Não chove em noite de lua cheia. É um saber secular, nem por isso, enciclopédico. Endogeneidade conceptual que transforma o comum em algo super natural. Mas os tempos mudaram, as vontades também. Agora, chove desregradamente. Noutros tempos, a chuva, em jornada solarenga, até simbolizava casamento de macacos. Eles próprios se apadrinhavam, e contemplavam o doce sabor arco-íris.
Encontrei o velho Nahota Mustafa, ainda imperial, absorto em seus pensamentos, descrente da vida e desconfiado dos tempos. Debutamos nas saudações, nessa expedita e metódica forma de reencontros, com as cordialidades costumeiras. Aprimoramos os rituais e as apologias à paz, na gentílica praxis Namúli, tão adulterada pelos tempos.
A saudação continua um procedimento que revela respeito e cordialidade; segue os preceitos e, de forma hábil, auxilia a dirigir a conversa para o objectivo que pretendemos. Na Ilha, por tradição, os critérios hierárquicos definem as normas do respeito e da fraternidade.
Nahota, ou comandante do Dhow, esse milenar barco à vela, quem sabe oriundo do Omã, lá no médio oriente, e que galga as ondas pela nossa costa, também, vive intrigado com a natureza. Esmiúça suas esperanças para contemplar a serenidade do mar, os dias carregados ou vazios de tudo. São as águas que oferecem os frutos para a colheita, ventos para a sementeira, nesse movimento de ondas sobre as quais transbordam as saudades. Ele vê a sua Ilha, aqui onde Luís de Camões, poeta sénior português, também, naturalizado residente, foi celebrado nos seus 500 anos. Nenhum outro lugar fora das fronteiras de Portugal se importou, tanto com ele.
Esta Ilha perdeu a sua graça e resvala agora em novas inquietações e mistérios. Nahota, continua incrédulo e contempla o oceano que deixou de ser tudo até a infelicidade felicidade. Ele se preocupa com a tecnologia avassaladora, pois, ninguém mais precisa do seu conhecimento. Os seus ajudantes vivem presos ao celular; dominam a previsibilidade; se recusam fazer ao mar em dias de tempestade. Sequer sabem contar os números dos passageiros, pela ganância de mais uma moeda ou uma nota de pequeno valor. Esta é a crueldade dos novos tempos.
Nahota também diz que “o fim de uma viagem é apenas o começo de outra”. Já vimos isto escrito em livros de José Saramago. Para ele, o fim da viagem parece ser o fim da história. Todos os dias, ele testemunha muitos centímetros de areia que desaparecem nas praias cristalinas. Os sintomas climáticos que um dia podem afundar a sua ilha. Incomoda que não existam mulheres pilotando embarcações, apesar da ilha receber mulheres conduzindo viaturas todos os dias. Afinal, por onde anda essa emancipação?
Os Dhows, essas incontornáveis embarcações que, ainda, sobrevivem os tempos e as adversidades, transportam pessoas, bens e sonhos, perdurando no imaginário e nas esperanças mais imediatas dos insulares. Sem eles a vida terminaria. Eles são o valor de oxigénio para a sobrevivência da ilha e dos seus habitantes. Junto das areias das praias operam os estaleiros de construção destes Dhows. Nahota acha que já não existem mestres. A sabedoria de construção desaparece todos os dias. Os barcos e as suas madeiras são duvidosos.
Para a construção dos Dhows, os instrumentos utilizados são exclusivamente ferramentas manuais, desgastadas pelo tempo, mas, ainda assim, tão úteis quanto funcionais. Trabalham com madeiras nobres como o Mogno, a Teca e até a madeira da mangueira e do coqueiro. Tudo à volta serve. As cordas são feitas de cascas do fruto do coco, que permanecem dentro água, durante mais de três dias, para depois virarem cordas resistentes que asseguram que as partes amarradas permaneçam sólidas e coesas. Esta é uma corda que nenhuma tecnologia consegue superar. A cola é, igualmente, feita das cascas de árvores e é tão efectiva quanto segura. A cada esquina tem meia dúzias de artesãos, feitos Mestres, que estruturam sua organização social e económica, em boa parte, na construção e utilização destas embarcações.
Quase toda a actividade piscatória da Ilha, e das localidades da costa, Lumbo, Mossuril, Cabaceiras, Lunga e etc. é feita com recurso ao Dhow. Também eles fazem a navegação de cabotagem para o transporte de passageiros. Transportam a história da glória, da heroicidade e dos desígnios de um litoral que deu vida ao continente e reconfigurou sonhos de viajantes e exploradores, traficantes, religiosos, falsificadores e piratas.
Nahota anda preocupado pois estas embarcações, agora, também transportam os noivos e seus familiares entre gentes de Zanzibar e as belas macuas miscigenadas da sua Ilha. Casamentos misteriosos que todos conhecem e ninguém comenta; fingem desconhecer. Ele confirma que existem dezenas de moças casando com jovens de Zanzibar e que viajam indocumentados ao cair da noite. Quem sabe até candidatos à insurgência.
Ninguém sabe ao certo de onde vieram os Nahotas. A Ilha de Moçambique, esse ponto de encontro de poetas e escritores, reinventou-se para a sua sobrevivência, abrigando alguns desses artistas, enquanto outros se dispersaram Norte a cima ou Sul abaixo. Os Nahotas são as marcas e o orgulho do cruzamento de civilizações e culturas. Eles representam técnicas de construção naval suaílis, árabes que criaram os entrepostos e, com eles, a miscigenação tecnológica.
Ao longo dos anos, poucos se preocuparam em documentar ou assimilar a técnica de fabricação dessas embarcações, o que transformou aqueles que detêm esse conhecimento numa verdadeira elite. Uma espécie de conhecimento que passa de pai para filho e de filho… para mais ninguém.
Estes Nahotas continuam os maiores conhecedores dos tempos e dos espaços, são responsáveis por edificar estas conexões e perpetuá-las ao longo dos séculos. Através das suas embarcações, os Nahotas registaram segredos inconfessáveis. Se no passado, eram as pessoas mais respeitadas, o presente lhes virou as costas. Hoje, eles vêem seu prestígio esmorecer, sendo ofuscados pela modernidade.
Nahota controla todo o processo de construção da sua embarcação. De forma discreta, revela confiança para deixar a equipa trabalhar, porém ao mesmo tempo a insegurança que os novos tempos propiciam. Com as falsificações, ele sabe que podem trocar as melhores peças de madeira e colocar em risco o seu Dhow. Manter a chama da técnica e da mestria preservada não é apenas garantir que o Dhow jamais desapareça, mas é o assumir que a economia da costa se mantenha intacta.
Ele e o grupo de amigos e operadores das embarcações falam sobre as mudanças climáticas, noutros termos, como uma pura invenção política e distante do que sempre foi uma realidade naquela parcela do litoral. Eles assumem que as campanhas políticas, nem sempre, se preocupam em explicar essas mudanças. Porém, quando se assumem na governação, então, justificam tudo, ou quase tudo, como fazendo parte do pacote dessas mudanças. Depois, tiram partido para explicar os ciclones naqueles longos comícios que tem mais de palmas do que conteúdos.
Se os ciclones sempre existiram, então, porque, agora, são mudanças climáticas e não ciclones? Ao longo da vida sempre experimentaram ciclones e essa foi a definição. Os mestres dos mares, com suas habilidades e conhecimentos únicos, exigem uma comunicação diferente para serem convencidos. Os Nahotas consideram-se possuidores de poderes especiais, que transcendem a compreensão comum e funcionam como uma reserva científica e climática para a população em geral.
Para todos Nahotas, as mudanças climáticas seriam uma mitomania que gera testemunhos invertidos inverídicos e desafortunados. Mas, se por um lado estão preocupados com essas mudanças, por outro, vivem o stress de uma pesca cada vez menos abundante e difícil. Por conseguinte, a pesca esta longe de ser comparada aos bons e áureos tempos, onde a ilha tinha peixe de sobra para as famílias locais e para a revenda noutras paragens.
Todos os anos, argumentam, as águas, endiabradas e sem escrúpulos nem generosidades, galgam e cavalgam precisos centímetros das suas praias. A este fenómeno lhe foi explicado que correspondia ao avanço do mar sobre a terra. Mas, se interroga, porque razão o mar não roubava a terra antes? Tive de explicar que esta é a batalha que o planeta perdeu. Os pecados que a terra e os homens começam a pagar em vida. Uma espécie de inversão de valores. Sentido contrário da natureza e do próprio mar, nas suas mares mais altas.
A nossa conversa se estendeu pelos ventos. Nahota Mustafa acha que os ventos estão, no mínimo, estranhos e indereccionados. Seguem sentidos esdrúxulos e despojados de bom senso. Trocam de velocidade e direcção sem que se faça um sualat no interior do Dhow. Como observou Chinua Achebe “a terra não pertence ao homem; o homem pertence à terra”.
Falamos da sazonalidade de espécies de peixe que viravam sazonais. Os grandes cardumes migram e procuram outros espaços. Nesta época, a pesca reduzia e os cardumes fintavam as redes de pesca. Sem ventos seguros e nem pescado, as carências deixam os pescadores, e todos os Nahotas, sem o menor sentido de racionalidade e muito menos de sustento. Eles não entendem se as suas vidas se fazem de política ou religião, ou se nenhuma delas. Instala-se, então, a desilusão, e a fé e a esperança são esvaídas.
Nestas explicações, prestei atenção ao canto das mulheres que aproveitam a maré vazia para colectar crustáceos. O seu canto tem tanto de melancolia como se desespero. Falam de jovens que partiram mais para o Norte e nunca mais regressaram. Mas, também, falam sobre os filhos que não aprendem o essencial na escola. Comenta-se também sobre os jovens que bebem incessantemente durante os finais de semana, começando na noite de quinta-feira e só parando no domingo. Os seus filhos bebem de tudo possível e imaginário; vorazes consumidores. Elas desencontram esse sustento e usam o tempo para ensaiar novas melodias e asseguram que precisam de repetir às canções. Os tempos difíceis oferecem temáticas inesgotáveis. As vozes são afinadas e libertam as suas emoções e almas. ‘Quem canta seus males espanta’.
Como escreveu o poeta e filósofo Rainer Maria Rilke, “O futuro entra em nós, para nos transformar em algo que ainda não somos”. A tarde se esfumava lentamente, ameaçando desaparecer com o crepúsculo, cujas cores vibrantes iam do laranja à púrpura, tingindo o céu com tons tão profundos quanto os pensamentos de Nahota Mustafa. Ele queria continuar a conversa, mas não parecia convencido pelas minhas explicações, talvez achando minhas palavras tão efémeras quanto o vento que soprava ao longe.
Eu, que não sei prever os ventos do dia seguinte, sentia o peso de sua desconfiança, pois ele, com sua experiência milenar, sabia ler o tempo e entender a linguagem oculta da natureza. Por isso, duvida da minha capacidade de falar sobre os tempos que virão, as dificuldades que o país enfrentará, e os ventos que, segundo seus instintos, serão mais fortes e constantes.
Dou exemplos, tentando ser didáctico, mas percebo que ele finge acreditar. Seus olhos, que se perdem de forma vigilante no horizonte, revelam a verdade de sua descrença. Ele vê além das minhas palavras e sente o que eu não consigo prever – os sinais da natureza que sempre foram seu guia. Nahota, com sua sabedoria enraizada nos ciclos do mar e do vento, percebe que o futuro, tão incerto para mim, para ele está escrito nas águas e nas brisas que, sem erro, moldaram sua vida e a de seus antepassados.
Teríamos de interromper para que ele pudesse regressar à Mesquita, a Masjid, em busca de reconciliação com Allah. Contudo, aquela casa de oração havia sido alvo de novas regras, e muitos dos sermões já não traziam o apelo nem a convicção de outrora. Os jovens, que estudavam no estrangeiro, voltavam falando de outras escrituras sagradas, levantando questionamentos que antes não faziam parte da rotina daquela comunidade. No entanto, a fé ainda permanecia firme, como a última esperança de que os tempos pudessem, de alguma forma, regressar à normalidade.
Hoje, a segurança marinha tornou-se essencial. Estes experientes comandantes de Dhows, que carregam consigo os sonhos e o sustento de tantas comunidades costeiras, precisam agora estar mais atentos do que nunca aos procedimentos de segurança e outros cuidados necessários. As exigências sobre os Nahotas vão além do conhecimento tradicional, requerendo novos saberes sobre como proteger vidas nas águas oceânicas, onde os riscos estão sempre à espreita. Pilotar um dhow continuará sendo o privilégio de poucos, mas a sobrevivência e bem-estar de muitos dependem dessa habilidade.
O Eco da tua voz grafa a verdade de uma biografia que é autobiográfica. Estes volumes são o testamento de que os princípios fundacionais de Moçambique, a despeito dos contextos revolucionários nacionalista, pan-africanista e internacionalista da sua luta pela independência, consagraram centralidade política à mulher e ao homem.
A harmonia entre Janet e Mondlane, retractada nestes textos, elucida na plenitude que a ética intelectual e a liderança política de Mondlane foram moldadas, também, pela parceria com Janet, seu maior amor. O provérbio africano, que diz “Numa família africana, o homem é a cabeça e a mulher é o pescoço”, resume bem essa dinâmica: Eduardo Mondlane liderava, mas Janet, com sua força intelectual, ajudava a direccionar o movimento e universalizava a causa.
Podemos traçar paralelos entre o relacionamento de Janet e Eduardo Mondlane e a emblemática relação de permeio, entre Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre. Ambos não viveram, apenas, histórias de amor, mas, também, protagonizaram profundas alianças intelectuais que deixaram marcas no curso da história.
Em suas famosas correspondências, Beauvoir e Sartre revelaram como seu vínculo transcendia o romance convencional para alcançar as esferas da reflexão filosófica e do compromisso político. Eram parceiros de vida, porém, acima de tudo, aliados na luta por causas sociais que exigiam coragem, integridade e uma constante redefinição do papel do indivíduo no mundo.
De maneira semelhante, Janet e Eduardo Mondlane estabeleceram essa parceria que ia muito além do romance e laços matrimoniais. Eles foram companheiros de ideias, de luta e de visão revolucionária e, até, messiânica. Janet, ao lado de Eduardo, tornou-se uma figura essencial no movimento pela libertação e independência de Moçambique e, mais especificamente, na emancipação das mulheres moçambicanas dentro deste contexto. Sua experiência cristalizava a centralidade da mulher na luta armada e a relevância dessa paridade.
Diferente de Simone de Beauvoir, que, apesar das pressões da sociedade, teve aceitação nos círculos intelectuais de Paris, França, Janet Mondlane enfrentou desafios bem maiores e mais complexos e subjectivos. Ela se inseriu em um movimento onde a maioria dos combatentes era iletrada e nutria uma visão clara e compreensível do “branco” como o inimigo a ser combatido. Num contexto de colonialismo e opressão racial, Janet, sendo uma mulher branca e estrangeira, representava, aos olhos de muitos, uma figura difícil de se assimilar no processo de luta de libertação nacional. O dilema de uma outra luta , dentro da esfera da própria libertação.
Essa resistência se manifestou, claramente, nos eventos de 1968, no Instituto Moçambicano, onde a insatisfação e o desconforto, com a liderança de Janet, transbordaram. Esses acontecimentos não eram, apenas, uma reacção a questões administrativas, mas, também, um reflexo desse sentimento latente de desconfiança e de rejeição à ideia de que uma mulher branca pudesse ocupar um papel central numa luta anticolonial. Entretanto, ao longo do tempo, Janet provou, por meio de suas acções, dedicação e inteligência, que seu compromisso era genuíno e profundo.
A relação da Janet e Eduardo Mondlane constitui a dimensão romântica da fundação da ainda complexa história revolucionária moçambicana. A ascensão de Eduardo Mondlane ao cargo de Presidente da FRELIMO, nas eleições de 25 de Junho de 1962, em Dar es Salaam, Tanzânia, marca o início de sua experiência maior na história internacional da época, cujo florescimento intelectual de sua personalidade acontece, desde Agosto de 1951, em confidencialidade de consciência com a Janet Era, nos Estados Unidos da América.
Essa confidencialidade chega-nos de sua carta na qual Mondlane partilha com a Janet, em Setembro de 1951, a sua consciência intelectual sobre a história política, económica e social de Moçambique. Lê-se:
[…] não é preciso obrigar uma pessoa esfomeada a [ir] trabalhar em qualquer sítio para ganhar ordenado. Uma pessoa esfomeada trabalhará até no inferno […] se souber que, se trabalhar o suficiente, terá algo para comer. É uma questão de escolha entre a fome e a degradação. Penso que todos os seres humanos normais iriam escolher a última.[1]
Como companheira romântica e intelectual de Eduardo Mondlane, e por esta presença na história da fundação da FRELIMO, é justo reconhecer que esta presença da Janet Mondlane, senão ela mesma, em abono da verdade histórica, é a fundadora do movimento político emancipacional feminista moçambicano. O Instituto Moçambicano, por ela fundado e dirigido, em 1963, é a ilustração histórica da sua presença fundacional, não sendo por acaso que tenha sido sob a presidência de Eduardo Mondlane que o discurso da emancipação das mulheres, de início, caracterizou a ideologia da libertação da FRELIMO.
Com efeito, Janet pode ter interiorizado do pensamento de John Stuart Mill, que exercia grande influência no contexto intelectual do período. Na verdade, a preocupação de John Stuart Mill com a justiça social inspirou movimentos progressistas e políticas voltadas para a distribuição de rendimentos e criação de oportunidades, como o 'welfare state', reflectindo-se também nas suas acções e visão no contexto moçambicano. A partir do seu livro ‘Sobre a Liberdade’, se entende a apologia ao tratamento da mulher como pessoa com todos os direitos.
Ao encabeçar todo este processo biográfico e autobiográfico, Janet mostra-se como a médium que, operando através das cartas da vida de Eduardo Mondlane e de ambos como companheiros, retorna o seu espírito, sob a metáfora de “Eco da tua voz”. Esta especialidade mediúnica da Janet Mondlane, a história reservou, na ausência de Eduardo Mondlane, unicamente a ela, não pela competência adquirida de sua biógrafa-mor, mas sim por ela ser a única pessoa em que o espírito de Eduardo Mondlane se corporificou e se apossou.
Por essa biografia que, em essência, é uma autobiografia, Janet Mondlane, muito para além de cumprir uma vontade, ela exerce uma mediação, que é uma dialéctica de amor e possessão pelo homem e sua história fundacional de um povo e nação. Aqui vale a pena ler a forma como ela epitomiza Eduardo Mondlane:
A existência de Mondlane foi um milagre porque, sob o ponto de vista lógico, não se compreende como é que um pequeno rapaz africano nascido com uma herança de opressão e de pobreza podia estar tão determinado a ter uma formação académica e, posteriormente, libertar o seu povo ao ponto de dar a sua vida por esse povo[2].
Janet documentou, ainda, que foi a personalidade extraordinária ou “especial” de Mondlane a condição que tornou possível a sua apropriação ou, melhor, adopção inicial pelo Rev. Sr. André Clerc e depois institucional pela Missão Suíça na África Austral, como a pessoa identificada para realizar a missão de formação de uma liderança africana no contexto histórico mundial da época de meados do século XX. Dentre várias menções, citemos as seguintes:
Quando mais novo, sempre demonstrou um verdadeiro espírito de abnegação. […] Mondlane é uma pessoa muito dotada. Embora tenha iniciado a vida estudantil tarde e em circunstâncias muito difíceis […].
[…]. A minha opinião sincera é que estou a dar apoio a uma das pessoas mais dotadas e capazes que podemos encontrar aqui.
Se as circunstâncias e Deus o permitirem, a minha intenção é ver Mondlane formado, e bem formado, para ser um Líder da Juventude para todos os jovens de Lourenço Marques, dando início a uma coisa noiva que nós, como missionários, não podemos fazer. […] Gostaria de acrescentar que EM conquistou a confiança das principais missões que aqui trabalham[3].
Em carta aos amigos, escrita pelo casal Darrel e Mildred Randall, depois de Eduardo Mondlane sair da Wits University e nos esforços coordenados para a continuação de seus estudos universitários nos EUA, lê-se:
Não podemos prever o que Eduardo Mondlane virá a ser no futuro. Mas estamos convictos de que Deus lhe deu uma maior capacidade intelectual do que aos outros jovens africanos que conhecemos, e África precisa imenso de líderes do seu calibre[4].
Inquestionável destacar o papel fundamental de Janet Mondlane como uma parceira tanto emocional quanto intelectual de Eduardo Mondlane. Ela não foi apenas um apoio silencioso para Eduardo; sua contribuição foi tangível, directa e decisiva na história revolucionária de Moçambique. É por esse motivo que, dentre as figuras históricas que podem ser consideradas Mães da Nação moçambicana – como Josina Machel, Marcelina Chissano, Graça Machel, Marina Pachinuapa, Celina Simango, entre outras – Janet Mondlane merece igual destaque e reconhecimento. Apesar de seu nome nem sempre ser lembrado ao lado dessas heroínas, seu papel foi igualmente transformador.
Janet não só ajudou a orientar e promover eventos que visavam aumentar a consciencialização sobre a luta de libertação de Moçambique, como promoveu a educação e a ascensão das mulheres combatentes. Ela tem de ser recordada como promotora do activismo e engajamento social na busca pela justiça. Ela é uma escritora nata e, como Mondlane dizia, uma repórter com quem partilhou o mesmo tecto.
[1] Mondlane, Janet R. O eco da tua voz. Vol. I – 1920-1950. Cartas seleccionadas e editadas de Eduardo Chivambo Mondlane. Fundação Eduardo Mondlane, 2012, p. 32, 33-34.
[2] Mondlane, Janet R. O eco da tua voz. Vol. I – 1920-1950 … op. cit., p. 20.
[3] Mondlane, Janet R. O eco da tua voz. Vol. I – 1920-1950 … op. cit., p. 129-130. Cf. Carta de André Clerc para Director da Jan Hofmeyr School, de 15 de Setembro de 1947.
[4] Mondlane, Janet R. O eco da tua voz. Vol. I – 1920-1950 … op. cit., p. 249.
Existem músicas que encaixam na perfeição nas nossas memórias. Alguns artistas se identificam com esses estilos musicais e deixam o seu rastilho de génios nesses estilos. O Jazz, por exemplo, só é produzido por lendas. Quem envereda por estas melodias precisa de ter mais do que arte; deve se revestir de rebeldia e genialidade.
O Jazz nasceu do improviso de solos sobrepostos de arranjos. Em finais do século XIX e bem no começo do século XX, escravos e seus descendentes gritavam pela liberdade. Vociferavam a grandeza de um continente e de povos subjugados. Negavam a humilhação que o mundo lhes quis impor.
Existe uma profunda diferença entre viver a vida com vitórias e com derrotas. Nos confrontamos, existencialmente, com estas facetas.; tudo faz parte da condição humana. Revisitar os eventos tendo por pressuposto o benefício da percepção ou do conhecimento, permite entender o passado. Este postulado pertence a Eduardo Mondlane Júnior, Eddie, que prefaciou um dos livros de sua mãe, Janet Rae Mondlane, as celebríssimas confidências que trocou com seu esposo, entre declarações de amor, paixão e desencanto. Esses ecos que perpassam tempos e memórias.
Janet Mondlane transitou pela então Lourenço Marques, entre Novembro de 1960 e meados de 1961. Ela e seus dois filhos, sem a presença de Mondlane, foram os nobres hospedes da família Clerc. Espaço privilegiado na missão presbiteriana de Moçambique, nem por isso, imune à suspeitas. Janet recorda, com fervor, dos serões musicais da família Clerc. Noites musicadas à piano, flauta e violino. As habilidades musicais do próprio Clerc, acompanhado pelo casal de reverendos Morier-Genoud e sua esposa Juliette. Estas eram as manifestações messiânicas e revolucionárias de uma igreja que também se libertava.
Jennifer Chude, que grafava o seu nome musical, emprestava a sua voz. Cantava muito afinada e entrava para um universo de onde nunca mais se libertou. Sua capacidade musical era notável. Acertava as notas com exactidão e aprendia os versos com mestria. Sua mãe não tinha dúvidas do seu futuro. Ela era uma pequena lenda que nascia para engrandecer o jazz; trazia de volta os ritmos que não sendo da sua idade eram da idade dos seus progenitores. Não admira que a rebeldia desconcertante desses sons a tivesse enfeitiçado.
Desde esta época, até a altura que integrou os treinos de preparação militar em Bagamoyo, na Tanzânia, ela virou uma voz autorizada de uma paixão revolucionária e não deixou dúvidas da sua capacidade de subversão. Ela própria forçou um aprendizado na academia de coreografia de dança moderna de Filadélfia; esbanjou o seu perfume artístico na academia de dança de Moscou, na União Soviética e, anos mais tarde, assentou arraias em Brooklyn em Nova Iorque. Os génios podem ter estado em Nova Orleans, mas, é em Nova Iorque que eles se revelam.
Este percurso a definiu com uma artista sublime. Era o espírito libertário do qual a família não tinha dúvidas, nem do seu talento, muito menos da sua graciosidade e da sua vocação. É comum as famílias não aceitarem que os filhos enveredem por carreira musical ou desportiva, antes de se firmarem na escola. A opção passa por trabalho formal, remunerado e com títulos. Todavia, o impulso musical da Chude a perseguia, criando em si contradições insanáveis e uma disciplina tão ortodoxa quanto inquestionável.
Para o casal Mondlane, revolucionar e libertar um país, com crianças tão pequenas se tornou, igualmente, um problema por resolver e era preciso pensar na sua segurança. Dar es Salaam, apesar de muito segura, requeria outras condições. Por falar no desenvolvimento dos talentos naturais, escreveu Mondlane para a sua esposa, em 1967, que os miúdos, por vezes, faltavam às lições de piano e trompete. A Chude, amiúde, vivia aborrecida por não ver retomadas as suas aulas de ballet.
O tempo fez da Chude uma das mais prolíficas artistas de jazz de Moçambique. A rigor, ela emergiu como figura central e se tornou mentora de tantos outros. Cantou a liberdade, a sua cidade de Maputo, cantou o amor, salsas e coentros; virou uma iconoclasta. A sua forma de ser, quantas vezes incompreendida, revelava o inabalável compromisso com o jazz, com a cultura e, sobretudo, com o seu activismo social que tinha como substrato o seu altruísmo.
No começo dos anos 80, e residindo Estados Unidos da América, Nova Iorque, lançou os álbuns “Tomorrow’s Child” e “Samurai”; internacionalizou Moçambique. Um país socialista e de que o capitalismo teimava em combater. Colaborou com Marcus Miller, um dos expoentes máximos do Jazz and Blues no mundo. Escreveram canções, assombraram palcos e se transformaram em ícones indispensáveis. Marcus Miller pode ter sido quem mais sofreu com a partida precoce da Chude. Enviou uma mensagem que não era apenas dirigida à família Mondlane, mas para África e para o mundo; reconfirmou a rebeldia da sua amiga querida e testemunhou o quanto ela ajudou artistas como Roberta Flack, Jason Miles, Lionel Richie e tantos outros, que gravaram algumas das suas letras, cantaram com ela e fizeram de Moçambique um país que não poderia ser omitido.
Uma voz tão apaixonada e melodias de timbre inigualável, levaram-na a ser agraciada com o Grande Prémio, em diferentes festivais internacionais, nomeadamente Coreia do Sul, em 1980; Japão, em 1981; prémio artista do ano, pela Rádio Moçambique, em 1999 e figura central da Rádio Moçambique, em 2016. O seu álbum “Salsa e Coentros” pode ter sido premiado em outros festivais que bem desconhecemos. Estes prémios revelavam esse compromisso pelo desenvolvimento artístico de Moçambique e, sobretudo, um legado para as novas gerações e para esse jazz moçambicano com milhares de seguidores, nem por isso, ainda tão assumido por todos.
Ninguém se olvida das suas intervenções, palestras e outros eventos nas escolas de música e artes e, nas diferentes associações de músicos, espalhados pelo país. Estes grupos populares não carecem de reconhecimentos públicos e nem se quer, dispõem dos meios para esses efeitos. Este é o maior legado de uma mestra que o tempo soube testemunhar e que muitos de nós, apenas, vimos passar como uma rara galáxia dessa constelação de estrelas.
Chude permanecerá sempre actual e inquietando as nossas memórias. Com o dobro da idade de Cristo, ela partiu de forma prematura. Sem muitas coreografias, essa pungente mulher da subversão e de causas, repousa junto de seu pai, Eduardo Mondlane. Revisitam Moçambique, falam sobre a independência; sobre o socialismo tão relevante enquanto durou, sobre a prolongada guerra entre irmãos, sobre o actual capitalismo selvagem, trasvestido de neoliberalismo, da democracia incipiente e titubeante; falam de um país que busca a reconciliação nacional, a paz e progresso social.
A mente criativa precisa de impulsos e de absorver do mundo e lugares as suas experiências. O artista é, apenas, um intermediário, que vive ao serviço da criação. As lendas estão sempre presentes. O sol continuará brilhando para todos, mas, nem todos podem reflectir o seu brilho.
Passavam alguns anos e era comum um sketch publicitário que literalmente dizia “saber voar nas asas da história”. Para o delírio dos ouvintes era um slogan que roçava aos píncaros do exagero. Contudo, a nossa companhia de bandeira operava entre as vicissitudes dessa história e as dinâmicas do quotidiano. Os principais protagonistas, contudo, continuavam dignos das menções. Francisco Miranda e outros tantos, se notabilizaram e foram os protagonistas destas peripécias.
Nascido em Goa, no longínquo ano de 1957, na Ilha então colónia Portuguesa. Francisco Miranda era o segundo filho de Francisco Vasco António Miranda e Sousa e de Maria de Jesus da Silveira Lorena Miranda; o ponto de equilíbrio de toda a família. Nenhuma história elucida o não ter sido Júnior. Eventualmente, assumiu, ele próprio, seu destino como Sénior.
Pai trabalhador dos correios e mãe funcionária da Direcção de Exploração dos Transportes Aéreos (DETA), o que explica a paixão pelas asas. Viveu em Nampula, desde os 3 meses e assimilou-se de cultura emakhuwa. Passou a conhecer a história pela língua, gastronomia e aquela natureza esplendorosa. Aprendeu tudo sobre Musa Mohammad Sahib Quanto, Omar bin Nacogo Farallahi e o sultão Ibrahim. Os desígnios e exigências de uma milenar civilização encantaram sua caminhada e fascinaram seus apetites.
Conheci-o jovem, pelos passeios das escolas geminadas Liceu Gago Coutinho e Escola Industrial e Comercial Neutel de Abreu, construídos nos anos 1969-70. Deambulava por entre os jovens da sua idade e mais novos, espalhando uma incaracterística e invulgar rebeldia. O Che Guevara dos nossos tempos. Vezes sem conta, passeava com os inesquecíveis irmãos metralhas. A mangueira sagrada era seu referencial. Ali terminavam todas as disputas e conflitos potenciais. Com ele conheci essa famosa mangueira sagrada. Minha postura apegada a serenidade e a apologia de não-violência, me afastaram, definitivamente, desse local.
Chico tinha uma desenvoltura física de quem vivia carregando pesos. Todavia, não praticava modalidades federadas. Jogava de tudo um pouco e adorava sua bicicleta. Apesar da sua forma mais volumétrica era afável, cavalheiro e impunha respeito aos mais jovens. Criamos uma empatia que perdurou ao longos de décadas. Fez várias confidências, desde o cachorro Camões que perdera um olho em circunstâncias pouco esclarecidas e, desde então, tinha uma pala na vista danificada. Gargalhava com o episódio da cobra verde, completamente inofensiva que estava prostrada num galho de acácia e que, de forma consciente, fora deixada no tampo da mesa da elegante professora de Biologia. Ela desmaiou em plena sala. Estas eram magistrais conversas; episódios que o fizeram cidadão e maturado para posterioridade.
Os estudos sempre lhe foram enfadonhos, apesar de muito inteligente. Questionava métodos e a rigorosa disciplina revolucionária. Vibrou, no entanto, com a liberdade e com o mesmo sol de Junho de que sempre se orgulhou. Chico, assim o designamos como jovem, fez uma opção pela aviação ainda em Nampula. Foi despachante de tráfego e, eventualmente, a empresa TTA foi responsável pela sua formação e contratação. Era uma empresa de fumigação aérea que ajudou e comparticipou na formação aeronáutica de mais de uma dezena de jovens, não só de Nampula, mas de todo o Norte de Moçambique. Outros jovens atingiram o patamar profissional, ingressando nas Linhas Aéreas de Moçambique, LAM, criada em Maio de 1980, e que assumira as obrigações celebradas pela DETA, sua antecessora.
Francisco Miranda se assumiu como homem dos céus, esses que optam por viver mais próximo de Deus do que da vida mundana. Por cima dos extractos, cirros e cúmulos. Vivia sentindo a plenitude da liberdade e dos avanços tecnológicos. Nas alturas, os segredos são disciplina e rigor, postura metódica e responsabilidade. Nosso bom piloto passou a leitor ferrenho de artigos sobre aviação. Estudava seus manuais como poucos. Num ápice, se firmou como parte dos talentos da companhia de bandeira que tem de tudo um pouco.
Os amigos e colegas exaltaram essa mudança. Era como se nós próprios tivéssemos chegado ao cume da terra. Céus eternizados pela amizade e cumplicidade. Depois, seguíamos para o aeroporto para assistir as aterragens e decolagens. Aquela diminuta pista dos antigos dakotas e de aviões de pulverização era, agora, o tapete do Miranda. Aquela mesma pista ruidosa e dos calafrios arrancava aplausos dos passageiros.
Miranda vivia nos céus com um naipe de outros colegas como Carlos Soares, José Cachopas, ambos falecidos, Álvaro Lobo, José Ferreira da Silva, Raul Fernandes, Mamede Habbal, Noormahomed e, com eles, as lindíssimas jovens nampulenses. Ter um amigo de longa data, da cidade capital do norte, não era só um prazer, era a certeza de um voo seguro e agradável. Até aquela caixinha de refeições extra, servia para mostrar a família o que se comia nos ares e que os nossos amigos ofereciam. Voar, a rigor, era o sonho de milhares de moçambicanos.
A guerra de desestabilização agudizava. Viajar por estrada representava a aventura trágica e o próprio calvário terrestre. Região centro era o tira-teimas dos aventureiros. As histórias sobre as atrocidades e os camiões calcinados pelo fogo eram arrasadoras. Convergíamos todos para os céus. Conseguir um lugar nos aviões dependeria de uma “cunha”. Os nossos zelosos aviadores reinventavam a nova fronteira da geografia. Pela primeira vez viajei no cockpit. Adrenalina pura. Ele, ali bem perto, óculos de sol e controlando minhas emoções. Um voo de fazer perder todos os apetites. Todavia, experiência que não ouso repetir, agora que a segurança aérea se intensifica. Nascemos para viver na terra e juntos dos nossos. Aqui as florestas e rios tem outra e rara beleza.
Francisco Miranda subiu pelos degraus da avaliação e se consagrou como destacado piloto Comandante. Se sentou aos manípulos do DC-10. Tempos áureos da companhia. Ouvimos falar da sua habilidade e sangue-frio. Era a fibra nortenha nos céus do mundo. Eram as cartas de correio que o seu pai Miranda tanto selou que viajavam, agora, no porão transportadas pelo Júnior. Antes, eram os sonhos e as vidas de milhares de passageiros que duplicavam a confiança de uma chegada serena e tranquila, mesmo em tempo de turbulência.
Miranda criou cumplicidades com Marcelino dos Santos. Seu tio favorito. Transportou seu ídolo e seus adjuntos centenas de vezes. Falava sobre ele com gáudio, vivacidade e exacerbada emoção. Marcelino lhe enchia as vistas e os egos. Assimilou essa postura de guerreiro intelectual. Combatente aéreo irrepreensível. Copiou os segredos de liderança determinada na tomada de decisões. Reconverteu-se no revolucionário sem bases marxistas, todavia, firme e consequente, como ele próprio dizia com atitude de Amélia Mary Earhart, essa pioneira da aviação no mundo, de quem ele leu com apreço. Amelia Earhart desapareceu no Oceano Pacífico, perto da Ilha Howland, enquanto realizava um voo ao redor do globo, no longínquo 1937. O mundo se rendeu a seus pés.
Escutei, várias vezes, o comentário e a façanha de uma aterragem de emergência e bem sucedida do DC-10. Valeu a bravura do nosso Chico. Os elogios rasgados, se sucederam. Depois, seu nome passou para o radar das grandes companhias do médio oriente e outros quadrantes. A sua LAM estava de sobreaviso. Muitos abandonaram a companhia. Miranda permaneceu. Os tempos viram essa LAM se reconfigurando num mercado pouco favorável. Vieram as mudanças na frota. Contrariado, mantinha visão desse passado de glória. Depois, viu seu filho trilhar seus passos. Era um jovem Bruno Miranda que qualificava no estrangeiro e dava continuidade ao clã Miranda da aviação.
Igualmente, Francisco Miranda chegou a chefe de segurança de voo e instrutor. Mesmo reformado, por imperativos de idade, a sua LAM era a mais notável e indiscutível referência. Vivia preocupado com os novos tempos e dinâmicas. Achava que uma gestão meticulosa faria da empresa um pequeno El dourado no oceano da carestia e ausência de liquidez.
Aos 67 anos e debilitado por diagnósticos pouco consentâneos viu seu corpo minguar e degradar. Recorreu aos especialistas da terra e ninguém conseguiu prover o milagre dos céus. O seu lado mais informal e militante sucumbia. O checklist não condizia com o rigor e critérios mínimos de um voo com segurança. Em tarde de finais do mês de Junho, mês de todas as liberdades, que ele sempre defendeu, o Macua natural de Goa fez a sua aterragem final. Virou estrela. Está onde sempre gostou de viver, nos céus e rodeado de anjos. (X)
Depois das celebrações dos 50 anos do assassinato e desta nova Páscoa de Amílcar Cabral, abraçamos, com a mesma êxtase e fraternidade, o seu centenário natalício. Amílcar Cabral, possivelmente um dos mais celebrados líderes das lutas pela libertação e independência dos países africanos de língua portuguesa, nos convoca, serenos e incertos, em seu centenário, imbuídos desses nobres ideais e do sentimento patriótico de servir o povo, de lutar pela igualdade e por um amanhã melhor, sem ambiguidades. Esse era o cerne de seu pensamento e pelo qual ele dedicou sua vida e derramou seu sangue.
Reverenciado, enaltecido e glorificado como um dos mais carismáticos líderes da sua época, Amílcar Cabral era confesso admirador e amigo de Eduardo Mondlane, nosso herói nacional, muito embora, nem sempre, estivessem de acordo sobre as estratégias de luta e fundamentos da luta. O importante é que, após essa longa jornada, Eduardo Mondlane conseguiu retornar à sua aldeia como um combatente pela libertação e pelo progresso de seu povo, enriquecido pelas experiências muitas vezes perturbadoras do mundo contemporâneo. Ele ofereceu um exemplo frutífero, enfrentando todas as dificuldades, resistindo às tentações e rompendo com os compromissos de alienação cultural e política, ao mesmo tempo em que se reconectou com suas raízes, identificou-se com seu povo e dedicou-se à causa da libertação nacional e social. Eis o que os imperialistas não lhe perdoaram, afirmava.
Amílcar Cabral foi um dos maiores e mais críticos pensadores do século XX, de acordo com muitas correntes de pensamento e escritos. Um pouco por esta razão, ele continua presente nas cátedras, citado em diferente bibliografia e eternizado em telas. O seu pensamento continua subjacente em duas correntes principais, sendo a primeira a que se consubstancia no facto de, através da sua prática e acção revolucionárias ter dado um passo significativo no sentido de renunciar à condição de subalternidade e de dependência a que o colonialismo português o tinha votado, a ele e ao seu povo, enquanto colonizados.
A segunda corrente, eventualmente, a mais estudada pela academia mundial era o seu pensamento crítico, ao não se ter conformado com alguns dos paradigmas do pensamento social vigentes na época, inclusive os das ciências sociais. Estas reflexões de Amílcar, que se distanciaram das lideranças subsequentes, pós-independência, encontram expressão nos dois volumes das suas obras, nomeadamente “A Arma da Teoria”, de 1980, para o primeiro, e “A Pratica Revolucionaria: Unidade E Luta II”, de 1977, para o segundo.
Para alguém que não teve a oportunidade de o conhecer fisicamente, e sem nenhuma aparição em Moçambique, diferente de Julius Nyerere, Agostinho Neto, Keneth Kaunda, todos eles já centenários, não o pode conceber dissociado e distanciado de Eduardo Mondlane, Paulo Freire e tantos outros. Num eloquente discurso na Universidade de Syracuse, nos Estados Unidos da América, onde Mondlane se formou e foi homenageado, Amílcar afirmou “[…] quisemos demonstrar a nossa amizade militante e solidariedade ao povo de Moçambique e ao seu bem-amado chefe, o Dr. Eduardo Mondlane, ao qual estivemos ligados por laços fundamentais na luta comum contra o mais retrógrado dos colonialismos, o colonialismo português. A nossa amizade e a nossa solidariedade são tanto mais sinceras quanto nem sempre estivemos de acordo com o nosso camarada Eduardo Mondlane, cuja morte foi, aliás, uma perda também para o nosso povo […]”
Faz, pois, sentido que os nossos países e, sobretudo, os jovens retomem a estes testemunhos, desse tempo, cujos pensamentos continuam presentes. É fundamental revisitar as personagens que fizeram e fazem nossa história, sociedade e cultura e, principalmente, os cultores que assumiram protagonismo e falaram em nome de tantas gerações.
Defendo, vezes sem conta, que estes tempos exigem que se faça algo contra o esquecimento, contra o vexame do alheamento e, sobretudo, contra a indignidade do desconhecimento e essa amnésia colectiva que aos poucos se apodera de todos nós.
O centenário de Amílcar Cabral representa uma extraordinária oportunidade para revisitarmos seu caminho, explorando seus pensamentos, atitudes, valores, aspirações e inquietações. Desde sua participação na Casa dos Estudantes do Império até a clandestinidade na metrópole, passando pelas associações de estudantes africanos e enfrentando prisões arbitrárias e massacres, devemos reverenciar os jovens que, diante de todos os perigos, expressaram e demonstraram com bravura um amor ilimitado e um dever patriótico incomum para com Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde, Angola e São Tomé e Príncipe.
Amílcar Cabral, esse engenheiro Agrónomo, líder da revolução da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, continua tão presente e consequente pelo seu pensamento político e libertador, sua visão cultural e pelo pragmatismo com o qual conduziu os destinos da luta de libertação nacional, mas, também, pela utopia do seu sonho e querer. Essa utopia que o posicionou como exímio conhecedor e detentor de reflexões políticas e revolucionárias muito para além do seu tempo e espaço. Permanecem célebres suas análises e memórias sobre a essência desse colonialismo, a forma inglória com não foi entendido o clamor dos povos e, sobretudo, a maneira como se oprimiu povos africanos e se estendeu essas práticas fascistas para o seu próprio interior. Por essa razão, as recentes celebrações do 25 de Abril, 50 anos da revolução dos cravos, simbolizam e seriam consequência directa das próprias lutas de libertação nas colónias do ultramar.
Amílcar Cabral afirmava que a política é repleta de contradições, destacando a necessidade de diálogo aberto e discussão franca sobre questões que conduzem às melhores soluções para o futuro. Para ele, a política também era um exercício de diálogo contínuo. Essa contradição intrínseca encerrava a essência do diálogo e justificava a luta pela dignidade de seu povo, pelo resgate de seus valores morais e pelos direitos fundamentais e pela paz para os povos africanos.
Amílcar Cabral considerava que a essência de sua luta residia na busca pela possibilidade e realização da construção de pontes e consensos. Por isso, participou em sessões das Nações Unidas, visitou universidades, corporizou a Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas (CONCP) e criou as primeiras assembleias populares nas zonas libertadas. Sob sua liderança, mais de 80% da Guiné-Bissau se libertou, até ao começo dos anos 70. A luta de libertação, afirmava, só poderia ser pela dignidade dos povos do seu país, a liberdade e a possibilidade de poderem usufruir dos mesmos direitos e recursos.
Continua célebre a sua afirmação segundo a qual “[…] a história ensina-nos que, em determinadas circunstâncias, é fácil ao estrangeiro impor o seu domínio a um povo. Mas, ensina-nos, igualmente que, sejam quais forem os aspectos materiais desse domínio, ele só se pode manter com uma repressão permanente e organizada da vida cultural desse mesmo povo, não podendo garantir, definitivamente, a sua implantação a não ser pela liquidação física de parte significativa da população dominada […]”. Portanto, apelar à indestrutível resistência cultural, assumiria uma das formas de contestar, com vigor, o domínio estrangeiro.
Para Amílcar Cabral, e por vezes em rota de colisão com seus próprios camaradas, os movimentos de libertação deveriam saber preservar os valores culturais positivos de cada grupo social bem definido, de cada categoria, realizando a confluência desses valores no sentido da luta, dando-lhes uma nova dimensão, a nacional. Perante esta necessidade, a luta de libertação era, acima de tudo, uma luta tanto pela preservação e sobrevivência dos valores culturais do povo, como pela harmonização e desenvolvimento desses valores num quadro nacional.
À semelhança de Frantz Fanon, autor da célebre obra “Os Condenados da Terra”, de 1961, o colonialismo foi um sistema que construiu e perpetuou estereótipos, destruindo valores e moral. Acredito que Amílcar estudou Fanon e Albert Memmi, manifestando em diferentes discursos uma grande preocupação e desilusão, evidenciadas pelas várias experiências de governação em África após 1960. Dizia Cabral que após a independência, tudo deveria ser feito para que as pessoas passassem a viver melhor que antes, que essa era a forma de legitimação desse exercício e sacrifício libertador. Se depois das independências as pessoas passassem a viver pior, então, não valia a pena ter lutado pela independência.
Amílcar Cabral, descrito por Paulo Freire como um pedagogo do anticolonialismo, defendia três eixos fundamentais na governança dos países africanos após as independências conquistadas por revolucionários: a necessidade de governar com decência, honestidade e patriotismo. Estas são questões de grande relevância na contemporaneidade.
Nesta breve e desproporcional retoma ao pensamento de Cabral, resgatando sua memória e dignidade, amor pelo continente, esquartejando os tremendos desafios e a complexidade dos tempos, batemos de cara com as vicissitudes, experiências das lutas pela emancipação, equações para o desenvolvimento económico, afirmação da identidade, congregação dos ideais de nação e institucionalização de novas regras de convivência social, e damos conta que Cabral esta desaparecido. Precisa de ser resgatado. Nem que seja por um dia.
A gestão dos novos poderes políticos, permaneceu como processos inacabados, de enorme complexidade e, nem sempre, predefinido por lógicas e soluções reconciliatórias. Entre a misoginia, os sonhos políticos e as virgindades discursivas até as ambiguidades, assimetrias e desigualdades, esses países foram construídos primeiro como estados socialistas, depois como sociais-democracias, mas logo foram forçados a converter-se em sistemas pluralistas, multipartidários e de economia aberta.
As instituições globais promotoras do neoliberalismo, explorando as fragilidades socioeconómicas e institucionais e as clivagens culturais e políticas locais, ditam os vectores e modelos macroeconómicos de desenvolvimento que, em larga medida, servem os seus próprios interesses, fragilizando as correntes do não-alinhamento, cooperação sul-sul e a permanente dependência socioeconómica e tecnológica.
Amílcar Cabral e Eduardo Mondlane poderiam não ter pensado no antídoto para estas situações, nem mesmo teriam respostas para fazer face a ferocidade do capitalismo global, do neoliberalismo, onde os países, como o nosso, se apresentam desprovidos desses recursos tecnológico e científico, com as instituições fragilizadas, e que se tornam presas fáceis. Os condicionalismos fazem com que as lideranças não se assumam e que os destinos nacionalistas permaneçam sonhos adiados. Agora, mudamos os termos e já são outros conceitos de endogeneidade, desenvolvimento tecnológico, digital e ambiental.
Como muitos outros países da periferia, acabamos por nos configurar como Estados de descontinuidades e processos políticos, económicos, sociais e culturais inacabados. Os líderes de ontem nem sequer acreditam que viramos palco dos descaminhos e incongruências, que inviabilizam consensos e retardam o passo do desenvolvimento harmonioso como nação, gerando tensões, conflitos sociais e terrorismo.
Cabral, esse multilateralista nato, não acreditaria, nem no pior dos seus sonhos, que as respostas de ontem continuam perguntas, ainda, de hoje, e que as incertezas se perderam com o tempo. Amílcar e Mondlane deitariam lágrimas de tristeza constatando que 50 anos depois do movimento das independências, estas terras continuam convivendo com graves crises económicas e sociais, políticas e militares. Esta população de 24 anos ou menos, procura pelos seus próprios ventos de mudança, para desfrutar do potencial e das oportunidades. “Amo Africa e quero um dia regressar”.
Hoje, marcou-se o epílogo da jornada terrena do Mestre Moisés Manjate. Desejamos resgatar as palavras proferidas em seu centenário, como um tributo reverente a sua memória e legado.
O mês da folia, coincidência, chegou e, por arrasto, transportou consigo a celebração de uma das mais preciosas pétalas de Moisés Manjate. As risonhas 100 primaveras e o centenário de uma vida e, de outras dezenas de canções e milhares de emoções. Moisés, esse lendário e originário da família Manjate, com o vigor da sua musicalidade e a graciosidade do seu talento, recriou as geometrias da dança e dos compassos da Marrabenta, esse som urbano-rural que incorporou, sem reticências, as magias e os acordes do Xingombela, Zukuta e da Magica.
Velho Moisés, bem no estilo e no ritmo de quem procura a terra prometida, beijou o sol e o mundo, pela primeira vez, no longínquo ano de 1920. Sua terra natal, Mafalala-xilunguine, cidade que tem alterado de nomenclatura, ao longo das décadas, porém, não deixa de ser o viveiro privilegiado de músicos, artistas e escritores.
Desde cedo, como a grande parte dos músicos moçambicanos, não passou por nenhuma escola de música e, jamais, teve contacto com a partitura. A música nasce, naturalmente, nas veias e nos ouvidos dos executores. Talento puro. Bênção divina.
Decorriam os anos 50/53 e Moisés, nome bíblico, se agigantava no mundo musical. Conjunto Djambu se afirmava e criava seu espaço e pedaço. Tal como o mundo que se refazia dos efeitos da Grande Guerra, os artistas rebuscavam, na música e nas artes, o conforto para os espíritos e a paz para as suas almas. Foi momento cultural sublime e o esplendor de uma epopeia inquestionável.
Moisés Manjate cresceu e bebeu as vivências e vicissitudes de um tempo que, não sendo seu, foi de um passado que só ele sabe descrever. Um passado de pura exaltação e afirmação, um tempo de florescimento da consciência negra, da negação do que não era local e, sobretudo, de rebuscar a liberdade. Manjate não fugiu das sombras e sonhos do Craveirinha, do Samuel Dabula e da firmeza do centro associativo dos negros.
A Marrabenta estourava nos subúrbios da Mafalala, na então, Associação Beneficente Comoriana e no cabaré local, que corporizou o novo género musical e, fez dele um ritmo quente, miscigenado e arrombador. Os dançarinos e frequentadores do cabaré eram, regra geral, tidos como oriundos das Ilhas Comores. Os sons, igualmente, se recriaram na génese e na combinação do movimento migratório de Moçambique para África do Sul e vice-versa. Este foi um dos berços de ouro da nossa e nova musicalidade que, ao longo de décadas, nos orgulha e nos faz moçambicanos.
Moisés Manjate, conhecido por muitos, porém, já desconhecido por milhares, contribuiu, a seu tempo e espaço, para estilizar os ritmos e familiarizar uma nova proposta musical que navegava entre os submundos de tantos ritmos e sons. O grupo Djambu, e tantos outros, foi pilar desta corrente.
Velho Moisés Manjate, faz tempo, não frequenta palcos e nem se multiplica em entrevistas e aparições públicas. Não o faz fisicamente, porém, as letras e os hinos que ajudou a recriar continuam tão presentes e inconfundíveis nos nossos repertórios e imaginários musicais. Tão vivos e presentes, como a natureza e o tempo intermitente e irredutível. Marrabenta é essa obra tão identitária como libertadora, tão suave como fulminante, e a canção “Elisa wê gomara saia”, para citar apenas a mais cantada e recriada, do nosso património musical, elucida essa glória do tempo que insiste não passar.
Na celebração do seu centenário, parece proibido não resgatar o historial da marrabenta e fazer jus ao Mestre que, de forma exímia e majestosa, executou, com perfeição, os ritmos folclóricos que alegraram milhões de moçambicanos de diferentes gerações e raças.
A Marrabenta, mais que um ritmo, significou um movimento libertador e, um símbolo de afirmação e ideniedade. A Marrabenta perpassou a censura e à opressão, a tenacidade do colonial-fascismo e a tenebrosidade da polícia política, para se cristalizar e ganhar seu espaço e dimensão nacional e internacional. Marrabenta e Moisés Manjate, e todos que souberam defender esta proposta musical, possuem, a rigor, a mesma dimensão e estatura.
Moisés Manjate, como água de um rio, flui e move-se por vontade própria; ou será que é movido pelos instintos musicais que sempre o acompanharam. Pelos seus dedos passa a evidência de quem fez da música uma forma de permanecer imortal. Marrabenta e os seus intérpretes ancestrais são, pois, os intérpretes da natureza, aqueles que com a graciosidade de sua alma, remexeram nossos ouvidos e reconfiguraram o sentido de nossas pernas, músculos e do nosso ser.
Olhando para Moisés Manjate, hoje cadeirante e sentindo já os efeitos dessa longevidade, redescobrimos as mãos que criaram a mecânica do sonho e corporizaram esse beleza e harmonia musical. Entendemos o quanto a música preserva a beleza e elegância de quem a criou e essa obra se torna mais honrada e venerada.
Neste aniversário, que por si só merece todas as honras e glórias, não celebraremos apenas o homem e a sua música, mas a longevidade de quem apenas soube fazer bem a este país. Bem-haja Moisés Manjate, imortal e verdadeiro símbolo musical.
O mês da folia, coincidência, chegou e, por arrasto, transportou consigo a celebração de uma das mais preciosas pétalas de Moisés Manjate. As risonhas 100 primaveras e o centenário de uma vida e, de outras dezenas de canções e milhares de emoções. Moisés, esse lendário e originário da família Manjate, com o vigor da sua musicalidade e a graciosidade do seu talento, recriou as geometrias da dança e dos compassos da Marrabenta, esse som urbano-rural que incorporou, sem reticências, as magias e os acordes do Xingombela, Zukuta e da Magica.
Velho Moisés, bem no estilo e no ritmo de quem procura a terra prometida, beijou o sol e o mundo, pela primeira vez, no longínquo ano de 1920. Sua terra natal, Mafalala-xilunguine, cidade que tem alterado de nomenclatura, ao longo das décadas, porém, não deixa de ser o viveiro privilegiado de músicos, artistas e escritores.
Desde cedo, como a grande parte dos músicos moçambicanos, não passou por nenhuma escola de música e, jamais, teve contacto com a partitura. A música nasce, naturalmente, nas veias e nos ouvidos dos executores. Talento puro. Bênção divina.
Decorriam os anos 50/53 e Moisés, nome bíblico, se agigantava no mundo musical. Conjunto Djambu se afirmava e criava seu espaço e pedaço. Tal como o mundo que se refazia dos efeitos da Grande Guerra, os artistas rebuscavam, na música e nas artes, o conforto para os espíritos e a paz para as suas almas. Foi momento cultural sublime e o esplendor de uma epopeia inquestionável.
Moisés Manjate cresceu e bebeu as vivências e vicissitudes de um tempo que, não sendo seu, foi de um passado que só ele sabe descrever. Um passado de pura exaltação e afirmação, um tempo de florescimento da consciência negra, da negação do que não era local e, sobretudo, de rebuscar a liberdade. Manjate não fugiu das sombras e sonhos do Craveirinha, do Samuel Dabula e da firmeza do centro associativo dos negros.
A Marrabenta estourava nos subúrbios da Mafalala, na então, Associação Beneficente Comoriana e no cabaré local, que corporizou o novo género musical e, fez dele um ritmo quente, miscigenado e arrombador. Os dançarinos e frequentadores do cabaré eram, regra geral, tidos como oriundos das Ilhas Comores. Os sons, igualmente, se recriaram na génese e na combinação do movimento migratório de Moçambique para África do Sul e vice-versa. Este foi um dos berços de ouro da nossa e nova musicalidade que, ao longo de décadas, nos orgulha e nos faz moçambicanos.
Moisés Manjate, conhecido por muitos, porém, já desconhecido por milhares, contribuiu, a seu tempo e espaço, para estilizar os ritmos e familiarizar uma nova proposta musical que navegava entre os submundos de tantos ritmos e sons. O grupo Djambu, e tantos outros, foi pilar desta corrente.
Velho Moisés Manjate, faz tempo, não frequenta palcos e nem se multiplica em entrevistas e aparições públicas. Não o faz fisicamente, porém, as letras e os hinos que ajudou a recriar continuam tão presentes e inconfundíveis nos nossos repertórios e imaginários musicais. Tão vivos e presentes, como a natureza e o tempo intermitente e irredutível. Marrabenta é essa obra tão identitária como libertadora, tão suave como fulminante, e a canção “Elisa wê gomara saia”, para citar apenas a mais cantada e recriada, do nosso património musical, elucida essa glória do tempo que insiste não passar.
Na celebração do seu centenário, parece proibido não resgatar o historial da marrabenta e fazer jus ao Mestre que, de forma exímia e majestosa, executou, com perfeição, os ritmos folclóricos que alegraram milhões de moçambicanos de diferentes gerações e raças.
A Marrabenta, mais que um ritmo, significou um movimento libertador e, um símbolo de afirmação e ideniedade. A Marrabenta perpassou a censura e à opressão, a tenacidade do colonial-fascismo e a tenebrosidade da polícia política, para se cristalizar e ganhar seu espaço e dimensão nacional e internacional. Marrabenta e Moisés Manjate, e todos que souberam defender esta proposta musical, possuem, a rigor, a mesma dimensão e estatura.
Moisés Manjate, como água de um rio, flui e move-se por vontade própria; ou será que é movido pelos instintos musicais que sempre o acompanharam. Pelos seus dedos passa a evidência de quem fez da música uma forma de permanecer imortal. Marrabenta e os seus intérpretes ancestrais são, pois, os intérpretes da natureza, aqueles que com a graciosidade de sua alma, remexeram nossos ouvidos e reconfiguraram o sentido de nossas pernas, músculos e do nosso ser.
Olhando para Moisés Manjate, hoje cadeirante e sentindo já os efeitos dessa longevidade, redescobrimos as mãos que criaram a mecânica do sonho e corporizaram esse beleza e harmonia musical. Entendemos o quanto a música preserva a beleza e elegância de quem a criou e essa obra se torna mais honrada e venerada. Neste aniversário, que por si só merece todas as honras e glórias, não celebraremos apenas o homem e a sua música, mas a longevidade de quem apenas soube fazer bem a este país. Bem-haja Moisés Manjate, imortal e verdadeiro símbolo musical. (X)
Por: Jorge Ferrão[1]
O planalto de Mueda, Cristóvão Colombo e o Destacamento Feminino não se relacionam, nem têm nenhuma interconexão. Todavia, são locais e figuras místicas, quase incontornáveis, plenas de indagações, espaços e leitos por onde se estendem outros e tantos segredos.
Cristóvão Colombo, esse explorador cuja pátria tantas terras cobiçam, retornou à Lisboa abraçado pela caravela Niña a 4 de Março. Entre a bravura e heroicidade que o caracterizam, Colombo baptizava as suas embarcações com nomes femininos. Tal gesto não era mera fantasia, mas simbolizava o enigma de outros segredos, intenções ocultas, e tesouros insondáveis que, como efémeros raios de Março, almejavam ressurgir à humanidade. Afinal, ele acabara de desvendar os horizontes da América. A 4 de Março também se celebra o Dia do Destacamento Feminino.
Pelo planalto de Mueda, e na história do célebre “Primeiro Tiro”, encaixam-se vozes, simultaneamente, tão silenciosas e tão estridentes. Por aqueles montes e vales sobressai o belo e o aprazador, o medo e o aterrorizante. Os silêncios. Uma ressignificação do que deve ser visto e escutado entre as abruptas depressões e o cume de cada montanha por onde se observam as restantes aldeias e povoações.
Numa dessas aldeias nasceu Marina Mangedye que, como qualquer criança da sua idade, viveu a epopeia de uma libertação que faria mais tarde um país. Uma nação. Resgatar os relatos de Marina é abrir os alçapões de episódios não arquivados, mas que se entrelaçam a cada jornada, e a cada 4 de Março, quando o seu Destacamento foi, oficialmente, estabelecido.
Muito antes de 1967, Marina Mangedye e algumas amigas foram emboscadas por um grupo de soldados portugueses. Sem que tivesse ainda entendido o sentido de uma guerra, ela foi testemunha da primeira vítima da brutalidade de um exército que atacava, também, para se defender. A sua amiga, Nina, foi mortalmente alvejada. Um tiro para o centro da cabeça e o sangue que jorrou, eternamente, por detrás de um crime que nenhuma história consegue explicar.
Marina foi levada pelos soldados para o quartel mais próximo, sendo, depois, interrogada e submetida à tortura psicológica. O seu estado de choque a impedia de pensar e de balbuciar fosse o que fosse. Como forma de sacar uma confissão, os soldados portugueses colocaram vinho numa caneca de um azeite de oliveira, já muito usada, e forçaram-na a beber. Marina não só não bebeu como se manteve silenciosa. O vinho irrompia nos seus pensamentos. Era a lembrança do sangue da sua amiga. Ela não revelou qualquer segredo que conhecia. Nem sequer os tinha, mas já pensava na liberdade e independência.
Anos mais tarde, ela juntou-se ao Destacamento Feminino e fez parte do grupo das primeiras 20 mulheres de Cabo Delgado que tiveram treino militar ainda no interior de Moçambique e, mais tarde, em Nachingwea. Este episódio faz-nos recordar da história “vinho e sangue”, que remonta de outros tempos onde a apreciação do vinho era, intimamente, ligada a rituais religiosos e culturais. A humanidade sempre recorreu ao vinho, e outras bebidas alcoólicas, para as celebrações e, por conseguinte, o vinho ganhou um estatuto especial e simbólico.
A associação entre o vinho e o sangue pode parecer um tanto enigmática, porque o catolicismo faz a representação do vinho com o sangue de Cristo, como o símbolo da vida, da comunhão e da renovação. Marina aprendeu a lição do vinho e sangue no mesmo momento e, jamais, como celebração de uma festividade, mas como o final de um percurso.
Assim, ela carregava consigo essa herança que, sem ser festiva, engendraria a semente da revolta e que serviria de catalisador de memórias negativas para o resto da sua vida. Essa vida ensinou-lhe que o brinde tanto pode ser da magia de degustar um bom vinho, como da nostalgia de perder alguém tão próximo que não provou o vinho, mas fertilizou a terra que o mundo descobriu como Moçambique e não Portugal Ultramarino.
Não existem dúvidas de que, em Moçambique, muitas das iniciativas anticoloniais foram, também, conduzidas por mulheres, particularmente, nas zonas rurais e nas cidades, através de actividades clandestinas que configuraram o próprio processo da independência, a partir do despertar da compreensão política da luta de libertação até à adesão ao movimento, sem nos esquecermos da mobilização da população e no auxílio alimentar aos combatentes.
Os 4 de Março que celebramos, algumas vezes de forma tímida e outras mais exuberantes, são uma homenagem a todo o movimento que antecedeu ao início da luta armada e que juntou estudantes do Núcleo dos Estudantes Secundários Africanos de Moçambique (NESAM), que mais tarde foram os quadros que estiveram na base do processo de unificação dos movimentos de libertação.
Mas este 4 de Março é, igualmente, a retoma da Liga Feminina de Moçambique (LIFEMO), cujo pressuposto assentava em apoiar as famílias dos combatentes e divulgar os princípios da Frente de Libertação. O Destacamento Feminino, já composto por guerrilheiras, tem que ser assumido como uma iniciativa das próprias mulheres diante da necessidade de defesa e mobilização das zonas libertadas no interior da província de Cabo Delgado.
57 anos depois, muitas destas mulheres permanecem no nosso seio e Marina, do vinho e do sangue, continuava tão activa como era em 1965, quando ela própria e as suas amigas solicitaram treinamento militar. Elas ocuparam, por seu próprio mérito, um espaço reservado aos homens e provocaram a maior revolução que a história da luta precisa de retomar, pois, a coragem destas jovens delimitou o poder e o controlo que os combatentes exerciam sobre a função reprodutiva das mulheres e da produção alimentar.
Neste 57º aniversário, as combatentes se reencontraram e recordaram a frase que mais caracterizou a descrença e o descrédito dos combatentes homens: “aproximar o fogo ao capim”. Este foi o pensamento dominante também dos chefes de família, na altura, que sempre recearam que o envio das suas filhas para a luta de libertação equivaleria a ameaça à tutela paternal e que levantaria divergências internas insanáveis no seio revolucionário.
Tanto Eduardo Mondlane e Samora Machel, quanto Paulo Samuel Kankhomba e Filipe Samuel Magaia, foram uma referência importante na noção e no discurso sobre a emancipação feminina – esta mesma emancipação que esteve presente nos discursos socialistas, no envolvente momento multipartidário e até em épocas do liberalismo e do neoliberalismo.
Marina casou mais tarde com Raimundo Pachinuapa. Virou Marina Pachinuapa. Até hoje, ela não bebe vinho e continua ciente de que a emancipação consistirá em igualar homens e mulheres, e que nem os propósitos da libertação colocaram em risco o decorrer da própria luta.
Estas foram as concepções que atingiram o coração de cada moçambicano e que valorizam, hoje, a equidade e essa essência que criou a Organização da Mulher Moçambicana (OMM), da qual o tempo e o futuro farão, um dia, essa supra-organização que se sobrepõe aos interesses partidários e que terão como substracto a edificação de uma filosofia que cuidará das crianças, da erradicação dos casamentos prematuros, de uma modernização dos rituais de iniciação e, sobretudo, de uma modernização das estruturas patriarcais que perpetuam a violência doméstica e todos os males associados.
[1] Reitor da Universidade Pedagógica de Maputo.
Eduardo Mondlane completaria 104 anos se continuasse no nosso seio. A sua amada de sempre, Janet Rae Johnson Mondlane, caminha de forma robusta para os 89 anos. A meio da atmosfera da festa de todas as festas, recebi e li, com agrado, uma das cartas que Mondlane escreveu para o seu maior amor, Janet. O simbolismo destas cartas se encaixa num plano que se situava muito para além do simples amor, e fazia jus, contextualmente, à grandiosa epopeia que foi a luta de libertação e independência de Moçambique. Estas são as cartas que fizeram a nossa liberdade e o sonho de vivermos como moçambicanos e sem distinções.
Estas relíquias de um passado que se quer manter presente, revisitam o tempo de todos os tempos. Relembrar as intimidades do casal equivale a abrir uma janela para o passado, para vislumbrar o arco-íris da emancipação e apreciar como cada linha e cada página traçada são o elo que reconecta o presente que um dia foi passado para que todos tivéssemos um melhor futuro. Segue abaixo um trecho:
"... O mundo está à espera do momento em que o homem conhecerá os outros em termos do seu valor humano, e não, em termos de cor e de língua. As culturas estão a fundir-se lenta, mas, seguramente. Há uma comunicação cada vez mais rápida, tanto física como espiritual. ... Tudo isto significa que tu e eu podemos ser cidadãos do mundo se, assim, o desejarmos... O mundo tem fome de pessoas que se atrevam a sair e a conhecer outros seres humanos. Não me interpretem mal, não quero dizer que uma cultura seja má ou inadequada. Mas, quero dizer que qualquer cultura pode ser inadequada se fizermos dela um ídolo. Embora, amemos a nossa própria cultura, não devemos esquecer que ela é uma parte e apenas uma parte de um mundo maior - a humanidade. Esta ideia é aceite por milhões de pessoas hoje em dia, mas é difícil encontrar alguém que se aventure a ir mais longe, excepto muito poucos. Sejamos, tu e eu, esses poucos. As gerações futuras vão agradecer-nos por termos começado, mesmo que os nossos nomes desapareçam na confusão do progresso." Eduardo Mondlane para Janet Books.
Cartas Editadas. Ecos da Tua Voz 1920-1950.
Quem sabe poderemos ter, em 2024, a próxima edição do “Ecos da Tua Voz”.