O rapper português Valete assumiu ontem, em Maputo, a missão de dar continuidade ao legado de Azagaia, músico de intervenção social moçambicano que morreu em março vítima de doença, destacando a importância da “música militante” na lusofonia.
“Continuar o legado de Azagaia, nesta altura, é uma das minhas missões […] O buraco que ele deixa é gigante, até porque o tipo de rapper que era o Azagaia está relacionado com o espírito que ele tinha […] Azagaia era o tipo de músico que colocava os interesses dos moçambicanos acima dos seus próprios interesses individuais”, disse Keidje Torres Lima (Valete), em entrevista à Lusa em Moçambique, onde vai realizar dois concertos na província de Sofala e Maputo, capital moçambicana.
Para Valete, num contexto lusófono desafiante, a “música militante” ou de intervenção social assume um papel fundamental, numa altura em que os países falantes de língua portuguesa atravessam uma crise no que diz respeito ao rap interventivo.
“É importante que o rap seja multidimensional, é importante que haja música de festa e de entretenimento. Mas o rap militante é um pilar da cultura hip-hop. E, normalmente, nos momentos que nós vemos menos isso, quer dizer que o hip-hop está a passar por uma crise. Sempre que tens momentos em que há uma escassez do rap de denúncia e de protesto, o hip-hop está em crise”, frisou o autor do álbum “Serviço Público”.
Embora as realidades entre os países sejam diferentes, prosseguiu Valete, a lusofonia é um mercado com potencial, mas é necessário que exista vontade política para aproveitar o espaço, criando uma cadeia de valor que inclua uma “consciência editorial” lusófona.
“Há uma língua comum, que é muito bem usada pelos artistas em toda a lusofonia, e há pouco trabalho à volta disso […] Falta-nos criar laços, que passam por uma consciência editorial lusófona, um mercado de concertos lusófonos e até uma edição lusófona. Com as dificuldades que são naturais relacionadas com a distância entre os países, tem de haver vontade política e governamental para estas coisas acontecerem”, explicou o também autor de “Educação Visual”.
Nos mais de 20 anos de carreira, o rapper português visita Moçambique apenas pela terceira vez, mas admite que são inúmeros os jovens que se identificam com a sua música, num país africano por ele descrito como uma referência na música rap feita na lusofonia.
“Eu sou filho de são-tomenses a viver em Portugal e então eu acredito que faço um rap africano na Europa. Penso que a identificação dos fãs africanos em relação ao Valete tem a ver com isso. Eu sou africano e nasci na Europa provavelmente por acidente. Eu vivo em Portugal, mas o sentimento, a emoção e até o discurso é africano”, frisou o autor da música “Roleta Russa”.
Em Moçambique, Valete é esperado por cerca de quatro mil pessoas hoje na discoteca Coconuts, em Maputo, e, no domingo, na Casa dos Bicos, na cidade da Beira, dois concertos promovidos pela Letela Produções e que são designados “Futuro das Gerações”, tendo, entre os convidados, outras figuras de referência do rap moçambicano, com destaque para Kloro, Khronic e Ell-Puto.
Azagaia morreu em 09 de março, consternando milhares de fãs e sobretudo jovens que se reveem nas suas mensagens quase por toda a lusofonia. Após a sua morte, um grupo ativistas moçambicanos tentou organizar, em 18 de março, marchas em sua homenagem em todo país, iniciativas que foram reprimidas com violência pela polícia moçambicana.
Os episódios de 18 março mereceram a condenação de várias entidades que alertaram para a violência policial injustificada face a grupos pacíficos e desarmados, classificando-os como um dos sinais mais visíveis das limitações à liberdade de expressão e de manifestação em Moçambique. (Lusa)