Cheguei à casa de madrugada, encharcado de bebida. Passei toda a noite entregue a uma intensa borracheira, sabendo muito bem que alguém me espera com amor e dor, mas nunca me importei com isso. Tornei-me um alcoólatra, um posto que fui atingindo paulatinamente, copo a copo, até agora que já não sou capaz de voltar ao ponto em que era feliz nos braços de uma mulher que me tirou da lixeira.
Entro de mansinho, mesmo estando no estado em que estava. Abri a porta que a minha companheira nunca tranca antes de eu voltar, ela está cansada de se levantar de dentro da noite e muitas vezes de dentro da madrugada, para atender a um farrapo que sou. Até porque isso dá-me algum alívio, pois tenho consciência de que é muito aborrecido acordar alguém em determinadas horas, ainda por cima em circunstâncias de grande irresponsabilidade e falta de respeito. E grande falta de consideração por um anjo do qual recuso protecção.
Mas eu não páro de beber, mesmo sabendo que depois disso, já não estarei em condições de aquecer o coração de alguém que sempre cuidou da minha vida. Estou pouco me lixando, deixa-me beber, pois agora abdiquei de mim, sou uma pipa. Só assim, em estado etílico, é que consigo repetir as músicas que sempre me sustentaram a alma, e só assim é que também os dias tornam-se céleres, pois de contrário, a vida será um sufoco.
Então, como dizia, chego de mansinho mesmo estando no etado em que estou. Abro a porta e apanho um grande susto. A minha mulher, contrariamente a todos os outros dias em que recolhe no nosso quarto onde não dorme enquanto não chego, está acordada, deitada no sofá ouvindo Mountain Shade, de Sibongile Khumalo. Na mesinha de centro tem a bíblia aberta. Olhou para mim com os olhos marejados, sem dizer nada. E eu não sei o que senti naquele momento.
Nhathwsa é uma mulher muito linda, imerecedora de toda esta bosta que sou, mas ela ama ardentemente esta bosta. É por isso que agora aproxima-se, sem se importar com o cheiro de álcool e tabaco que exalo e diz, senta-te, amor, vou aquecer uma soupinha. E eu respondi, estou sem apetite! Mesmo assim ela foi à cozinha e pouco tempo depois voltou com a soupa fumigante e pediu-me: amor, come um pouco, vai-te fazer bem.
Enquanto ela alimentava-me tipo bebé, o MP3 liberta Song for you, de Ray Charles, e ela perguntou-me assim, estás a ouvir essa música? Na verdade o que eu mais queria naquele momento era que não ouvisse aquele tema profundo que nós os dois gostamos de escutar e sentir, abraçados um ao outro, porque já não mereço nada da minha mulher, a não ser o desprezo total.
Depois de ter vivido grande parte da vida acima da atmosfera, gozando do mel e leite, o diabo tratou de trazê-lo cá a baixo onde teria o fel como alimento. Tinha um carro da marca Volkswagem station, num tempo em que poucos da sua raça negra, ousariam adquirir uma viatura pessoal. Fazia parte, ainda, da sua colecção de bens, uma moto de 250 cm3 com dois tubos de escape. Era um janota que se destacava entre os seus, mas tudo isso, sem que ele próprio desse conta, escorregou das mãos e passou a levar uma vida de rastejante.
Voltou para Inhambane depois de longos anos, andando de província em província como oficial de primeira classe do Estado colonial português. Era respeitado, não apenas pela sua formação académica, mas também porque detinha uma postura de gentlman com vasta cultura, possuía fina educação. Nunca vociferava, mesmo quando perdesse as estribeiras. Mas tudo isso diluiu-se a partir de um determinado momento.
Ao pisar a sua terra, de regresso, depois de mais de quarenta anos, o choque que teve é que ninguém se recordava dele. Ninguém o conhecia. A casa onde nasceu estava abandonada, as paredes ruiaram, e o tecto esparramou-se sobre elas. Não havia vizinhos próximos quando ele partiu, agora tem casas novas e modernas à volta, cujos donos são desconhecidos. Estranhos. Como é estranha toda a cidade, para um homem que já não tem muito a oferecer. Perdeu tudo o que a vida lhe havia provido.
Agora, depois de perceber que não terá nenhum ponto por onde recomeçar, ou a partir do qual irá continuar o sofrimento, a única esperança que parece existir, reside no recolhimento à ruína deixada pelos pais, onde vai conviver com a bicharada. Ganhou a consciência de que o sol para ele jamais irá renascer, para lhe lembrar a música que gostava de ouvir no reprodutor do seu carro. Mesmo assim, sabendo que do escuro não vai sair mais, não tem medo. Olha para os chacais de frente.
Nas manhãs levantava-se e vai à gandaia, de onde traz, quase sempre, algo para comer e recolhe na sua pequena cabana feita de papelão no meio dos escombros. Não pede nada a ninguém. De vez em quando anda pelas ruas da cidade sem que ninguém o cumprimente, sem que ninguém olhe para ele de forma particular, ou se alguém o olha, fá-lo com desdém. Porém, não se importa com as pessoas, o que ele quer é a liberdade de poder caminhar na memória do tempo em que vivia na lua.
Surpreendentemente, enquanto eu esperava um amigo meu na esplanada do Hotel Inhambane, na véspera do Natal, vejo o homem andrajoso vindo na minha direcção, com um ramo de buganvília na mão. Pensei que vinha pedir-me qualquer coisa para comer, mas não! Chegou perto de mim, estendeu-me o ramo de buganvília sem flores e disse: é teu presente de Natal.
Tremi de medo ao receber o presente, e ele foi-se embora, sem dizer mais nada, depois de me focar com um olhar cheio de esperança.
Todo o sorriso que me é dirigido é como se fosse a aurora em si, não importa de quem vem. A vida só é bela quando há um sorriso a suportá-la. Sem isso, tudo o que formos a fazer tornar-se-á em comida salgada com sal insípido. Será um alimento que abastece apenas o corpo, porém o espírito vai manter-se vazio, deambulando sem sentido por caminhos escuros, onde o que reina serão os pássaros da noite, ou a gargalhada sarcástica das hienas.
Então, em toda a minha vida, jamais havia recebido um sorriso como este, de uma criança acamada no hospital, engessada em todo o corpo, do pescoço aos pés, incluindo os braços que não podem mover-se. Olhei para ela, colocada numa cama ortopédica cheia de sondas, na enfermaria onde há outras crianças de baixa, porém estas, em liberdade apesar da dor. E o que senti por dentro não tem palavras para descrever.
A enfermaria está arejada, mas isso não será suficiente para reconfortar um menino que não pode mexer nenhum membro da sua estrutura, para além da cabeça. A cabeça sozinha não se alegra, não vive. O corpo também, sem a cebeça será uma massa entulhada. E nesta circunstância, as duas partes sofrem pelo amor que as une.
Aproximei-me do miúdo que se mantinha em silêncio, no seio do burburinho provocado pelos companheiros da enfermaria que recebiam visitas. Vi uma senhora que também tomava a mesma direcção que eu, contudo, antes que chegasse perto, encheu-se de lágrimas e teve que recuar. Outras senhoras, vestindo a pele de mãe, choravam de longe sem coragem de avançar até ao pequeno doente. Não suportavam o choque profundo de ver um enfermo de tenra idade com todo o corpo embutido em gesso.
Mas eu tive que reunir todas as forças que tinha e cheguei perto da cama ortopédica que acolhia o petiz, e saudei-o: olá! E ele respondeu, de forma quase inaudível: olá, como está?
Não suportei a forma tão perturbante como a criança reagia à minha saudação, então não contive as lágrimas, mesmo sabendo que não devia manifestar aquele sentimento de comoção. Tremi de medo quando ela sorriu perante a minha fraqueza, como quem diz: este é o outro lado da vida para o qual ninguém está preparado! Ou, por otras palavras, quis lembrar-me que a qualquer momento podemos ser empurrados para os cactos!
Se eu fizesse alguma pergunta a este pequeno paciente, seria uma grande estupidez. Uma crueldade. Por isso mantive-me calado durante o pouco tempo que estive ali a ser fustigado por uma dor que parecia minha também, até chegar a hora de me despedir.
- Já vou, menino, só vinha te saudar.
- Obrigado, tio, quando é que hás-de vir outra vez?
Não respondi. A pergunta era demais. Superava as minhas capacidades de raciocínio.
- Tio, a próxima vez que vieres, traz-me bolachas, por favor.
Passei a noite inteira sem dormir, imaginando uma criança sofrendo, impedida de movimentos. Sonhando em voltar para casa, e entrar novamente em contacto com a natureza, contrariamente a este lugar cercado de paredes brancas, com cheiro forte a remédios.
No dia seguinte comprei um sumo de goiaba, uma pacote de bolachas sortidas e fui ao hospital para ver a criança que amanhã pode vir a ser minha amiga, quem sabe! Sentia-me feliz ao pensar que alguém muito especial estaria à minha espera, ansioso. Então, lá fui, dizendo para dentro de mim: aí vou eu, amigo!
Quando cheguei dirigi-me imediatamente à cama ortopédica, e alí, o menino não estava. Olhei para todos os lados da enfermaria e percebi que as outras crianças choravam, sem dizerem nada, mas eu percebi tudo, antes mesmo que a enfermeira acabada de entrar me dissesse: o teu amigo já não existe!
Eu tinha fé de que este dia chegaria. É o matar de uma sede antiga, na longa espera pela conclusão da ponte que ora me leva à Oeiras, porém sem nada nas mãos, a não ser a ansiedade de sobreavoar o Tejo antes de aterrar e sentir os cheiros jamais inalados. Aliás, trago comigo às costas, no bornal, palavras de verdade e de imaginação, na esperança de ver fortalecido o nó dos nossos anseios.
De Inhambane à Oeiras é um sonho, mas a ponte está pronta, transborda beleza. Até porque todo o valor da nossa amizade está sintetizado no suor do nosso abraço. E eis-me aqui, caminhando por sobre o tabuleiro deitado amorosomente entre o Índico e o Atlântico, com o único propósito de partilhar as minhas emoções com os oirenseses. Talvez não só. Quem sabe!
Nasci numa cidade pequena, em Moçambique, como bem o sabes. Um lugar extraordinário. Único. À primeira vista, quando você chega aqui, sobretudo ao final da tarde, a sensão será de que as pessoas fugiram. As poucas que vai encontrar, também estarão a recolher para as suas casas, deixando as ruas sozinhas. Sem gente nem carros. Nem nada. Quer dizer, o poeta não mentiu: para cá da porta, nada! Para lá da porta, também nada!
Aqui ninguém acorda antes de o sol raiar. Para quê, se tudo está perto, ao alcance da mão! São os pássaros que nos despertam, cantando canções regidas pelo próprio Deus, porque foi Deus quem aspergiu o sossego nesta terra onde eu nasci. Um sossego que alguém, mesmo assim, teima em vitupera-lo.
Inhambane é uma cidade linda, com histórias muitas vezes perturbantes, que eu gostaria de contar aos oeirenses. Aos oeirenses porque Oeiras é cidade gêmea de Inhambane. De onde tentei sair algumas vezes à busca de outro oxigénio, mas logo a seguir percebia que o meu oxigénio estava aqui. Por isso sempre voltei.
Andou por aqui um homem chamado Matangalane Boby, cujas origens podiam estar ligadas à São Tomé, ou Cabo Verde, não sei bem, mas que o tempo levou-o a ser uma espécie de nosso mascote. Morreu como um cão vadio, sem família sem nada. Todavia, nas tertúlias, até hoje, quando o seu nome é evocado, nasce imediatamente um turbilhão de histórias à ele ligadas. Umas verdadeiras, outras inventadas pelo povo.
Tenho falado muito sobre esta figura estranha, e cada vez que isso acontece, fica sempre qualquer coisa por acrescentar. Mas hoje só vim dar um abraço à Oeiras, desejando boas festas de natal e um bom final de ano. E dizer que sinto-me muito feliz por celebrar a vida desta forma, convosco.
Pois é: na verdade não tenho nada para vos dizer. Só queria transmitir os meus cumprimentos à cidade gêmea da minha cidade.
Um abraço profundo, com cheiro à água de côco.
Sei que sou desdenhado em todo o lado mas isso não me importa. Sei também que o meu desfiladeiro alagado de cactos não tem volta, porém ressurjo em cada golpe. Sou um lagarto com escarpas permeáveis, incapazes de me defenderem dos ventos infaustos que me fustigam a alma abandonada na noite de bréu. Cheguei ao ponto em que já não sinto nada, a não ser as espigas de aço que me ardem em todo o dentro dos meus sentimentos profundos.
Ainda ontem vi uma das minhas antigas mulheres a mudar de direcção para não passar perto de mim quando me divisou de longe, então percebi o nível em que estou. Na verdade sei da minha abominação, que já não me dói. Tenho as malas aviadas, cheias de memórias. São elas que me acompanham em forma de músia, em cujo refrão ribomba esse verso cataclítico que diz assim, quando estiveres a atravessar o inferno, não pára de andar. E eu não páro de beber.
Abdiquei das ilusões, recuso-me a sofrer. É por isso que estou em contacto permanente com a morte, na minha esperança cheia de demora. Não temo nada, nem a guilhotina que vai descer em vibração ao encontro da minha carne. Eu sei que depois destas farpas todas que me cercam, triunfarão as harpas. Para gáudio do blues.
Os meus amigos zarparam. Todos. Fugiram do cheiro que exalo das minhas palavras incongruentes. Têm vergonha de mim, por isso ao lhes ser perguntado se me conhecem, respondem que nunca ouviram falar desse indivíduo que sou eu. Virei-me para um deles, num dia de chuva em que, por coincidência estávamos os dois abrigados num alpendre da cidade, e perguntei assim, vocè não me conhece, irmão? Ele disse que não, não me conhece.
Depois de beber quero falar. Cai sobre mim a necessidade irresistível de repetir histórias fascinantes do passado. Quero cantar em surdina as músicas dos meus ídolos, mas ninguém me ouve, e isso aumenta as minhas feridas que não páram de sangrar por dentro. O pior é que já não me permitem a entrada nos bares, nem nos esconderijos imundos onde se bebe aguardente de cana em copos jamais lavados.
Então, toda esta rejeição significa que os meus convivas são os arautos do próprio diabo, o Lúcifer. São eles que me vão acompanhando com todo o rancor à câmara de cianeto, e eu não posso fazer nada, as minhas forças esvairam-se na bebida. Transformaram-me em desperdício. O meu relógio deixou de marcar as horas que sempre foram cruciais para a renovação do amor. Agora é indiferente que seja manhã ou tarde ou noite, vivo abandonado no escuro, sem mais dúvida alguma de que serei executado no próximo pricipício. Mas enquanto a morte não chega, deixa-me beber.
É verdade! Depois desse mar todo de amor que despejavam sobre mim, sem que eu desse conta do tesouro que isso representa, escolhi a reclusão da solidão, que na verdade é um jardim sem limites, porém desprovido das flores que eram vocês as sete, na mesma intensidade, cada uma no seu tempo. Agora vivo das vossas lembranças. Do vosso cheiro que ainda me percorre sem parar em todas as veias do meu sentimento. É como se ainda me pertencessem, como se ainda, na profundeza das noites, fosse sentir o vosso peito macio tocando-me nas costas.
Cheguei a conclusão, sem que para tal fizesse qualquer exercício mental, que vocês as sete amavam-me da mesma maneira, no sentido de que o que mais queriam de mim era a minha felicidade. Eu era o vosso mote. Partiam com esperança e anseio para diversas searas como os pássaros que saem dos ninhos a procura de provento, eu era a vossa rampa e porto de retorno. Ao regressarem, cada uma no seu tempo, eu era o poiso onde assentavam o corpo suado. Desejoso de mais uma noite de amor.
Mas mesmo assim, com a vida levada em órbita, foram percebendo em cada momento do nosso convívio, que afinal serei uma decepção, eu também senti isso. Sabia da minha incapacidade de amar. Tinha consciência do meu imerecimento do amor. Do vosso grande amor que até hoje não abandona os meus pensamentos. E vocês as sete lutavam pelo ajuntamento de ouro para mim, e eu levei esse ouro e coloquei-o no focinho dos porcos, e depois virei-vos as costas sem me preocupar em levar nada, desvalorizando o vosso suor vertido. Em vão.
Hoje quando me lembro dos vossos olhares dormentes na ressonância do sexo que faziamos em cascata, sinto que nunca fui pessoa para ser amada por nenhuma de vocês as sete, mas isso corta-me o coração aos pedaços, sobretudo porque nunca se esqueceram de mim, depois destes anos todos que passaram. Jamais se riram dos meus fracassos enterrados nas bebedeiras absurdas. Antes pelo contrário, vocês as sete querem que eu volte a ser feliz, como quando o meu coração estava nas vossas mãos. Sei disso através das pessoas com quem comentam em ocasiões, querendo saber como estou.
Eu já não falo de vocês, limito-me a agradecer os momentos intensos que me ofereceram. De graça. Sem o merecer. Sinto-me feliz por saber que os vossos caminhos estão cheios de luzes. Então peço a Deus que coloque mais petróleo nos candeeiros pendurados nos postes da vida prenhe que merecem, para que não se apaguem. E a mim, deste lado, no meu celibato, o que me resta neste fim de estrada, é fingir que sou um cantor de blues, isso torna-me vital.
Obrigado, minhas sete ex-mulheres, pelos laivos de felicidade que experimentei convosco. Depois disso tornei-me um vagabundo, que mesmo assim ainda acredita no futuro. E acredita também que no dia da minha morte, vocês as sete não se esquecerão de levar flores para embelezar a campa deste vosso ex-marido que não presta para nada.
Não pára de fumar mbangui (cannabis sativa), cultivada ali mesmo, nas montanhas. Há dois meses que não sai da cubata construída debaixo de uma gigantesca árvore, cuja copa transborda o tecto do casebre, tornando o ambiente ainda mais sombrio. Está mais magro do que a última vez que apareceu na televisão, ostentando a arrogância que no fundo é uma fachada, Nhongo não tem certeza de nada.
O general está em delírio, a cada dia que passa vai perdendo descernimento. Nunca soube o que é tremer em momentos cruciais, quando em combates ferozes a vida dele tinha que triunfar, mas agora treme profundamente, tenta buscar equilíbrio no mbangui e no dolo (aguardente de frutos silvestres), porém a realidade é implacável, o homem está em derrocada. Passa as noites de pé, tentando trepar as paredes da sua casota como um lagarto desesperado. Grita chamando por Afonso Dlakama, “vamos fugir, comandante, o inimigo está aqui perto!”.
Os soldados estão com medo. Se continuarem com Nhongo serão mortos pela avalanche da tropa governamental que progride naquilo que já está parecendo uma passeata em direcção ao cume, onde um general inteiro passa a vida como um sonâmbulo, sem a verve de uma luta que não se sabe se alguma vez fez sentido. Se fugirem dos acampamentos e tentarem entregar-se, podem ser castrados. Outra ideia seria matar o general, e os seus sequazes já o viram crivado de balas para no dia seguinte aparecer novamente vivo! Mariano Nhongo é imortal!
Ontem saíu do casebre e veio cá fora reunir-se com as altas patentes do seu exército já moribundo. Incapaz de fazer algo a não ser os laivos sanguinários e injustificados nas estradas. Estava visivelmente ébrio, e os soldados temem-no quando está naquele estado. Tentou articular algumas palavras mas o que ele conseguia era balbuciar como um condenado a morte já em estado de incosciência, após a injecção letal. Mesmo assom ainda conseguiu dizer de forma clara, naquela reunião inesperada, que jamais se entregaria, “eles que me venham matar!”.
Mas o que o general diz é mentira. Nhongo está a tremer. O chão que pisa, treme também. Nas noites os mochos fogem das redondezas, já não piam nas suas sinfonias arrepiantes, e isso significa que o homem está no fim da linha, ou por cima da calçada, onde não pode cair nem para um lado, nem para o outro lado. A calçada é a dolo que bebe como um louco, e o mbangui, que lhe alucina e leva-lhe aos combates fratricidas que a história vai registar num livro lúgubre.
Os homens que formam a corte de Mariano Nhongo nem sequer têm perguntas para fazer a um búfalo ferido, que no lugar de ir contra o obstáculo, agora foge e esconde-se no dolo e na cannabis. Uma cannabis que outrora dava-lhe vigor, mas que agora definha-lhe o corpo e alma. E a mente baralhada, eu também sou ndawu como o general Dlakama, apesar de ter nascido na Zambézia! Não sou estúpido a ponto de me entregar a pessoas sem testículos. Eles sabem que não têm testículos, é por isso que querem os meus. Então que os venham buscar!
Estas são as palavras frequentes que se ouvem de um general atarantado. Amedrontado. Que caminha no escuro, sozinho. Ele já não tem dúvida sobre a guilhotina que vai descendo devagar, dando-lhe tempo para que todo o medo se materialize até as profundezas do seu ser, antes de decepa-lo. Nhongo sabe dessa espada irrversível. Perdeu a capacidade de controlar o sistema úrico. Então não lhe resta mais nada senão esperar, pelo último pio dos mochos.
No sentido de que defende a liberdade individual. É um personagem que se destaca - cá fora - pelo cachimbo dependurado nos lábios. Pelas botas também. A Beatles. Sempre engraxadas à boa maneira dos quelimanenses, talhados para gingar, sem soberba. Mas é a forma como ele encara o estúdio, onde exorcisa os demónios, que vai fazer com que as pessoas do seu tempo, e muitos outros antes do seu tempo e depois, fiquem colados ao rádio quando é ele a trabalhar.
Há músicas que António Jamal toca, e que noutras rádios jamais serão ouvidas. Ele recusa-se a seguir os padrões estabelecidos pelos princípios de radiodifusão, e entra pelo atalho que ele próprio criou, marimbando-se para as regras. Comunica na cabine como se estivesse na mesa com os seus amigos a beber café, em mangas de camisa, numa cavaqueira sem fim. É um marinheiro que prescinde dos remos para levar a sua mwandiya (almadia) ao destino. Os remos são a música.
Uma das melhores formas de você envelhecer sem dor, é escutar António Jamal, no Rádio Desporto da Rádio Moçambique, “à caminho das 13”, entre o Índico e o Atlântico. Na velhice não se fala do futuro, o futuro é este presente. Então, tudo o que Jamal tira cá para fora, é o testemunho do passado. Não importa o que vem. O que importa é o edifício que este locutor está constantemente a renovar, com os mesmos materiais, que nunca mudam.
Provavelmente estejamos em presença de um grande defesa, não como Joaquim João, mas um defensor desse património que é a música de outro tempo. Que muitos teimam em querer apagar da forma mais inculta. É isso! Enquanto a juventude inventa estrelas, António Jamal nunca quis ser estrela, ele brilha assim mesmo. Com luz própria. Tocando música que ajuda a evelhecer com alegria.
Pois é! Jamal pode estar aqui em baixo - no sopé - parecendo um taciturno sem nada nas mãos, mas não é isso que conta. Pode ser ainda que os seus pulmões estejam a bombear cada vez menos oxigénio, ou os “vedantes” a vacilarem. Seja como for, o que ele faz é feito no cume, valorizado por uma música cuja melodia é filtrada pelo fogo. E pelas palavras. As mesmas palavras daquele tempo. Sempre novas.
Sabe bem uma grande caneca de cerveja nesta manhã em que estou aqui, sentado na esplanada do Hotel Tofo-mar. Outra vez. À semelhança de todas as vezes que tenho vindo a este lugar que a vida oferece-me. De graça! É como se toda a existência fosse esta síntese, ou seja, como se tudo se circunscrevesse na praia e nas dunas e na música orquestrada pelas ondas que não páram de se esbater na terra. Em constante progressão lenta. Porém, irreversível.
O líquido que parece ouro, borbulha sem parar no interior da caneca, transmitindo a mensagem de que a cerveja está viva, e isso reconforta-me. Significa que eu também estou vivo. Como as gaivotas que voam em voo rasante por sobre o mar do Índico, ao encontro dos seus destinos, é lindo. Há uma combinação perfeita entre o oceano que está aqui mesmo, aos meus pés, as dunas violadas, os pássaros marinhos, o silêncio. E eu, que me entrego totalmente a liberdade.
Para além da minha, há uma outra mesa ocupada por dois casais de raça branca, entrados na idade. Falam tão baixo que não consigo perceber que língua falam, mas também estaria pouco me lixando com isso, não fosse o facto de estarem a beber cerveja como eu. Em grandes canecas. No mesmo lugar. Com a mesma protecção do Índico.
Estou na quinta caneca e já transpus a atmosfera. Levito no cosmos, onde as coisas não dependem de mim, mas da falta de gravidade. Sinto um grande prazer como se a minha alma, ela própria, tivesse asas de águia. Plano em toda a dimensão do espaço que vai sendo criado pela minha imaginação. Pelo efeito do álcocol que me vai entranhando. Sou um homem livre e, desde que estou aqui há mais de quatro horas, ainda não chegou mais ninguém. Os dois casais que partilhavam comigo a esplanada, bateram as asas como passarinhos cansados que agora carecem de repouso.
Pedi mais uma caneca, a sexta. Sem saber ao certo se seria a última ou não. Cada gole que viro goela abaixo, é um degrau que subo em direcção a libertação, e a memória abre-se como a luz do amanhecer que nos traz novas auroras. Sinto leveza no meu interior e descubro-me a repetir em surdina as músicas que aprendi a ouvir nos discos da Rádio Moçambique, nos tempos em que a locução era a minha jangada. Então quer dizer que estou em órbita.
Mas o dia está a entardecer sem contemplações, deixando-me todas as suas marcas para que eu possa recordar-me de tudo amanhã. O mar ensorberbece-se, meio furioso, em maré cheia, como que a dizer, vai para casa! Na verdade estou aqui desde o meio da manhã e já são 16.00 horas. Estou saciado. Pelo camarão que comi. Pelo ambiente do mar em harmonia com as dunas e as gaivotas. Pela cerveja bebida numa grande cabeca. Em paz e em liberdade.
Há dois que não fecha os olhos. Não pestaneja. O médico que cuida dele está em desespero. Recorreu aos colegas, que responderam de imediato, mas a situação não muda. Nem para frente, nem para trás. Tentaram induzi-lo com aparelhos, na esperança de trazê-lo à estabilidade. Sem sucesso. Chegaram a pensar no sistema de respiração boca-a-boca, ideia imediatamente reprovada por se mostrar desnecessária. Os pulmões de Mbata Mapengo não pararam de respirar.
Nunca foi visitado por familiares desde que está aqui, não se conhece nenhum. Nem por amigos. Chegou ao hospital em estado de coma, após ter sido sacudido por um camião, cujo condutor nem sequer parou para alguma coisa, como se Mbata Mapengo fosse um cão. Foi uma mulher generosa, se calhar uma samaritana, que, passando casualmente pelo local do sinistro, parou o carro e levou o homem ao centro de saúde.
Parece um cadáver, naquela posição chocante, coberto de lençóis brancos em todo o corpo, deixando apenas a cabeça que me lembra a mulher árabe adúltera, enterrada até às axilas, com o “crâneo” à mercê das pedras. Mbata Mapengo pode estar assim, se calhar na expectativa de que haja algum milagre que lhe permita dizer a última palavra antes de morrer.
Entrei para o interior da enfermaria – onde ia visitar um vizinho - e alguém me disse que aquele senhor não fecha os olhos há dois dias. Não fala. Não pestaneja. E, segundo relatos que vão me chegando dos doentes e dos visitantes, os médicos não sabem o que fazer. Para eles, este homem não está nem morto, nem vivo. Está em estado de dúvida. Provavelmente em estado de talvez.
Aproximei-me do desafortunado, por instinto, sem saber o que ia fazer perante um cenário macabro. Os próprios médicos e os enfermeiros e outros agentes da saúde, tinham capitulado. O corpo de Mbata Mapengo recusava-se a receber sondas. Houve ainda a ideia, acreditando no que se diz nos corredores, de alimenta-lo por via retal, porém, esse recurso desconfortável não chegou a materializar-se. O anus estava duro de tal ordem que se tornou inviável esse procedimento.
Mas eu cheguei perto de Mbata Mapengo. Olhei-o nos olhos e em resposta a minha ousadia, recebii profundos arrepios na medula. Cheguei a conclusão de que tinha ido longe demais, e agora não me resta mais nada senão render-me a asfixia. Ou seja, os olhos que não se moviam há dois dias, pestanejam agora perante mim, . Mbata Mapengo saúda-me com os olhos, perfurando-me todo o interior. Então, estou completamente apavorado.
Mbata Mapengo moveu os lábios. Balbuciou. E as únicas palavras que ainda consegui captar nesse balbúcio, referiam-se ao juiz Efigénio Baptista. Eram sílabas desarrumadas. Inexpressíveis. Retalhadas. Mesmo assim esforcei-me a junta-las, tendo conseguido traçar uma linha que dizia assim, tenho pena do juiz Efigénio!
Mbata Mapengo ia dizer mais alguma coisa. Nada! Os lábios voltaram a cerrar-se. Os olhos fecharam-se, e logo a seguir ouviu-se um vibrante e profundo suspiro, que levou toda a enfermaria ao silêncio de sepúlcuro.