conselho Constitucional se pronunciar sobre a validação dos resultados anunciados pela Comissão Nacional de Eleições. Uma posição que até que faz jus ao seu estilo de governação presidencial, tendo, por isso, sido apelidado de “deixa-andar”.
Estes dois casos, lembram o que um dia dissera o então e falecido presidente norte-americano, Ronald Reagan, sobre a política e a prostituição: "… a política é a segunda profissão mais antiga, e eu percebi nos últimos anos que ela tem uma grande semelhança com a primeira”
Nos dois casos, o “deixa-andar” e o “deixa-…”, e diante de flagrantes acontecimentos na esfera pública, a semelhança da resposta é gritante: ambos -os interpelados - remetem os respectivos pronunciamentos para o fim do jogo.
“A política, Seu Dirceu!”. Já ensinara o perfeito Odorico Paraguaçu, da novela brasileira “O Bem-Amado”, quando questionado - pelo seu secretário, Dirceu Borboleta - sobre a ética e a moral das suas ações.
Nando Menete publica às segundas-feiras
É um dos indicativos da sabedoria. Significa que o silêncio dá-te a prerrogativa de ouvir os outros sem que os respondas. Necessariamente. Mas os próprios juízes, imbutidos nas togas, tremem perante o silêncio dos réus que vão enfrentar as câmaras de cianeto sem vocalizar. Deixando nas mãos do tempo e da razão, os infalíveis e verdadeiros julgamentos.
O silêncio pode ser a báscula inesperada, que vai libertar da terra os terramotos do fim do mundo e deixar tudo por conta da correnteza que já existia antes de todas as paisagens. É por isso que mesmo os maiores rios do mundo não têm ondas, porém residem neles os largatos aquáticos mais tenebrosos, que vão matar os leões na toca das profundezas.
Nelson Mandela já dizia: “cuidado com o tigre das massas populares!” E essas palavras serão o sino que reboa em toda a amplitude. Então, depois desse sábio aviso, virão as verrumas incubadas pelo silêncio durante este tempo todo em que as feridas doíam para dentro e mantinham-se vivas.
O silêncio não tem pressa, mas é alagado de demora, e quando já não aguenta mais, move para baixo os montes e as montanhas de pedra, e tira todas as lanças e lança-as no espaço onde os gritos e os gemidos dos diabos, serão ouvidos na mesa dos faustosos banquetes. Regados de sangue.
Foi num dia de silêncio que a Voz do próprio Jehová dos Exércitos, vibrou na sarsa e disse a Moisés, “Vai ao Egipto libertar os meus filhos, das masmorras de Faraó!” E Moisés foi, mesmo tremendo com o cajado na mão.
O tigre das massas populares será fecundo. Virá das comportas do silêncio doloroso de anos e anos em que o sol teimava em não sair do esconderijo das nuvens. Mas tudo isso é mentira, “por mais longa que seja a noite, a verdade é que vai amanhecer!”.
O silêncio é metamorfo. Depois do sofrimento, ele transforma-se em canções de revolta que vão ecoar nas ruas pejadas de armas e balas e cães, e quando isso acontecer, significa que já ninguém vai parar este sismo que começará no crepúsculo da liberdade, com jovens entregando o peito aos fuzis e gritanto: Liberdade! Liberdade!
Cuidado com o tigre das massas populares! A longa espera já terminou, e agora é tempo de rebentar as grilhetas, lutando sem pólvora, mas com as azagaias contidas nas estrofes da paz que o povo canta nas ruas e nos subúrbios sombrios onde a fome e a nudez, serão a poesia da povo.
E os jovens erguem-se da catapulta ora amordaçada ao longo dos anos, e com eles nasce um novo amanhecer para que todos desfrutem do maná inesgotável, pronto a colocar mesa posta em todos os lares.
O silêncio é um sismo. “Cuidado com o tigre das massas populares!”
Em jeito de homenagem ao Comandante Abel Chambal (1962-2023)
Em 1992, quando da assinatura do acordo de paz, uma outra paz – a paz da alma – já habitava nos corações de familiares e amigos, em festas e casas de pasto da cidade, e não só, com o singelo contributo de Abel da Conceição Chambal, El Comandante.
No cockpit do DC-10 ou de um Boeing da companhia de bandeira, no regresso de mais uma jornada no exterior, cada uma das suas aterragens, as “manteigadas” conforme, carinhosamente, as tratava, eram também aterragens de paz. Uma paz que vinha com uma chique estampa de uma loja de música, algures pelo mundo fora.
Há dias, uma manhã de domingo, as notícias do seu estado de saúde não eram as melhores, a prece fora como ele ensinara: ouvindo música. Foram perto de três horas intensas de “Sons do Cockpit” culminadas num repentino silêncio, por conta de uma possível reclamação da vizinhança.
Não tardara. A porta bate. Era a vizinha, totalmente tomada e com a alma preenchida de saudades de boa música. “Toca outra vez, vizinho”. Do som do pedido, a confissão de que se rendera aos sons que, no fundo, vinham do cockpit sob as rédeas do Comandante Abel Chambal.
Ainda há dias, um grupo de amigos, com génese fraterna nos “Sons do Cockpit”, combinara arranjar um momento com o Abel Chambal. Na verdade, um pretexto para reconhecer quem trouxera a única, a efectiva e definitiva paz - a “ Paz da Alma” – simbolizada na eterna assinatura das capas dos seus CD’s: a indelével Benta&Abel.
Das últimas lembranças, fora as do quotidiano de proximidade, a da sua preocupação com a mãe pátria, de que tanto amava e dera por ela, incluindo intervenções críticas sobre o seu rumo, ora turbulento, quanto fora, também, os seus últimos dias em leito hospitalar.
No corpo da mensagem de que “Perdemos o Abel” na noite do dia 29 de Outubro, uma ténue marca de água da decolagem de um vôo com destino ao reino dos céus e com a inscrição de baptismo: “Paz da Alma”.
Hoje, na cadência de “Sons do Cockpit”, o aceno derradeiro para a aeronave “Paz da Alma”, que parte para o além, sob as rédeas do seu eterno Comandante, Abel da Conceição Chambal, o piloto-mor do bom ouvido musical de muitos, dentre próximos, distantes e anónimos, que, seguramente, perdurará na descendência de cada um.
Saravá, Abel Chambal!
Nando Menete
Maputo, 02 de Novembro de 2023
Nota: Abel da Conceição Chambal (1962-2023), Piloto, fora um Comandante por excelência e cumpriu com 12.300 horas de vôo e cerca de 6500 aterragens.
Nos recentes acórdãos do Conselho Constitucional (CC) relativamente ao contencioso eleitoral atinente às sextas eleições autárquicas de 11 de Outubro de 2023, este órgão de soberania diz, de forma expressa e equívoca, ter competência exclusiva para invalidar os resultados das eleições em Moçambique, entanto que Instância Contenciosa Eleitoral Suprema.
Em bom rigor, trata-se de alegada competência exclusiva do CC em razão da matéria e da hierarquia, excluindo-se assim, nessa competência, os tribunais judiciais eleitorais, conforme se depreende, a título de exemplo, do Acórdão n.º 15/CC/2023 de 23 de Outubro referente ao Processo n.º 26/CC/2023 – Recurso Eleitoral, em que é Recorrente a Comissão Distrital de Eleições de Chókwè e Recorrido – o Tribunal Judicial Distrital de Chókwè.
O CC alicerça a sua posição nos termos do disposto na alínea d) do n.º 2 do artigo 243 da Constituição da República de Moçambique (CRM), a qual determina que cabe ao Conselho Constitucional: “apreciar, em última instância, os recursos e reclamações eleitorais, validar e proclamar os resultados eleitorais nos termos da lei.” (O sublinhado é nosso).
Da supracitada norma constitucional não resulta claro e inequívoco que o CC tenha competência exclusiva para validar ou invalidar os resultados eleitorais em Moçambique, senão em última instância. O que significa que há possibilidade legal de apreciação de casos de ilegalidades que relevam para a nulidade ou invalidação dos resultados eleitorais pelos tribunais judiciais, em primeira instância. Aliás, parece que essa alegada competência exclusiva do CC tampouco resulta de qualquer norma em legislação eleitoral ordinária em vigor.
O CC teria competência exclusiva se, por exemplo, a norma constitucional supra mencionada estipulasse que cabe ao CC apreciar como instância única ou primeira e última instância a validação/invalidação dos resultados eleitorais nos termos da lei.
As competências do CC não se presumem, resultam, expressa e inequivocamente, da lei. Neste contexto, vale a pena notar que, da norma constitucional supra mencionada, não é possível perceber, senão por presunção forçada, essa competência exclusiva de validar ou invalidar as eleições que o CC alega ter nos seus acórdãos relativamente aos recursos eleitorais das decisões dos tribunais judiciais de distrito, como é o caso do acórdão acima indicado do Tribunal Judicial Distrital de Chókwè.
No mesmo sentido de não se atribuir qualquer competência exclusiva ao CC para validar ou invalidar os resultados de uma eleição em Moçambique nos termos na alínea d) do n.º 2 do artigo 243 da CRM; a norma contida no n.º 1 do artigo 144 da Lei n.º 14/2018 de 18 de Novembro, que altera e republica a Lei n.º 7/2018, de 3 de Agosto (Lei Eleitoral), não confere competência exclusiva em razão da matéria e da hierarquia ao CC sobre a validação ou invalidação dos processos eleitorais no ordenamento jurídico moçambicana.
Ora, o n.º 1 do artigo 144 da Lei Eleitoral estabelece o seguinte:
“A votação em qualquer mesa da assembleia de voto e a votação em toda a área da autarquia local só são julgadas nulas, desde que se haja verificado ilegalidades que possam influir substancialmente no resultado geral da eleição.” Como é fácil compreender, também desta norma não resulta que o CC é órgão que tem a competência exclusiva para a declaração da invalidade das eleições por nulidade.
Pelo contrário, a competência para julgar nulo o processo de votação, em sede do contencioso eleitoral, é dos tribunais judiciais de distrito em primeira instância e do CC em última instância nos termos da lei. Igualmente, não resulta do n.º 1 do artigo 144 da Lei Eleitoral que somente o CC tem a competência de verificar que as ilegalidades praticadas possam influir substancialmente no resultado geral da eleição.
Nenhuma norma da legislação eleitoral em vigor veda a possibilidade de recursos aos tribunais de primeira instância relativamente às irregularidades eleitorais assacadas durante a eleição. Se assim é, os tribunais judiciais exercem completamente a função jurisdicional sobre os casos que lhes são apresentados, penalizando as violações da legalidade, garantindo o respeito pelas leis, assegurando os direitos e liberdades dos cidadãos, assim como os interesses jurídicos dos diferentes órgãos e entidades com existência legal, conforme dispõem os n.º 1 e 2 do artigo 211 da CRM.
A função jurisdicional dos tribunais eleitorais de primeira instância sobre as irregularidades, ilegalidades ou fraudes eleitorais não se limita a uma função de correio no sentido de apenas remeter o caso à apreciação do CC. Mas com a obrigação do processo ser interposto, primeiramente, em sede dos tribunais judiciais, como primeira instância.
Essa pretensão mostra-se juridicamente incoerente de tal maneira que se estivesse consagrada a referida competência exclusiva não haveria necessidade de se recorrer aos tribunais de primeira instância para se chegar ao CC e nem é de se chamar à colação a questão de impugnação prévia, considerando, por hipótese, verdadeira a alegada competência exclusiva do CC. Os recursos seriam directamente interpostos no CC sem passar por qualquer órgão eleitoral a nível gracioso ou judicial, o que não é o caso.
Mais do que isso, é que as decisões dos tribunais judiciais em matéria do contencioso eleitoral jamais transitariam em julgado mesmo que não fossem objecto de recurso para o CC. O que representa uma contradição ao princípio do caso julgado na teoria geral do Direito Processual ou do Direito do Contencioso, quando verificados os requisitos para o efeito, como é o caso de caducidade do direito de recurso da decisão judicial.
Do acima exposto, a primeira conclusão é que não se percebe onde o CC foi buscar fundamento para a sua alegada competência exclusiva, em detrimento dos tribunais judiciais de primeira instância, em matéria de invalidação dos resultados dos processos eleitorais se tal competência não resulta da CRM e nem da Lei Eleitoral. O CC procura, erroneamente, dar a entender que essa competência exclusiva resulta do disposto na alínea d) do n.º 2 do artigo 243 da CRM, o que não é verdade, até porque a única forma de chegar a essa conclusão é por uma forçada presunção, mas as competências do CC não se presumem.
A segunda conclusão é que o Acórdão n.º 15/CC/2023 de 23 de Outubro referente ao Processo n.º 26/CC/2023 – Recurso Eleitoral e outros de conteúdo similar, no que concerne à referida competência exclusiva do CC, violam o princípio constitucional da função jurisdicional dos tribunais prevista no artigo 211 da CRM.
A terceira conclusão é que os acórdãos do CC em referência sobre a invalidade ou nulidades dos resultados das eleições banalizam a função dos tribunais judiciais eleitorais e não esclarecem em que situação e como se pode recorrer ao CC para apreciar e declarar a invalidade das eleições por prática de ilegalidades ou fraudes eleitorais se de qualquer modo o CC vai se pronunciar em processo próprio independentemente de qualquer recurso para o CC.
Por João Nhampossa
Human Rights Lawyer
Advogado e Defensor dos Direitos Humanos