Por uma questão de salvaguarda e compreensão, antes que os amantes do imediatismo e da leitura menor façam uma hermenêutica ingrata e desajustada ao âmago deste texto, chamo aqui o conceito de Ignorância Quântica. Na Ignorância Quântica, Thomas Vidick e Stephanie Wehner esclarecem que no mundo quântico é possível um aluno esconder a sua ignorância e responder a perguntas correctamente num exame, sem que a sua falta de conhecimento seja detectada pelos professores. A par disso explicam, também, que este conceito alerta sobre a necessidade de conhecer o todo, para que as nossas conclusões, centradas em conhecer apenas as partes, não nos façam resvalar para o imediatismo e edificar a ilusão do conhecimento. Isso pressupõe que quanto mais partes conhecemos sobre algo, mais entendemos o todo – e quanto mais entendemos o todo, maior compreensão temos de cada uma das suas partes.
Esta colocação vem a-propósito da participação de um grupo de músicos moçambicanos na “Expo Dubai 2020”, cujo assunto tornou-se viral e fixou assento na esfera pública nacional. Alguns intelectuais, diga-se, orgânicos içaram a bandeira do imediatismo, na medida em que emitiram artigos opinativos centrados apenas num fragmento da performance dos músicos moçambicanos que foram escalados ao evento. A “pólvora” que deu origem à polémica é a nova vaga de artistas, com destaque para o “pandzista” Mr. Kuka, que se fizeram ao palco de Dubai. Na imagem nota-se uma entoação vocal que, na óptica de alguns, sugere desafinação, para além de exibir uma narrativa lírica aparentemente supérflua. Foi a partir deste vídeo que alguns artigos opinativos sentenciaram, com “pena capital”, a participação de Moçambique em Dubai. O excesso de saudosismo ao invocar as figuras de Wazimbo, Mingas, Xidiminguana, Ghorwane, etc., e o “anti-pluralismo” que sugere vedação a inclusão etária, rítmica e territorial, estão entre os principais enunciações dos articulistas.
Sucede que a performance dos artistas moçambicanos em Dubai compreendeu também outros momentos, designadamente a interpretação de clássicos como são os casos de Eyuphuro – cantado em Emakua pelo jovem Valdemiro José, a Canção Popular “Elisa” pela jovem Onésia Muholove. É aqui onde Ignorância Quântica encaixa aos que se ativeram a sentenciar, com “pena capital”, a participação de Moçambique em Dubai. Socorreram-se de um fragmento apenas e edificaram uma pseudo razão. Usaram uma amostra não representativa para inferir o que não é. Invocar clássicos da música como exclusivos baluartes da Cultura é de um tamanho erro de raciocínio, todavia os clássicos merecem o seu respeito porque funcionam como referenciais à edificação da Memória Colectiva - sem que isso implique necessariamente a extensão forçosa do passado.
Concordo que a Cultura deva, como observou Cheick Anta Diop, afigurar-se Baluarte de um povo, mas isso não impõe que tal desiderato se consiga apenas por via da extensão do passado. Há Valores, diga-se, relativamente novos que também passam a residir no imaginário colectivo (Memória Cultural Social). À semelhança da capulana que outrora nos foi imposta num contexto subordinação imperial árabe, e do terno e gravata “herdado” do império ocidental, há tantos outros valores alheios que se “herdam” e se tornam “nossos”. Todas as Culturas são produto do hibridismo - a pureza já não existe. A nossa preocupação para com a Cultura não deve ser reduzida às indumentárias e as artes musicais. Deve gravitar sobre o “Pensamento Moçambicano”. O mais importante, no seio destas celeumas desnecessárias e triviais, é preocuparmo-nos sobre como a Identidade Cultural no prisma do “Pensamento Moçambicano” pode gerar produtos culturais no contexto das Indústrias Culturais.
Nessa ordem, e sem querer discutir a meritocracia ou não da qualidade, não me parece racional reivindicar a colocação dos clássicos na montra contemporânea enquanto produtos dessa Indústria Cultural. Afinal são os Justin Biebers da pátria que existem porque têm o suporte de uma plateia local. Os Justin Biebers da pátria existem porque têm o suporte das maiores janelas mediáticas da praça (é o que a televisão nos oferece quotidianamente), sem descurar o suporte das maiores empresas locais em matéria de trocas comerciais. Se as massas não “compram” e tão pouco “pagam” para ver e ouvir os clássicos – qual seria a racionalidade de exibi-los em pessoa em Dubai? Neste prisma, a discussão que quanto mim seria justa é como tornar os Justin Biebers da praça culturalmente mais robustos dentro e fora de Moçambique e, sobretudo, como torná-los capazes de gerar produtos culturais que explorem a Memória Cultural local.
É importante frisar que a língua é o maior vector cultural e o Emakua, que foi cantado na interpretação do Eyuphuro em Dubai, para além de firmar a Memória Cultural Étnica, está entre as línguas nativas mais faladas em Moçambique. E sobre a Memória Cultural Étnica é oportuno esclarecer que a Cultura se resume em Valores materiais e espirituais de um povo. Tais Valores não implicam necessariamente a extensão do passado. Têm que ver com o que se absorve ao longo de um tempo e passa a residir no repositório colectivo que designamos por Memória Cultural, sublimando sobretudo o “Pensamento Moçambicano”. E sobre o mérito ou demérito em Dubai, este debate deve, antes, tomar por base os pressupostos consensuais sobre Cultura e, depois, discutir a meritocracia ou não da actuação dos nossos fora.
Termino referindo que, sob ponto de vista de opções e escolhas artísticas, não me identifico com qualquer um dos que foram escalados a Dubai – o meu saxofonista é o Ótis, o meu baterista é o Stélio Zoe, as minhas vocalistas são muitas e, para além da Zena Bacar (em memória), nenhuma delas esteve lá, todavia julguei oportuno e justo “separar as águas”, pois pareceu-me que o populismo já estava a dar sinais de enterrar precocemente um assunto premente. Portanto, a Ignorância Quântica levou-nos ao falso problema e este está a conduzir-nos a um debate periférico. Nada tenho contra discussões periféricas, mas elas fabricam a ilusão do conhecimento.
Circle Langa
(Comunicólogo)