O Plano de Reconstrução de Cabo Delgado (PRCD), aprovado pelo Governo em Outubro de 2021, para ser implementado em seis (6) distritos fortemente afectados pelos ataques de insurgentes, privilegia a recuperação de infra-estruturas nos distritos de Palma e Mocímboa da Praia. Esta abordagem pode revelar que o Governo está mais preocupado em criar estabilidade e condições de retorno à vida normal nos distritos abrangidos pelos projectos de exploração de gás, deixando para segundo plano os restantes distritos que igualmente foram severamente afectados pelos ataques, diz o Centro de Integridade Pública (CIP).
A Total, que abandonou o seu projecto de 23 mil milhões de dólares de exploração de gás natural da Bacia do Rovuma, distrito de Palma, tem estado a exigir o que chama de “segurança sustentável” para retornar ao projecto. Segundo o Presidente do Conselho de Administração da Total, Patrick Pouyanné, tal segurança sustentável significa “ver as populações a regressarem para as suas aldeias para a normalização da vida social”.
Para o CIP, a implementação do PRCD revela-se orientada para responder à demanda da Total, mas somente em dois distritos, Palma e Mocímboa da Praia. O Governo está a priorizar a recuperação de infra-estruturas destruídas pelos ataques dos insurgentes nestes dois distritos e a forçar os funcionários públicos a retornar à vila de Mocímboa da Praia para o restabelecimento dos serviços públicos.
No distrito de Palma, os serviços públicos já estão reestabelecidos e é o único onde o administrador já retornou após o ataque à respectiva vila-sede. Mocímboa da Praia, Muidumbe, Macomia e Quissanga ainda não têm administradores de volta após os ataques às respectivas vilas
Prioridade para a segurança dos projectos de gás
O CIP entende que o tratamento privilegiado dos distritos de Palma e Mocímboa da Praia na estratégia de contrainsurgência do Governo não é somente na reconstrução. É notável também na segurança dos projectos de gás. Antes do destacamento das tropas estrangeiras para Cabo Delgado, o Governo sempre canalizou os melhores recursos e homens para Afungi para proteger os projectos de gás.
Em contexto de conflitos armados, a protecção especial de projectos de grande importância económica é comum e justificada pela importância que estes representam para a economia. Porém, a protecção de empreendimentos económicos não deve significar o sacrifício ou a secundarização da segurança da população civil e das suas propriedades.
Em Cabo Delgado, o Governo sempre deu primazia à segurança dos projectos do gás, secundarizando a segurança da população local. Quando os ataques se intensificaram, em 2019, o Governo assinou acordo com as empresas multinacionais de exploração de gás para destacar uma força especial para proteger o projecto de exploração de gás.
Em contrapartida, o Governo recebia pagamentos da Anadarko e da Eni para canalizar aos operativos destacados ao terreno, como remuneração adicional por estarem a proteger as multinacionais.
Com a saída da Anadarko e a entrada da Total no projecto Mozambique LNG, houve actualização do acordo entre o Governo e as multinacionais, e foi criada a Força Tarefa Conjunta (Joint Task Force), uma unidade especial que congregava os melhores operativos da Polícia e das Forças Armadas da Defesa de Moçambique (FADM). A Joint Task Force transformou a península de Afungi, a sede dos projectos de exploração de gás, numa ‘ilha de estabilidade’ blindada das investidas dos insurgentes, enquanto as aldeias nos arredores eram atacadas.
Entretanto, os ataques persistiam e aconteciam a cerca de 10 quilómetros dos projectos de gás, pelo que a Total exigiu um perímetro de segurança mais alargado, de pelo menos 25 km do seu projecto. O Governo respondeu criando o Teatro Operacional Especial de Afungi, uma unidade especial das Forças de Defesa e Segurança destinada a proteger o local da implantação da planta de liquefação de gás natural e de outras infra-estruturas de apoio.
O Centro de Integridade Pública assinala que a estratégia do Governo de proteger os projectos de gás e deixar as áreas circunvizinhas à mercê dos ataques não trouxe os resultados desejados. As unidades especiais criadas para proteger os projectos de gás foram capazes de evitar que o projecto de exploração e liquefação de gás fosse atacado, mas não evitaram a paralisação do projecto de gás.
Com as melhores unidades militares estacionadas em Afungi, a vila de Palma, localizada dentro do perímetro de 25 quilómetros estabelecido no memorado do Governo com a Total, foi arrasada pelos insurgentes. Do ataque, muitos trabalhadores de empresas subcontratadas para trabalhar na construção do projecto liquefação do gás foram mantidos reféns pelos insurgentes em hotéis onde se encontravam alojados na cidade de Palma e outros foram mortos.
Após o ataque à Vila de Palma, a Total abandonou o projecto alegando falta de segurança para continuar com as actividades.
Com o ataque a Palma e a paralisação das obras para a exploração e liquefação do gás natural, o Governo, que até então estava relutante em aceitar a intervenção militar estrangeira em Cabo Delgado para além de empresas privadas militares, mudou de abordagem e pediu apoio militar do Ruanda e da SADC. A Intervenção militar estrangeira foi destacada em primeiro plano para Palma e Mocímboa da Praia, com a chegada das Forças de Defesa do Ruanda (RDF na sigla em inglês), em Julho de 2021.
Só um mês após a chegada das tropas do Ruanda a Palma e Mocímboa da Praia é que as tropas da Missão da Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (SAMIM, na sigla em inglês) foram destacadas para os Distritos de Nangade, Mueda e Macomia. O atraso do destacamento das Forças da SADC foi, em parte, causado pela demora do Governo moçambicano no envio do ‘Estatuto da Força’ para a sede da SADC em Gaborone, documento sem o qual a SADC não poderia enviar as tropas a Moçambique.
Tendo chegado em primeiro ao terreno, as tropas do Ruanda desalojaram os insurgentes da vila de Mocímboa da Praia. Esta vila tinha sido capturada pelos insurgentes passava cerca de um ano. Igualmente atacaram algumas bases dos insurgentes como em Awase e Mbau, mas a maioria dos insurgentes, incluindo seus líderes, conseguiram fugir e dispersaram-se em pequenos grupos para áreas que foram atribuídas à SAMIM, incluindo os distritos de Nangade, ao norte, e de Macomia, ao sul. É nestes distritos onde se continua a registar maior número de ataques actualmente.
Reconstrução privilegia Palma e Mocímboa da Praia
A intervenção militar estrangeira permitiu a contenção dos ataques, principalmente nos distritos de Palma e Mocímboa da Praia e, em Outubro de 2021, o Governo aprovou um plano de reconstrução de Cabo Delgado, orçado em 300 milhões de dólares.
Segundo dados da Agência do Desenvolvimento Integrado do Norte (ADIN), o Plano de Reconstrução de Cabo Delgado vai ser implementado em seis distritos, nomeadamente, Palma, Nangade, Mocímboa da Praia, Muidumbe, Macomia e Quissanga. Estes são os distritos que foram fortemente atingidos pelos ataques dos insurgentes e, com a excepção de Nangade, nos restantes cinco, as respectivas capitais foram atacadas e várias infra-estruturas públicas e privadas destruídas. Para a implementação do Plano de Reconstrução de Cabo Delgado (dos seus distritos) foi aprovado o orçamento de 14,6 biliões de meticais e, deste valor, Palma, com 5,5 mil milhões de meticais, e Mocímboa da Praia, com 4 mil milhões de meticais consomem sozinhas mais de 65% do Orçamento total, deixando para os restantes quatro distritos somente cerca de 4,5 mil milhões. Ao distrito de Quissanga é alocado o valor de 2,1 mil milhões de meticais, a Macomia 1,8 mil milhões de meticais, a Muidumbe 715 milhões de meticais e, por último, a Nangade 416 milhões de meticais.
Prioridade para a recuperação de infra-estruturas em Palma e Mocímboa da Praia
O PRCD tem três áreas de enfoque, nomeadamente: a assistência humanitária, a recuperação de infra-estruturas e apoio à actividade económica. A implementação destas actividades está subdividida em acções de curto prazo, com um orçamento de 12,3 mil milhões de meticais, e de médio prazo, com um custo total de 6,3 mil milhões de meticais, totalizando cerca de 18,6 mil milhões.
Tanto nas acções de curto prazo como nas de médio prazo, a recuperação das infra-estruturas consome maior parcela do orçamento destinado à reconstrução de Cabo Delgado, com 13 mil milhões de meticais (70% do orçamento total) a serem alocados para esta rubrica, enquanto a distribuição do orçamento do PRCD, tanto pelos distritos assim como pelas áreas, revela que grande parcela é destinada à recuperação de infra-estruturas nos distritos com influência na indústria do gás: Palma e Mocímboa da Praia, este último mais destruído. A priorização de Palma na alocação de uma parcela maior do orçamento de reconstrução pode ser explicada pelo facto deste distrito albergar os projectos de exploração de gás, havendo, por isso, a necessidade de desenvolver as infra-estruturas governamentais que irão servir a indústria do gás.
Para retomar o projecto de exploração e liquefação de gás, a Total tem estado a exigir a normalização da situação em Cabo Delgado, que deve incluir o retorno das comunidades para as suas zonas de origem. O tratamento prioritário dado a Palma e Mocímboa da Praia pode ser sintomático de que o Governo pretende normalizar (em primeiro) a situação nos distritos de influência do gás, secundarizando os ouros distritos.
O Centro de Integridade Pública realça, por último, que a prioridade dada aos distritos de Palma e Mocímboa da Praia, tanto na defesa contra os ataques de insurgentes assim como na reconstrução, pode criar assimetrias de desenvolvimento e de estabilidade na província de Cabo Delgado, com a zona ao redor do gás a ser mais estável e desenvolvida, enquanto os distritos circundantes sofrem ainda ataques e falta de condições básicas de habitabilidade.
Tal situação não iria garantir a segurança a longo prazo dos projectos de gás. Como se viu antes, a Joint Task Force e o Teatro Operacional Especial de Afungi, criados a pensar exclusivamente na segurança dos projectos e exploração e liquefação de gás, não trouxeram os resultados esperados. Uma segurança sustentável e duradoura deve significar a segurança das populações civis em toda a província de Cabo Delgado. Pelo que a distribuição das Forças de Defesa e Segurança pelo terreno bem como dos recursos financeiros para a reconstrução deve ser a mais equilibrada possível. É preciso ainda haver equilíbrio na distribuição do orçamento da reconstrução de Cabo Delgado pelos sectores. Enquanto se reconhece a necessidade da reconstrução de infra-estruturas, é igualmente importante alocar mais orçamento para a assistência humanitária das centenas de milhares de vítimas de ataques que neste momento dependem quase que exclusivamente da ajuda humanitária providenciada por organizações humanitárias internacionais. (Carta)