Os bolos de sura que se faziam aqui eram únicos. De entre os temperos que podiam ser incorporados havia o cardamomo, leve aromatizante que conquistava os paladares mais delicados. Todo o carinho das mãos era convocado no confecionamento desse alimento delicioso que faz parte da nossa culinária e da nossa cultura. Nem era preciso dar-lhe uma pitada de manteiga depois de pronto para o chá como muitos gostam, os bolos de sura por si só, quando feitos com esmero, cumprindo com todos os requisitos recomedados, serão uma iguaria irresistível.
Hoje já não se fazem bolos de sura como se fazia antigamente. Dói dizer isto mas é a verdade. Há-os em todo o lado, nos mercados e nas ruas e nas praças. Nas paragens dos autocarros de longo curso os jovens vão a correr com sacos de plástico nas mãos gritando “bolos de sura, bolos de sura”, e os passageiros compram, muitos deles não para comer ao longo da viagem, mas para presentear aos que os esperam no destino, sem saberem que o produto adquirido é falso.
O que temos sentido é que a oferta que nos fazem é constituída por massa de trigo, água, açucar e uma leverina qualquer para o bolo “levantar”. De sura não há nada na maioria das vezes, nem cheiro dela, então estamos a ser enganados. Porém, ainda aparece um e outro que nos vende os verdadeiros bolos de sura, mas essa qualidade, regra geral, consegue-se quando o confecionamento é feito por encomenda. O resto é uma burla, salvo raríssimas excepções.
O problema é que todos querem vender qualquer coisa, mas os bolos de sura não podem ser qualquer coisa, são peças especiais da nossa existência como bitongas. Então porquê que nos enganam? Se calhar algumas pessoas que hoje fazem isso nunca saborearam um produto bem feito como se fazia nos tempos. Ser calhar pensam que o bolo de sura é assim mesmo como eles fazem, sem a dose adequada da seiva e sem os temperos dos quais se destaca o cardamomo e a erva doce. Seja como for, estamos perante um cenário triste, que se pode explicar pela necessidade urgente de sobrevivência num panorama de dolorosa pobreza.
É como as badjias, já não são as mesmas daquele tempo. As que se vendem por aí, em particular na cidade de Inhambane, não levam cebola em folhas verdes, nem piri-piri. Não têm cheiro, mas os jovens devoram-nas com gula, sem saberem que a verdadeira badjia carece de condimentos que farão dela um petisco da primeira linha. E é com muita saudade e pena que estejamos hoje sem a possibilidade de desfrutarmos de uma boa badjia, em Inhambane já não tem essa qualidade, nem nas badjias, nem nos bolos de sura (excepto em raríssimas excepções).
Mas esta questão faz-se lembrar um episódio em que digo a um perdreiro que construía um muro de vedação: “mestre, não acha que aqui há um pequeno desalinhamento?”. E ele respondeu-me: amigo, o que é que não está desalinhado neste país?
Enquanto lá fora a chuva cai em liberdade, tamborilando por sobre as chapas de zinco, Mwali está absorta em pensamentos que a levam aos tempos em que, com o marido, partilhava a vida intensa que ressurgia em cada precalço, trazendo mais labaredas de fogo ao amor dos dois, como se tudo o mais não importasse. Ela está deitada de costas por debaixo dos lençóis que a cobrem até à cintura, com as pernas flectidas, na enorme cama que agora, após o companheiro ter morrido enquanto dormia, depois da esbórnia, perdeu o conforto. Toda a casa está despojada de graça, até o relógio de pêndulo, dependurado na parede da sala já não a diz nada, quem dava valor ao tempo e às horas da Mwali era Mbata que, terminadas as caminhadas que fez na terra, deu o último suspiro numa madrugada de domingo abraçado à mulher que dormia profundamente como ele.
Chove desde a noite e já são nove da manhã. Os céus paráram de ribombar nos seus insuperáveis sons, mas a chuva não! Chove intermitentemente ora em silêncio, ora em rajadas, despertando na mulher as lindas lembranças da cumplicidade com o companheiro, que se tornam muito mais lindas hoje, mesmo estando sòzinha sem o homem que dava todo o sentido à sua vida. Mas se esta – diz Mwali apertando no peito o livro aberto – é a minha história, então deixa-me vivê-la no cume, onde o meu marido gostava de estar comigo. Recuso-me a desvanecer pois, se assim o fizesse, estaria a espetar a lança da dor na alma do Mbata, que será para sempre o meu baluarte.
Mbata era um bom homem, muito embora fosse negligente no que diz respeito aos cuidados com a sua saúde. Fumava de forma inveterada, e provavelmente terá sido ele mesmo a influenciar a mulher a enveredar por esse vício. Mwali fuma demais. Muito demais, e quando está em órbita no eixo do fumo e da bebida, liberta as palavras em cascata para uma plateia constituída quase sempre pelas mesmas pessoas, que a escutam com avidez nas barracas espalhadas pelo bairro Chalambe onde mora, palavras eivadas de poesia, assim como falava o marido, sempre pronto a meter flores mesmo naquilo que parecia um vaso partido, sem condições de preservar a humidade. Só assim, pintando as palavras com as cores da imaginação, como ele próprio dizia à companheira, é que vale a pena conversar. Se não fizeres isso, não é conversa. É demagogia.
Mwali ficou com esses ensinamentos de uma pessoa que partiu sem lhe deixar filhos, Não importa, Mbata passou-me, como testemunho, a imensa luz do candelabro que ele era, e será para sempre. Estes livros todos arrumados meticolosamente na estante, e outros encaixotados, embora nunca os tenha lido, sinto-os como se os tivesse devorado. Conheço a história contida de cada um deles, tornei-me uma fonte que não pára de borbulhar água fresca para o leito dos rios, mas na verdade essa fonte foi construída dentro de mim pelo meu marido. Ele lia, e a única pessoa que tinha de imediato para contar todo o enredo, era eu, sem ele saber que estava fazendo de mim um fiel depositário da sua doce loucura. É esse, o elo mais forte que me prendia ao Mbata.
*Excerto do livro “Mwali”, de Alexandre Chaúque, no prelo
“Roubei” este título ao Areosa Pena, cronista de proa irresistível de ler em todos os momentos. Passam décadas após a sua morte, mas o cheiro da lavra deste personagem de ascendência judia, vai continuar a gotejar na memória em determinadas circunstâncias da vida, como nos dias em que o vento sopra com intensidade e os barcos não podem fazer a travessia entre Inhambane Maxixe, deixando por terra, consequentemente, a necessidade urgente das pessoas chegarem aos seus destinos.
Se houvesse a ponte teríamos maior fluidez de tráfego, os ventos não seriam condicionante, mas nunca será redundante dizer isso embora haja quem pense de forma diferente. Quer dizer, a cidade de Inhambane é um lugar particular, é uma península, tornando-se portanto a única capital provincial de Moçambique por onde não se passa. À esta urbe só se chega e se sai da mesma porta. Daí a pacatez, o silêncio que alguns inergúmenos teimam em vituperar com estúpidos decibéis em todos os bairros, perante a incapacidade das autoridades municipais e dos próprios líderes comunitários.
Então, se houvesse a ponte a cidade seria escangalhada, diferentemente do pensamento de Areosa Pena que defendia essa infraestrurura. Ou seja, o movimento de viaturas e pessoas iria crescer sem controle, matando toda a calmia dos tempos. Mesmo assim há aqueles que dizem que a economia da cidade ganharia outra dinâmica, uma pujança que nunca teve. Há outros ainda que vão pela linha de que Inhambane como cidade não tem mercado para grandes esfervescências, uma postura que nem a construção da ponte mudaria.
Se os próprios moradores da Maxixe e negociantes locais nunca se interessaram por Inhambane, não serão os grandes emperesários que rasgam a EN1 em demanda de outras províncias para fazer dinheiro, que irão desviar suas atenções para uma cidade sonolenta, é perca de tempo. A ponte se calhar vai beneficiar a pequenos comerciantes e reduzir o sofrimento das pessoas sobretudo em dias de mau tempo. De resto pode ser um gigantesco investimento com poucas possibilidades de retorno.
O governo provincial de Inhambane já ensaiou em tempos um projecto de construção desta infraestrutura que merece debate. Até porque chegou a haver uma aproximação a empresários chineses nesse sentido, cujos resultados não são conhecidos. E enquanto não se toma alguma decisão, permanece o dilema: é viável a construção da ponte Inhambane-Maxixe?
Mas isto será uma grande facada. No peito daqueles que ergueram habitações e outras infraestruturas ao longo do trajecto de uma linha que sai da cidade de Inhambane até Inharrime, percorrendo quase cem quilómetros. Lembra-nos os elefantes que voltarão pelo mesmo carreiro nas suas errâncias, destruindo aldeias inteiras construidas no lugar de “dono”, neste caso dos paquidermes. Os rios também são assim, voltam sempre depois da estiagem.
É como neste processo, a linha férrea foi desmantelada há mais de dez anos, e os carris – de aço – foram transportados em camiões de grande tonelagem seguindo outros destinos, deixando um vão que foi vorazmente ocupado pela população e gente graúda, com conhecimento das estruturas administrativas e municipais. Ou seja, o comboio que circulava exercia mais um trabalho social do que propriamente lucrativo, era benéfico para o povo. E hoje o apito que nos animava já não apita mais.
As próprias locomotivas e carruagens e vagões e zorras foram levados, e os hangares tornaram-se fantasmagóricos. Pelo menos deixaram uma “máquina” que vai servir como amostra de que aqui houve um movimento de comboios a vapor. Então, já ninguém contava que um dia os Caminhos de Ferro voltariam a precisar do seu caminho, como os elefantes e os rios, tanto mais que a Escola Ferroviária, que formava quadros moçambicanos e de outros países dos PALOP, tinha sido alocada em aluguer à Universidade Eduardo Mondlane (UEM). Funcionava aqui a Escola Superior de Hotelaria e Turismo.
Os Caminhos de Ferro já estão a reinstalar a Escola. Reabilitaram o edifício, a UEM teve que procurar outro espaço. Porém, vai faltar o restabelecimento da linha férrea e por onde vai passar esta via há casas, muitas delas sólidas e autorizadas e os CFM não têm nenhuma resposabilidade se forem chamadas as indemnizações. As pessoas já foram notificadas e o que se espera não será mais do que muito sofrimento e muita dor.
Há um mercado inteiro instalado ao longo da linha, num determinado troço, o chamado mercado da Mafurreira, com centenas de vendedores, maioritariamente mulheres, que estão a tremer perante os ventos que sopram. Pode ser que venham a ser movimentadas, mas será uma profunda dor de cabeça. Espera-se um caos social se não houver um bom tratamento deste caso, respeitando os direitos de pessoas que podem ter sido induzidas pelas emoções e desconhecimento. E depois empurradas pelas próprias estruturas administrativas e municipais.
A esperança de regresso do comboio é ténue, todavia há outras máquinas de circulação necessárias para a aprendizagem dos formandos e tudo indica que está-se numa faze crucial. Sendo assim, os carris deverão voltar aos seus lugares. Com consequências dolorosas para aqueles que ocuparam “lugar de dono”, com maior responsabilidade para aqueles que têm a obrigação de dominar o conhecimento em situações como estas e evitar colocar pessoas em desespero.
Chegou aqui ainda sem formação sólida no seu sangue de juventude, era imberbe. Confiava no tacto que no princípio criou-lhe receios numa cidade onde não conhecia ninguém, mas em pouco tempo pisou os pés com firmeza quando percebeu que poderia receber, nesta terra estrumada, mesmo que fosse a longo prazo, bons frutos, pois a semente que trazia não deixava dúvidas, era de um grande poder germanativo.
Mário dos Santos Pompeu - de seu nome completo - é um professor de educação física competente. Apesar de ser homem de amizades restritas, perto dele vamos sentir a afabilidade, a honestidade e a lealidade. Mora dentro dele a abertura de alguém educado, um profissional responsável com muita sede de ver os seus alunos voarem ao encontro da luz, como ele, que até hoje continua a planar sem qualquer desejo de aterrar. Ele quer se manter no cosmos.
Foi formado na década de oitenta, na catadupa de jovens que tinham uma missão sagrada de formar os outros para a luta continuar, e e ele – depois do curso - seria lançado à terra dos bitongas de onde nunca mais saíu, e nem quer ouvir falar dessa ladaínha de “sair ou não sair”. A sua vocação é o atletismo, é por isso que sorriu abertamente quando lhe apresentaram a pista “Sete de Setembro”, onde trabalhou com denodo ao longo de muitos anos, ao mesmo tempo que dava aulas na Escola Secundária, fazendo acompanhamento aos talentos que ia descobrindo, alguns deles levados aos “nacionais” em representação da província de Inhambane.
Nunca abandonou a pista desde o primeiro dia que a pisou, mesmo vendo que aquela “catedral” ia desmoronando aos poucos e poucos, mas a responsabilidade de restaurar este lugar desportivo não é do Mário dos Santos. Até porque já o dissemos muitas e não nos cansaremos de repetir isso até ao fim, “se um dia alguém pensar em homenagear este manhúngwè (natural de Tete), as cerimónias devem acontecer na pista “Sete de Setembro”, é aqui onde vai borbulhar grande parte do sangue do Santinho, como os amigos lhe tratam.
Hoje porém, passados cerca de quarenta anos após desembarcar um jovem vindo de uma distância de 1500 km sem nada nas mãos para além de uma sacola leve pendurada no ombro, este homem deixou para trás o testemunho dos quatrocentos metros, o dardo, a fasquia, as barreiras, o disco e o colchão de espuma sobre o qual ele mesmo caíu várias vezes na demonstração para os seus alunos. A pista inteira. É isso que fazia viver Mário dos Santos, um ser humano respeitado por todos no bairro onde mora e em toda a cidade, pela sua simplicidade e humildade. Ele é um exemplo de trabalho e de como se deve viver numa sociedade.
Hoje está aposentado, com poucas probabilidades de voltar à pista que lhe ajudou a moldar e fortalecer a sua personalidade, o seu carácter. Mas mantem os mesmos seus amigos de convívio restrito, com os quais vai renovando a tecelagem da vida, mostrando que podemos continuar a viver com jovialidade de espírito perante as pedras do caminho, trazendo para o presente todas as coisas boas que fizemos. É isso que catapulta este homem, este professor de educação física talhado para o atletismo, cujo perfume que ele aspergiu em toda a pista “ Sete de Setembro”, jamais deixará de vibrar na parede da memória.
Notabilizou-se em Inhambane como árbitro quando o futebol aqui era de outra jaez. Não se tornava necessário mobilizar as pessoas a abarrotarem os campos, a própria qualidade dos jogadores encarregava-se disso. Mas também Faduco entra em cena numa época em que alinhavam os últimos atletas de um turbilhão de ouro onde pontificavam verdadeiros elegidos, e que podem não ter seguido outros ventos se calhar por capricho do destino. São vários nomes que, mesmo jogando sem grandes pretensões, destilavam todo o talento que merecia maior valorização e reconhecimento.
José Faduco é um património cujo nome urge preservar, não se pode negar isso, por tudo o que ele fez enfrentando torcedores descontrolados e jogadores que podiam insurgir-se contra o árbitro com ameaças de violência. Durante a sua carreira foi obrigado várias vezes a sair do campo sob escolta policial para se evitar o pior. Noutras vezes teve que se valer da sua capacidade atlética para fugir. Sozinho, e depois acolhido e protegido em casas vizinhas como foi aquando de um jogo realizado na Maxixe entre o Nova Aliança e a Associação Desportiva de Pemba, na década de 80.
Hoje o homem já não pode dar o seu contributo por limite de idade, todavia nunca abandonou completamente o futebol, sendo agora membro do Conselho Nacional do Desporto em reconhecimento do trabalho desenvolvido ao longo de anos. Faduco é uma pessoa aberta, predisposta a conversar sobre as várias nuances desportivas e apesar de estar na idade de ouro dos idosos, ainda procura ambientes para uma cavaqueira, trazendo memórias construídas nos campos e fora deles.
Em tempos perguntavamos-lhe se não se sentia triste por até aqui não ter sido homenageado pelo percurso que fez, Faduco disse que não, não se sente triste. “A minha alegria é encontrar na rua gente que me reconhece e me saúda como alguém que verteu um pouco do seu sangue nos campos de futebol para que houvesse euforia e entusiamo nas pessoas. Há outros ainda que, vendo-me na varanda da minha casa, páram e cumprimentam-me de forma particular. Essa é a maior homenagem que posso receber”.
O ex-árbitro diz ainda que há colegas seus que foram muito melhores que ele e que nunca foram homeganeados. “Porquê que eu devo reclamar?” O que reconforta José Faduco é olhar para trás e sentir que fez alguma coisa pelo futebol, embora hoje olhe com tristeza para aquilo que está a acontecer. “O nosso futebol baixou muito de qualidade, não sei o quê que está a acontecer. Acho que não há motivação”.
Na verdade há pouca gente que tem ido aos campos. Aliás, desde que o “Dineu” rebentou com o muro do Clube Ferroviário de Inhambane, todo aquele monumento histórico tornou-se um mamarracho. No campo de Muelé não acontecem muitas coisas com nível e isso entristece profundamente José Faduco, que olha com frustração para este declínio.
Em Maio do ano passado, o artista plástico Magafusso saíu da Maxixe com os seus quadros no regaço e foi expô-los na Fundação Fernando Leite Couto, em Maputo, um espaço que ele considera uma montra importante e impresicindível no mundo cultural em que vivemos. E o título da mostra é esse mesmo: “Três dedos três cores”.
Pode ser a súmula da própria vida, e a vida são as cores que Magafusso explora nos seus quadros para reivindicar, com olhar profundo, a liberdade, ou para nos dar a luz e o amor. De graça. Ele tem a consciência da responsabilidade que lhe cabe como artista, ou seja, sabe que é um candelabro indispensável. Uma bóia luminosa que nos vai sinalizar a direcção certa a tomar no imenso mar existencial. Que nos acolhe a todos.
O título desta exposição tem uma ligação inabalável entre esses três elementos: os dedos da mão que segura o pincel, a mente e a pintura. Então, ao longo das obras ora patentes e agora recolhidas para a sua galeria na Maxixe, e outras tantas vendidas no local e a posterior, podemos perscrutar um sentimento radical de Magafusso perante a arte. Teremos, em algum ponto do andamento da exibição, não propriamente um grito, mas um rito, porque quem apela a permanente vigilância sobre a identidade africana, cumpre um rito.
São (eram) 22 obras que nos levarão, num determinado compasso, ao limbondo, dança dos macondes, que usam, mais do que a boca, o corpo para falar. Magafusso inclina-se aqui, neste quadro particular onde a dança parece ser a síntese da humanidade, perante o movimento mágico do esqueleto revestido de carne, lembrando-nos que toda a beleza passa pelo corpo, que não tem limites. De forma que o artista estampa isso como quem diz: depois de todas as batalhas e de todas as guerras e de todas as fomes e de todas as mortes, é preciso dançar.
“Três dedos três cores” não é um porto de partida, muito menos de chegada. Até porque a jangada de Magafusso não tem âncora. Desde que apresentou a sua primeira exposição individual (Silingo) em 1989 na cidade de Inhambane, nunca mais dormiu. Está sempre acordado, ou melhor, é constantemente acordado pelas obras que falam alto sobretudo nas noites, quando ele está deitado na cama dormindo em sono profundo.
Esta é a nova página do artista nascido na Maxixe, sem saber que já no ventre da sua mãe tinha sido escolhido para reverberar como ponto de orientação. É por isso que tem essa capacidade de descortinar o oculto, e remover os escolhos do caminho por via do pincel. E, na verdade, sentimos nesta mostra a grande vénia que Magafusso tem pelo belo. Por isso, com a leveza dos dedos, todo este manancial artístico é tratado com delicadeza.
O resto fica por conta de quem vai contemplar o estendal de várias arestas (agora na galeria do artista, na Maxixe), que incluem a fome, a guerra, o arrebatamento das mulheres fazendo tranças livremente, a caça furtiva destruitiva da fauna, a música e, se calhar, teremos a dança no cume de tudo. Mas como onde há luz há amor, o amor vai prevalecer acima de todos os quadros. Porque as guerras – segundo o próprio Magafusso - são sinónimo de que a cegueira habita as nossas mentes.. “Temos que ser curados na piscina de Siloé”.
Chegou à cidade de Inhambane em 1982 com todas as escarpas de um massena que se preza, não tinha medo de nada, nem do desconhecido. Nessa altura a juventude daqui era pura, o que eles queriam era viver livres como o vento que não contorna os obstáculos. Otto também, jovem como os outros, queria viver, não como o vento, mas como um baluarte contra aqueles que porventura o quisessem derrubar, o massena é assim, não demora libertar todas as armas do porco espinho que lhe vai dentro.
Chegou sem nada nas mãos, para além da sacola que cabia debaixo do braço, e em pouco tempo passou a ser conhecido em toda a urbe pelo seu caracter obstinado, em particular na família do desporto onde se fazia valer de forma singular, ele é professor de educação física – agora aposentado -, um dos primeiros formados no tempo de Samora Machel e espalhados pelo país inteiro. Ao otto calhou Inhambane, de onde nunca mais saíu, até hoje, que já ninguém se lembra das suas origens e ele também não fala disso. Para quê?
Nos campos de futebol de salão - em noites memoráveis no recinto do Desportivo ou do Ferroviário de Inhambane - Otto Glória era uma das estrelas mais reverberantes no seio de uma constelação jamais vista por estas terras. Era uma muralha em si mesmo, intransponível para os avançados mais afoitos cujos nomes não vou citar, por fazerem parte de uma lista engrandecida pelo próprio brilho desses jogadores e eu tenho medo de me esquecer, se calhar, dos que nunca devem ser esquecidos.
Otto já era lenha regada de gasolina cá fora – à mínima faúlha ele vai arder – e no campo essa lenha era ainda mais seca, ainda mais pronta a pegar fogo e queimar tudo. Mas esse era ele, uma pessoa desconfiada, atenta aos detalhes daqueles que lhe abordam, examinando-os com os olhos da cabeça aos pés e se você o chateasse ele dizia: eu sou beirense! Mas tudo isso nunca passou das palavras, Otto Glória passou a ser amado pouco a pouco, embora não sendo ele pessoa de muitos amigos.
Digamos que estamos perante um personagem com características próprias. Um ser coerente, no sentido de que a personalidade trazida da juventude ainda é a mesma, não fosse ele do bairro Munhava, e como todos sabemos o beirense “não tem recua”, Otto também “não tem recua”. E quando o vemos caminhar pelas ruas e pelos becos da cidade, no seu estilo inconfundível, costas meio curvadas, andar atento e desconfiado, o reconhecemos imediatamente mesmo em noites sem luar. E vamos dizer assim: aí vai o Otto!
A voz roufenha de Otto Glória é um detalhe muito importante do ser deste homem. Quando fala – segundo Jacob de Melo, também professor de educação física, já falecido – dá a impressão de que alguém lhe está apertando o pescoço. Mas essas são as brincadeiras da juventude que prevalecem na memória. Para sempre. A amizade também vai manter-se cada vez mais forte em cada passo da vida.
E viva o Otto Glória!
Numa altura em que as referências da cidade de Inhambane se vão esbatendo na morte, o que resta é encontrar um lugar onde se possa exaltar essas memórias, e um desses sítios é Ngwatitunu, ou “A sombra da vergonha”. Aqui reúnem-se diariamente, regra geral, homens cultos com muita informação deste tempo e do tempo de outrora, informação essa que é partilhada e impulsionada pelo copo que se bebe para aclarar as ideias.
Ngwatitunu vem de Ngwati, nome que se dá ao tamarindo, árvore gigantesca que se ergue no bairro Liberdade “3”, mais concrectamente na zona da “Estação”, agora tornada – a dita árvore - esplanada sem que ninguém saiba a idade desta enorme planta resistente a todos os abalos, mas o mais importante é que este ngwati transformou-se numa espécie de santuário, onde muitos gostam de estar, não apenas para beber um copo, mas para beber um copo e conversar sobre vários temas interessantes, defendidos sob vários ângulos, dependendo do orador de circunstância.
Em Ngwatitunu há clientes “residentes”, do tipo “donos do lugar” e quando eles não estão, sente-se um vazio, mais pelo seu porte cultural ou teimosia, do que pela capacidade financeira. Aliás, a maioria dos melhores conversadores dali, aqueles que dominam a plateia, não respira saúde pecuniária. Têm algum dinheiro que dá para beber algumas, o resto é “papo” que não acaba, levando-nos a recordar grandes figuras que deixaram “baba” no desporto e na música e na sociedade no geral. Até na política.
Ngwatitunu é também um desaguadouro de frustrações, de jovens e adultos e idosos que já chegaram a conclusão de que lá mais para frente não há muita coisa que se espere. Então para se materem-se vivos enquanto o último comboio não chega, vão rebuscando histórias que são contadas com muito entusiasmo, impulsionados pela euforia do copo que não pára de descer goela abaixo, pelas gargantas que não se fartam, mesmo sabendo-se que amanhã o fígado pode não aguentar mais.
Seja como for, Ngwatitunu tem o condão de ser um espaço aglutinador, é aí onde reside o valor social de todo o fervor. Todos se conhecem, por isso se toleram uns aos outros quando as falhas acontecem. Todos sabem das capacidade de encaixe de cada um . Mas há ainda aqueles que vão a Mgwatitunu apenas para delirar com as conversas que ouvem, sem que entretanto participem nelas, ou por incapacidade, ou por caracter e esses também fazem parte do mosaico.
Dá prazer passar por Ngwatitunu, onde você será acolhido como se fosse da família. E se fizer isso num dia de alta voltagem, pode ser que lhe fique a vontade de voltar de novo à “A sombra da vergonha”.
Se eu tivesse que escrever uma carta ao Fernando Manuel, tinha que fazê-lo com a certeza de que sou digno de tal acto, não só devido a minha incapacidade conjuntural, mas porque estou diante de uma figura de porte intelectual honesto e indiscutível. É por isso que tremo ao tentar rabiscar algumas linhas em homenagem ao “Nandinho”, cuja escrita pujante esconde um homem tímido, eivado de cultura e conhecimento, demonstrados nos textos que ele vem publicando incansavelmente, e que o vão tornar num dos mais importantes cronistas do nosso tempo.
Escritor e poeta de verbo sólido e vocabulário caudoloso, Fernando Manuel completou este mês o seu septuagésimo aniversário natalício e eu, na impossibilidade de o abraçar em carne, fiz-lhe uma chamada telefónica com o intuíto de lhe desejar muitos parabéns e aproveitar a ocasião para rememorarmos momentos intensos que vivemos juntos em vários lugares, sem qualquer compromisso que não fosse o de dar azo à vida.
Falei-lhe da sua cegueira na cavaqueira telefónica que durou cerca de quinze minutos e fiz-lhe uma pergunta que nunca tinha feito antes nas várias tertúlias que temos tido por via do celular, e que seria descabida num dia como este, se não fosse o conhecimento profundo que tenho do Fernando Manuel. Pode ser que haja algumas feridas dolorosas dentro deste homem, provocadas pela impossibilidade de voltar a ver as coisas mais belas que já observou na vida, mas toda essa limitação é suplantada pela imensa poesia e extraodinária capacidade de sublevação que moram em “Nandinho”.
Qual é a sensação de se ser cego? Fernando Manuel desatou às gargalhadas, como se a cegueira lhe desse alegria, mas é mentira, ele tem a indismentível saudade da liberdade, quando caminhava segundo um inabalável cicerone que são as palavras. Escritas e buriladas no silêncio das noites e muitas vezes no ram-ram das Redacções para onde jamais voltará, nem que o deseje ardentemente.
Perguntei-lhe ainda assim: não tens saudades das tuas putas? Fernando Manuel voltou a troar uma gargalhada que desta vez pôs a nu toda a rusticidade da sua voz, que muitas vezes cantou em paródias, em celebração da existência, e a resposta ficou-se por esse riso comovente de um ser condenado pela cegueira a nunca mais contemplar o azul do céu e os pássaros planando nos finais de tarde, na despedida do dia.
“Agora vivo de sons!” Na verdade será a música e o tacto, os maiores companheiros do Fernando Manuel, que me ofereceu há dois anos o livro da sua lavra, “O Homem sugerido”, que fiz questão ler para ele, no dia do seu aniversário, um excerto da crónica “Alucinações” , Abandono o brilho ténue das flores que tremulam à luz no cimo das acácias e perco-me no restolhar das folhas sob o ligeiro contacto dos seus pensionistas, pássaros procurando abrigo para mais uma noite e faço-me à trégua.
Atrás, na varanda, na coluna, fiquei eu. Aguardo.
Este é o presente que dei ao Fernando Manuel, no último domingo, com um abraço profundo e no fim ele disse: muito obrigado por teres te lembrado de mim!