Mas o que me revolta é o facto de a instituição ligada às estradas e pontes em Moçambique, nomeadamente a Direcção Nacional de Estradas, ter vindo a terreiro dizer que as correntes que seguram uma parte da plataforma da ponte, cederam como consequência da passagem de um camião sobrecarregado de mercadoria, em desobediência aos limites de peso impostos na infraestrutura. Revolta-me que a culpa seja atirada inteiramente ao camionista violador das normas, sem nos explicarem que camião é esse, qual era o destino e que carga trazia e o que foi feito para a devida responsabilização, isso seria o mínimo que se exigiria na prestação de contas.
A ponte Samora Machel na cidade de Tete, que liga a urbe e os bairros Matundo e Chingodzi e ainda permitindo a passagem para Zâmbia e Malawi, esteve temporariamente interdita a circulação de viaturas durante 48 horas, entre sexta feira e sábado últimos, criando grandes transtornos à livre circulação de pessoas e bens, por conta de um camião com excesso de peso que supostamente terá rebentado com um suporte da plataforma. Supostamente porquê? Supostamente porque antes já passaram, muito provavelmente, uma vez não havendo controle, muitos outros camiões com peso para além do permitido, até que se atingiu o ponto de saturação, e a DNE não fala dessa possibilidade. A culpa, segundo a instituição, é do último camião.
A pergunta é: o que foi feito ao camionista? Quais são as demarches que estão sendo encetadas a partir deste incidente, com vista a que se respeitem os limites de carga e se proteja a ponte? Afinal não há báscula de controle? A culpa será, efectivamente, deste camionista “desconhecido” e de outros antecessores?, Ou é da Direcção Nacional de Estradas que tem por obrigação controlar o tráfego no local! Estamos a perguntar!
Afinal a cidade de Tete ainda é causticada pela passagem de camiões que demandam países do interland, nomeadamente Zâmbia e Malawi, por via das fronteiras de Kassakatiza e Zóbwè, respectivamente? O que é que passa! Expliquem-nos por favor.
No tempo da governação de Armando Guebuza, foi construída, a partir da zona de Mpádwè, uma ponte robusta baptizada Kassuende, exactamente para desviar os camiões que passavam pela cidade com carga pesada, criando longas filas e por consequência, o caos. Era esse o objectivo principal que se tinha na edificação da Kassuende (aliviar a urbe e a ponte Samora Machel), testemunhando a obstinação e audácia de um presidente que queria e estava a atingir altos rendimentos e níveis notáveis de desenvolvimento. Então, queremos que alguém venha nos explicar porquê que os camiões da Zâmbia e do Malawi ainda sulcam a cidade, pressionando por outro lado, e principalmente, a ponte Samora Machel.
Foram 48 horas de nervos entre sexta feira e sábado, numa situação evitável. E já agora, os camiões continuarão, ainda assim, na saga de “destruir” a cidade de Tete, ou então terão que usar a ponte Kassuende, projectada para efeitos mais do que claros!?
No dia 24 não dormi, passei a noite inteira ouvindo a música que tocava aqui ao lado da minha casa, boa música. Até porque tinha sido convidada pelo meu vizinho, uma pessoa afável que me trata como sua filha, mas eu disse a ele que não. Ainda perguntou se podia trazer alguma coisa para comer, também disse que não. Na verdade não queria nada, o meu desejo era sentir a acidez das feridas que me cobrem o espírito, resultantes da colheita dos ventos que andei a semear ao longo deste tempo todo.
Mas eu preciso de um catalizador para ouvir música, então deslizei à um lugarejo imundo e sombrio onde se vende aguardente de cana de açucar e comprei um litro, depois voltei para casa despida de esperança, com todos os espinhos caíndo sobre a minha cabeça. Aliás, antes de chegar aos meus aposentos lembrei-me que não tinha cigarros, logo rodei sobre o meu próprio eixo e voltei à adega e adquiri dois maços de GT que me vão alimentar sem privações, à par da cannabis que não me pode faltar.
Já estou aviada, e o que me resta é viver. Ainda bem que há uma consonância entre mim e o meu vizinho em termos de gostos musicais. Ele sabe que fui educada nessa linha de fazer da música um alimento imprescindível no cardápio do espírito. É como se tivéssemos andado na mesma escola onde os solvejos ocupam um lugar especial nas composições. E eu sinto-me feliz assim, estando na plateia deste lado, e o meu vizinho estando no palco do outro lado.
Não há vozearia num ambiente de família onde o som da música é ameno, agradável. Eles conversam baixinho, harmoniosamente, sem atrapalhar a música que me chega ao fundo do coração, e nem parece que estou sòzinha, nem parece que sou um mamarracho. Mas eu adoro ser mamarracho porque assim ninguém quer saber de mim, a não ser o meu vizinho que passa sempre da minha casa, e pergunta, como estás minha querida?
Vivo da pensão do meu marido, morto por doença estranha, provavelmente por desgosto que lhe criava. E como se fosse pouco, fui corrida da nossa casa, pela família dele, acusada de ter sido eu, por via do feitiço, a causadora do infortúnio. No fundo prestei um grande contributo na sua morte. Enfeiticei-lhe com a minha vida desregrada, sem respeito àquele que me amava e cuidava. E eu nunca o respeitei.
Agora vivo nesta cubata desgraçada como eu. Não consigo melhorar as condições da habitação, pois invisto todo o dinheiro na cachaça para ver se esqueço a dor. Nem telefone tenho, para quê? Quem é que vai me procurar se nem filhos tenho! Eu também não tenho a quem procurar, a quem chorar. Então para quê o telefone!
Mas passei o dia Natal no paraíso, ouvindo a música que tocava em casa do meu vizinho, lembrando-me os momentos de levitação que vivia com o meu marido, ele que me ensinou a ouvir boa música. E agora só me restam as lembranças enquanto vou arrastando a minha carcaça alagada de cachaça.
Tudo o que vou dizer aqui, pode parecer repetitivo, mas a vida é isso mesmo, um eterno recomeço. Estaremos sempre nesse ciclo sem fim, procurando a perfeição, ou seja, parafraseando o poeta Kalungano, a perfeição é como o sol, quanto mais nos aproximamos dele, mais ele se afasta. Mas é aí onde mora a beleza da existência do homem, que não cessa de procurar a luz.
Pois é! Eu não sei exactamente se a arte é a luz em si, ou é um simples interruptor. O que sei, porém, e não terei dúvidas sobre isso, é que sem a arte jamais seremos alguma coisa. O próprio ser humano é uma obra de arte. O universo, dentro do qual correm os rios e os mares e reverberam as cores do arco-iris e ouve-se a música dos pássaros, tudo isso é uma obra de arte, então significa que esta exposição que se estende diante de nós, vem nos lembrar o valor da arte e dos artristas que a corporizam.
“Geração Wagaya” não pode ser apenas um slogan, é mais do que isso, é um grito. É um rito. “Geração Wa Gaya” é poesia. E o poeta não se cansa de voar, nem que as pessoas não se importem com a leveza insuperável das suas asas. O artista plástico é igualmente assim, ele não espera. Plana constantemente. Você é que tem de esperar pelo comboio, nem que a espera seja longa. E vai ser um regalo contemplar estas obras todas que nos são aqui presentes, passando por elas, mais a alma do que olhos.
Sim, é necessario voltar a dizer que aqui neste estendal temos pintura, escultura de madeira, cerâmica e desenho, tudo isso amanhado por mãos delicadas que tratam os materiais como se acariciassem a parte mais macia da mulher. Ou ainda, mesmo quando o artista usa o formão ou o martelo para fazer com que a madeira respire, fá-lo com amor para que haja orgasmo.
E os nomes dos artistas que nos convocam a este acto de contemplação, de sentimento, de absorção espiritual, devem ser mencionados em voz alta para que sejam conhecidos pelos flamingos que esgravatam as amêjoas aqui mesmo ao lado, na nossa baía. É extraordinariamente cativante ver esses pássaros pernilongos procurando o alimento com as patas. Parecem dançar. Uma dança desconhecida.
Então vamos nomea-los, para que os espíritos se regozigem deles: António Marcelino Costa, Azevedo Munhaua, Adil, Anselmo Razão, Matomo, Nhambo, Arão Buque, Mujime, Sebastião Matsinhe, Amilton Massicame, Nélio Guambe, Lizy Guambe.
São 47 obras expostas numa mostra que orgulha a cidade de Inhambane. Aliás esta é uma das várias etapas de um percurso que começou há mais de dez anos. Quer dizer, os artistas desta terra juntam-se aos finais de ano e exibem os seus trabalhos, também como forma de presentear os turistas e não só, agraciarem os manhambanas vivendo numa cidade que infelizmente está em estado de degeneração histórica.
Recorde-se que nos primeiros cinco anos deste projecto de sonho, havia muita intensidade, mas é preciso manter esse entusiasmo. Exposições desta natureza serão o outro lado dos nossos pulmões espirituais. Queremos continuar a respirar.
Mas para que este movimento não desvaneça, os artistas, mais do que nós outros que só estamos aqui para apreciar e sentir a leveza e profundidade de uma obra de arte, precisam de um incentivo impresicindível que é a mola de impulsão e essa mola de impulsão chama-se dinheiro, para que eles continuem a criar. É aqui onde são chamados os mecenas e os próprios dirigentes do Estado, que podiam comprar um quadro e deixá-lo na recepção para que a arte triunfe, e os artistas vivam, mais do que sobreviver.
Estão de parabéns todos os artistas que dão corpo a esta mostra e ao projecto Geração Wagaya.
*Apresentação da exposição “Geração wagaya” a decorrer na cidade de Inhambane, de 12 de Dezembro a 12 de Janeiro, na Casa da Cuktura
Escrever várias histórias sobre o mesmo homem, jamais será redundante, e as mesmas histórias podem ser contadas de formas diferentes até que não se atinja a exaustão. É como ir ao rio e ver na ilusão do sentimento e da óptica, as mesmas águas que nos vão banhar o corpo e deixarem-nos frescos. Todos os dias. Então, Daniel Cuambe era isso, como o rio permanente. Que nunca seca, nem que venham as estiagens mais devastadoras.
Na Redacção do jornal Notícias onde o conheci melhor, o mano Dany, como era tratado pelos colegas e pessoas mais próximas, destacava-se pela predisposição de articular a palavra sem fim, suportada por um sentido de humor contagiante. Era homem de olhar discreto, mas muito atento. E esse detalhe avisava-nos da presença de um ser inteligente, preparado para todos os momentos e todas adversidades.
Mano Dany nunca escondeu a sua paixão pelo jornalismo. Era nesse campo onde a sua vida encontrava suporte e fazia sentido, actuando como um grande jogador de reagueby, sempre a correr com a bola nas mãos ao encontro da luz. O futuro para ele não tinha importância, era preciso viver como o tecelão das redes de emalhar, que trabalha com entusiamo todos os dias sem cansar. É por isso que a euforia do mano Dany não acabava.
Há momentos, muitos momentos em que o mano Dany dispensava as palavras, que adorava libertá-las como aos pássaros, para deixar que seja a gargalhada sonora a troar, impregnando o ambiente com alegria inefável. Era um actor seguro. Sabia que as pessoas esperam sempre dele algum gesto, talvez uma frase improvisada, porém suficientemente temperada, e ele sabia disso. Mas nunca teve medo que alguém o aguardasse, pois confiava na sua espontaneidade, na sua capacidade de estar em todos os lugares, em qualquer circunstância.
Vestia-se com simplicidade, a camisa e as calças estão sempre bem engomadas. Barba infalivelmente feita e cabelo aparado rente, e também não vai faltar na sua companhia, uma garrafa de água de 1,5 litros que vai bebendo a gargalo nos intervalos do tempo, em particular quando está na Redacção produzindo as prosas que vão marcar a sua vida.
E um homem destes, promovido a personagem, ficará sempre na memória pela forma como encarou a vida, tal como ela é, sem acrescentar absolutamente nada. Mano Dany via graça em tudo à sua volta. Trazia a alegria onde estivesse com os amigos, destacando-se pela gargalhada descomprometida e pelas lembranças que partilhava, muitas delas que nos faziam recordavam a máxima: quem conta um conto, aumenta um ponto. Era assim, o mano Dany: tudo para ele tinha mais um ponto, e isso é próprio de actores livres de tabus.
Apesar de estar a viver numa cidade por demais pacata como Inhambane, Izidine Malache passa despercebido, como a lua numa grande metrópole onde quem reina é o néon. Naturalmente que já não vai aos campos de futebol submeter-se aos intensos delírios das massas, com a grande responsabilidade de ajuizar os lances, indicando com o estridente apito os sinais dos jogos, mas ele anda por aqui, mantendo a postura física de quem viveu segundo as regras de um desportista disciplinado.
Izidine Malache pertence a uma tribo de árbitros da primeira água, que brilhavam e mantinham ordem nos relvados e nos pelados nas décadas de 80 e 90, quando o futebol que se praticava era de topo, então, eles também – os árbitros – não podiam estar à baixo dessa bitola. Era à volta da sua órbita que gravitava toda a classe suprema dos jogadores. E Malache destacava-se na elite da arbitragem moçambiana.
Passou a vida inteira em Maputo, a partir de onde viajava por todo o território nacional a arbitrar jogos dos inolvidáveis campeonatos nacionais, por tudo que nos ofereciam, tendo como actores principais, futebolistas muitos deles injustiçados por lhes ter sido vedado o caminho da glória, por políticos que jamais vão perceber que o desporto ergue a nossa bandeira. E nesse fervor que acontecia do Rovuma ao Maputo, Izidine Malache destacava-se pela competência e serenidade e humildade.
Há 25 anos que está em Inhambane, um lugar que entra em consonância com o caracter de um homem feito para não empurrar as pessoas. Investe o seu tempo numa escola de condução onde é gestor, e é admirável a manutenção da sua condição física que parece de um jovem de 20 anos. Ele caminha a pé nas ruas da cidade, e já me disse uma vez, “andar de carro numa cidade tão pequena para quê!”.
Pois é! Izidine Malache não reivindica galhardetes. Nunca falou disso nos momentos em que nos encontramos e nos saudamos como velhos conhecidos e falamos de pequenas coisas, mas na despedida nunca vai faltar a lembrança de uma memória dos grandes tempos em que pressão do público era avassaladora. O árbitro precisava de “nervos de aço” para aguentar aquilo, e Malache sempre teve os “badalos” no lugar, até hoje, que não se atrapalha com os desconhecidos, mesmo que estes se aproximem dele prescrutando-o com o olhar, sem dizer nada.
Mas se calhar a cidade de Inhambane, composta maioritariamente por jovens, que não acompanharam os tempos áureos do nosso futebol, ainda não percebeu que tem no seu seio um “velho lobo” que anda pelas ruas livremente sem chatear a ninguém. E esse “velho lobo” chama-se Izidine Malache, cujo nome está nos escaparates de ouro da arbitragem moçambicana. O resto ficará por conta da história.
Daqui a pouco, por causa das festas de Natal e fim-do-ano, será o ram-ram numa cidade vocacionada ao tédio e falta de crença no futuro. Nem o turismo, que seria a gazua, a transforma, talvez porque os interesses dos que detêm os cordelinhos sejam outros. Não há nada por aqui, quase absolutamente nada, que seja resultado da economia do turismo e que benefecie as populações. Propala-se demais, promovem-se seminários, gastam-se nesses encontros, dinheiros que nem sequer provêem da área, e os resultados serão escassos.
Vem sendo assim desde que se implantaram as instituições que lidam com o turismo. Fala-se e discute-se nos papeis e nas salas montadas a propósito. Bebe-se muito café e no fim promovem-se jantaradas abastadas com camarões e lagostas e peixe da primeira, tudo isso regado com bom vinho, mas a cidade continuará na mesma. Sem colher os frutos de uma sementeira falsa.
É falácia vir cá fora dizer que o turismo cria empregos, não só na cidade, como em toda a extensão da província de Inhambane. Se calhar pode ser verdade. E ainda dizem mais, “com esses empregos os jovens conseguem colocar pão à mesa das suas famílias”. E eu pergunto, que pão! Quanto é que recebem esses jovens? Com que dignidade são tratados como empregados e como pessoas! Quantas horas trabalham por dia?
Esta será a parte mais dolorosa e condenável que devia preocupar as estruturas competentes, como o Ministério do Trabalho e o Ministério da Cultura e Turismo, se efectivamente houvesse interesse em que o Turismo trouxesse benefícios aos moçambicanos. Mas são eles, os investidores, que ganham, explorando os moçambicanos. E não escondem a sua actuação, provavelmente porque têm protecção de alguém que está pouco se lixando com o tratamento dado aos seus compatriotas. Então eles podem fazer as coisas a seu bel prazer.
Na orla marítima, desde Zavala até Inhassoro, estendem-se lodges sem fim, muitos deles explorados por estrangeiros. Ganham dinheiro, sobretudo em tempos de pico. Abrem espaço aos que podem desfrutar desses lugares de lazer, independentemente de ser ou não daqui, e nem é sobre isso que estamos aqui a falar. A questão é, quanto é que eles pagam de impostos para desenvolverem o seu trabalho? Para onde vai esse dinheiro que pagam? E não há sinais de que haverá amanhã outra direcção de desenvolvimento com base no turismo.
De que vale termos um turismo que não nos beneficia? De que vale termos um Ministério vocacionado, se o crescimento que se regista não traz valor concrecto às populações? De que valem os discursos oficiais do tipo “Temos vários investidores que estão a trabalhar no nosso país e dão emprego aos jovens”, se a cidade de Inhambane em particular e o país no geral ganha quase nada? É claro que Moçambique está aberto aos investimentos, e eles vêm em catadupa, sabem que não vão pagar quase nada de impostos. Fala-se muito de incentivos fiscais que vão atrasando o nosso país em benefício de poucos, para a manutenção da nossa desgraça.
Urge mudar urgentemente de paradigma. É preciso colocar o turismo na catapulta do desenvolvimento como se faz noutros países, e Moçambique tem potencial soberbo para fazer girar a roda. Mas enquanto as palavras e os pomposos discursos prevalecerem, continuaremos assim: na pindaíba!
É um dos indicativos da sabedoria. Significa que o silêncio dá-te a prerrogativa de ouvir os outros sem que os respondas. Necessariamente. Mas os próprios juízes, imbutidos nas togas, tremem perante o silêncio dos réus que vão enfrentar as câmaras de cianeto sem vocalizar. Deixando nas mãos do tempo e da razão, os infalíveis e verdadeiros julgamentos.
O silêncio pode ser a báscula inesperada, que vai libertar da terra os terramotos do fim do mundo e deixar tudo por conta da correnteza que já existia antes de todas as paisagens. É por isso que mesmo os maiores rios do mundo não têm ondas, porém residem neles os largatos aquáticos mais tenebrosos, que vão matar os leões na toca das profundezas.
Nelson Mandela já dizia: “cuidado com o tigre das massas populares!” E essas palavras serão o sino que reboa em toda a amplitude. Então, depois desse sábio aviso, virão as verrumas incubadas pelo silêncio durante este tempo todo em que as feridas doíam para dentro e mantinham-se vivas.
O silêncio não tem pressa, mas é alagado de demora, e quando já não aguenta mais, move para baixo os montes e as montanhas de pedra, e tira todas as lanças e lança-as no espaço onde os gritos e os gemidos dos diabos, serão ouvidos na mesa dos faustosos banquetes. Regados de sangue.
Foi num dia de silêncio que a Voz do próprio Jehová dos Exércitos, vibrou na sarsa e disse a Moisés, “Vai ao Egipto libertar os meus filhos, das masmorras de Faraó!” E Moisés foi, mesmo tremendo com o cajado na mão.
O tigre das massas populares será fecundo. Virá das comportas do silêncio doloroso de anos e anos em que o sol teimava em não sair do esconderijo das nuvens. Mas tudo isso é mentira, “por mais longa que seja a noite, a verdade é que vai amanhecer!”.
O silêncio é metamorfo. Depois do sofrimento, ele transforma-se em canções de revolta que vão ecoar nas ruas pejadas de armas e balas e cães, e quando isso acontecer, significa que já ninguém vai parar este sismo que começará no crepúsculo da liberdade, com jovens entregando o peito aos fuzis e gritanto: Liberdade! Liberdade!
Cuidado com o tigre das massas populares! A longa espera já terminou, e agora é tempo de rebentar as grilhetas, lutando sem pólvora, mas com as azagaias contidas nas estrofes da paz que o povo canta nas ruas e nos subúrbios sombrios onde a fome e a nudez, serão a poesia da povo.
E os jovens erguem-se da catapulta ora amordaçada ao longo dos anos, e com eles nasce um novo amanhecer para que todos desfrutem do maná inesgotável, pronto a colocar mesa posta em todos os lares.
O silêncio é um sismo. “Cuidado com o tigre das massas populares!”
De longe tenho acompanhado – sempre que posso - a vida musical de Gimo Remane, rebatizado Gimo Mendes. Rejubilo mesmo sentindo que é pouco o que me chega por via das redes siciais, é como se eu estivesse a assistir a um espectáculo encostado num canto distante sem poder divisar claramente os actores que vibram no palco, contentando-me apenas com o som e as imagens transmitidas nas telas gigantes. Mesmo assim não não deixo de aplaudir.
Há pouco tempo esteve em Moçambique o Gimo, e não era a primeira vez que o fazia, depois de ter partido para as longíquas terras dinamarquesas onde continua a ser um importante candelabro, com a mesma intensidade luminosa de como era no Eyuphuru, uma das maiores bandas que já tivemos no nosso país, Gimo Remane terá sido o esteio inegável.
Sempre que vem ou que volta, há um ressurgir de memórias gravadas no tempo e nos discos e nos palcos, Eyuphuru era mais que um remoínho. Aliás a escolha que fizeram, de avançar com instrumentos acústicos e percussionistas rústicos livres de preconceitos, fazia deles uma catarata. Foi assim que abriram alas, e em pouco tempo tornaram-se conhecidos e desejados e ovacionados por onde passavam.
Mas há situações que acontecem de forma inesperada na vida musical que você não percebe, Gimo Remane deixou de pertencer a banda que ajudou a firmar, e seguiu outros ventos: os ventos do amor! E amor molda a quem quer que seja, e ninguém vai contrariar essa verdade.
Hoje, Gimo não parece o mesmo. Aquele cujos temas que compunha e tocava, eram um derrame num grupo insuperável e tinham cheiro profundo à emakwa, à África. Escolheu outra forma de fazer música para nos mostrar que na exploração da escala diatónica jamais se chega ao fim e nada é linear nessa área. Mas o importante é que esse emakwa ainda está vivo, com a mesma voz e os mesmos dedos percorrendo as cordas da guitarra.
E porque o belo atrai o belo, é gratificante ver o agora Gimo Mendes rodeado de crianças e adultos dinamarqueses, aprendendo música com um moçambicano que não terá vestido propriamente outras asas, mas se calhar fortificou-as com novas escolas que lhe darão certamente outras perspectivas e conhecimentos.
E Gimo jamais será retirado dos escaparates onde jazem os nomes mais expressivos da melhor música moçambicana e africana, pela elevada qualidade dos seus trabalhos esxaltados no Eyuphuru, e que o tornarão assim, um artista de fina estirpe. E ainda bem que está mostrando a todos, que os seus limites não terminam em Nampula.
O desmoronamento do Textáfrica de Chimoio jamais será um caso isolado, está inserido num contexto em que todo o futebol moçambicano perdeu o entusiasmo dos tempos. Ou seja, nos primórdios da independência nacional, o nosso país era um imenso alfobre futebolístico, com tendência a inesgotável, mas é reduntante dizer isso. Era um transbordante estendal com jogadores de topo, talhados naturalmente para grandes exibições em qualquer parte do mundo, e eles mostravam esse talento nos campos sempre abarrotados, e assim, todos nós acreditávamos que na senda de Eusébio, Coluna, Matateu, Vicente, Matine e outros tantos, seriam estes a embarcar em outros voos. Enganamo-nos!
Jogadores como Orlando Conde, Ângelo Jerónimo, Chababe, Luís Siquice, Terezo, Chinguia, Guiló, Cifrónio, Babarriba, Lóngwè, Marcos I, Marcos II, para citar apenas alguns exemplos dentro de um manancial vibrante sem fim que Moçambique já teve, terão sido injustiçados pela história, impedidos de brilhar noutras galáxias. Fecharam-lhes as portas da luz, então não tiveram outra saída que não fosse a resignação, mesmo assim sem perder a dignidade. Levantaram, em ocasiões infinitas, o Estádio da Machava e muitos outros campos espalhados pelo país, até que as pernas sossobraram. Deixando para trás o seu labor indelével, que será recordado para sempre.
Porém, o que nós não sabíamos e nem esperávamos, era que esses “craques” seriam a última carrada, pois, depois deles os dias de sol começaram a fenecer, até hoje que não temos certeza do futuro, a não ser que Reinildo Mandava reacenda a chama da nossa esperança e fazer-nos acreditar, novamente, que Moçambique é um país de grandes jogadores de futebol.
Nesse tempo de ouro nem sequer precisávamos de televisão, não tinhamos. Bastavam-nos os relatos de João de Sousa, Anuar Mussagy, Saíde Omar e o Domingos Naene para que, na impossibilidade de estar no terreno, acompanhassemos tudo em grupos de amigos, gritando em delírio como se também estivéssemos lá. Eram tempos de glória, corporizados por finas coqueluches. Conheciámos a todos pelos nomes e acreditávamos nas suas capacidades de tornar as partidas em poesia que será declamada do Rovuma ao Maputo. Para gáudio do próprio futebol.
Não haverá nenhum jogo no Estádio da Machava que não seja precedido de romaria. As pessoas, na falta de transporte, iam a pé, ocupando literalmente as bermas das estradas que vão dar ao vale do Infulene. A festa era exalada antes de o jogo começar, numa postura de pátria nunca vista. A Federação Moçambicana de Futebol tinha os seus “sócios” com “bancada-sol” reservada para que o remoínho ressurgisse. Outros, que não terão acesso ao recinto, vão se pendurar nos postes de electricidade lá fora. Mas esse é o resultado da força que o futebol tinha nesse tempo.
Depois, provavelmente a partir dos finais de oitenta e princípios de noventa, a euforia que dava sentido à nossa vida começou a esboroar-se. Fomos ficando sem a quem seguir como ídolo. Os campos foram perdendo o chamaris. Mesmo com a construção do Estádio Nacional do Zimpeto, não haverá motivo para lá ir, salvo em pouquíssimas ocasiões, mais por aliciamento da publicidade, do que propriamente pela crença de que teremos os nossos jogadores a cintilarem. Não é o “Zimpeto” que joga, são os jogadores. Que entretanto já não nos fazem acreditar no futuro.
Já dissemos isso mais do que uma vez, na tentativa de não perder de vista a história de uma cidade que se tornou incapaz de preservar os ritos, e os mitos. É isso mesmo: Inhambane está caminhando de degeneração em degeneração em vários ângulos da sua existência, até o silêncio está sob ameaça, com os decibéis a triunfarem em todo o lado sem que as autoridades actuem. Mas, mesmo com essas dores todas, e ainda perante o êxodo e os fragmentos, há aqueles que permanecem para serem eles a fechar a porta. Um deles é o Devú.
Devú parece ser o último símbolo da comunidade hindú na cidade de Inhambane. Hevendo outros, provavelmente terão menor expressão numa situação em que quase todas as lojas destes asiáticos, ou descendentes deles, estão fechadas, sem qualquer sinal de que haverá reabertura das mesmas nos próximos tempos. Muitos indianos daqui zarparam em busca de outros ventos, se calhar porque a sorte lhes virou as costas numa terra omde tinham o domínio total do comércio. Ficavam à porta e o dinheiro ia lá ter.
Agora o negócio tem outras mãos e outros donos, de entre eles muitos moçambicanos que constroem lojas e bancas nos bairros residenciais, facilitando as deslocações dos consumidores à cidade. Os próprios alfaiates indianos, que eram a maior recomendação –quase única – levantaram as âncoras e içaram as velas antes que o vento parasse em definitivo de soprar.
Mas Devú ficou, como um marinheiro abandonado num barco ora robusto, porém agora navega na costa sem capacidade de ir ao ao alto mar, o casco está por demais fragilizado. Ele também tem as mãos comprometidas, tremem ao se lembrar que os remos caíram na água, matando completamente o sonho de alcançar algum porto próximo ou distante.
Seja como for, Devú não deixa de ser uma pessoa amável. Mantem o abraço afável aos seus trabalhadores que estão alí, na loja, por detrás do balcão, com muito pouco para vender, quase nada. Já não é a loja comercial que move um homem que se tornou personagem pelas suas características peculiares, mas a história que essa loja emana. Abandoná-la seria igual a abandonar-se a si próprio e desvalorizar tudo o que os seus pais fizerm. É por isso que se mantém à espera de um comboio que ele sabe muito bem que não vai chegar.
Parece - quando espreita pela porta cá para fora onde os jovens passam ignorando-o –conformado com a negligência da memória de todos nós. E alí mesmo em frente à sua loja, tem a casa de Tsungu Thsoni, e os jovens nem sequer conhecem esse nome, nunca ouviram falar de Tsungu Thsoni, nem de Devú, e Devú faz parte da nossa história, mesmo que ele não reivindique nada.
E assim a nossa cidade vai-se diluindo na perca de elementos do passado, que serão importantes para escrever sobre os acontecimentos da cidade. Então os nossos livros, sem as páginas como Devú, podem não estar completos. Ou seja, o arco-íris só é arco-iris com todas as cores.